Ao
abrir este belo volume de poesias, a primeira impressão que recebi foi a de uma
funda e indefinível saudade.
Avivaram-ma,
antes que me pudessem enlevar o espírito, as peregrinas riquezas, que estas
páginas entesouram, e a música aprazível de seus versos, as recordações do
poeta ausente e as dos melhores tempos de nossa velha e mútua afeição não
resfriada até hoje por acontecimento algum e contra a qual não têm sabido
prevalecer longos anos de superveniente separação.
Conheço
a Augusto de Lima desde 1878, quando cursávamos ambos as aulas do 1° ano
jurídico, em São Paulo. Desde essa data até dezembro de 1882, isto é, durante
toda a nossa feliz quadra acadêmica, ninguém com ele conviveu mais intimamente
do que o humilde autor destas linhas e ninguém mais lhe deveu pelos benefícios
dessa convivência; mas nenhum outro também, com mais sincero entusiasmo, se
acostumou a prezar o coração generoso e o caráter firme e ileso de Augusto de
Lima e a admirar, através da sua nobre modéstia, o seu grande talento.
As
poesias, que hoje se veem encerradas nas Contemporâneas,
o poeta as compôs, pela maior parte, nessa época, e, publicadas nos principais
jornais de São Paulo e da Corte, não lhes faltaram os elogios e os aplausos dos
escritores que mais competência tinham na matéria. Foi o tempo dos seus
primeiros triunfos literários; e é saudoso desse belo tempo, que eu,
percorrendo agora o livro de Augusto de Lima, recordados sob o título de várias
poesias, dou com os nomes de Assis Brasil, de Alcides Lima, de Valentim
Magalhães, de Gaspar da Silva, de Teófilo Dias, de Randolfo Fabrino, de Affonso
Celso Júnior, de Fontoura Xavier, de Júlio de Castilhos e de outros amigos e
companheiros de então.
Teófilo
Dias, no prefácio das Contemporâneas,
começa dizendo:
“A
leitura deste interessante, curioso e atraente volume de versos denuncia um
grande poeta que, prodigamente dotado pela natureza, educa todos os dias, com
tenacidade, as belas qualidades originárias, que lhe enriquecem e singularizam
o talento: imaginação poderosa, sensibilidade delicada, elocução espontânea,
individual e própria.”
Acerca
do valor real do livro de Augusto de Lima, este “escrínio de joias raras”, como
o chamou Carlos de Laet no seu Microcosmo, não se poderia melhor exprimir a
verdade; e, para se concordar inteiramente com o que diz o ilustre prefaciador
das Contemporâneas, basta que se leia
qualquer dessas magníficas poesias intituladas “Através dos Séculos”, “O
Inquisidor”, “Unda et Ignis”, “Ilha de Coral”, “Síntese”, “A Agonia do Cristo”,
“A Herança de Prometeu”, “O Polvo”, “Elevação”, “O Abismo” e a “Morte de Safo”.
Trechos
há, nas Contemporâneas, de uma beleza
inimitável e nos quais o autor se revela, com efeito, um artista de primeira
ordem.
Parece
que é fazer um impossível; conciliar a forma, de uma exatidão geométrica, e os
arroubamentos de uma ardente imaginação quase sempre caprichosa e temerária,
pois que, deste modo, são como dois inimigos irreconciliáveis imaginação e
forma.
Entretanto,
até onde pode ser atingível esse ideal, sente-se que o poeta o atingiu em
várias passagens do seu primoroso livro, conseguindo superar dificuldades, que
a raros seria dado vencer e ajustando com admirável habilidade a altiveza do
pensamento e a sublimidade das imagens ao molde rigoroso de suas impecáveis
estrofes.
Para
mostra disso, citarei aqui alguns trechos escolhidos no livro do poeta,
compensando assim o muito, que há de insulso na prosa, com essas harmonias
rigorosas e límpidas:
.......................................................
Eis já rasgada a
funda galeria,
túmulo aberto da
avareza insana,
onde nunca chegaste,
ó grande Dia,
mas onde chega a
intensa força humana.
Partindo aos
estilhaços o veeiro,
a dinamite à
rocha dá combate
e, em
compassados golpes, o mineiro
a retumbante
picareta bate.
Um estampido – e
lasca-se o granito,
outro tiro – e o
granito rola em seixos.
Das máquinas de
ferro, ao forte atrito,
rincham as rodas
nos candentes eixos.
E a rica flora
mineral desata
e rompe o véu ao
rútilo tesouro:
brota o esmeril,
em fios corre a prata,
floresce a gema,
abrem-se rosas de ouro.
Pertencem
estas quatro esplêndidas estrofes à riquíssima poesia Visita a uma mineração, poesia profusa de aurígeras imagens e
descrições rutilantes de fabulosas alhambras, e que termina com este profuso
conceito:
E toda aquela
maravilha imensa,
que de espanto e
de luz nos embebeda,
se apouca, se
constringe e se condensa
no disco
miserável da moeda.
Em
poesia de gênero diferente – Os dois
Cristos –podem servir de modelo os seguintes decassílabos que encerram uma
eloquente e vigorosa apóstrofe, onde a energia vibrante da frase e do ritmo, é
sustida admiravelmente de princípio ao fim, de maneira a não fraquejar nunca:
Caíste, como cai
qualquer na luta:
profeta, o verbo
teu não mais ecoa,
mártir, a tua
túnica impoluta
a ventania do
porvir rasgou-a!
A limpidez azul
da antiga crença
em que brilhava
o místico Tabor,
toldou-a agora
uma caligem densa:
a fumaça da
Indústria e do Vapor.
Rompeu-se o véu
do Templo, onde mistérios
celebravam os
rígidos levitas,
amalgamando ao
pó dos cemitérios
as lágrimas das
dores infinitas.
De teu trágico
inferno a densa lava
a rebramir no
abismo hórrido, espesso,
ó malogrado
herói, já não bastava
pra aquecer as
caldeiras do Progresso.
Tua missão está
completa. Agora
podes volver à
solidão infinda;
mas vai
depressa, porque vem a aurora,
e te pode
encontrar aqui ainda!
.......................................................
E tu, homem,
eterno caminheiro
da via dolorosa
da Verdade,
é tempo de
elevares sobranceiro
a grande luz de
tua majestade.
Não te vença o
punhal que dilacera
esse peito, em
que a Dor blasfema e chora;
é no bojo da
noite, que se opera
a luminosa
gestação da aurora.
Não envergues a
fronte augusta e casta
ao sofrimento
rude, à mágoa funda:
a dor que hoje
te corta a entranha vasta,
é como a dor do
parto, é dor fecunda.
Abisma o olhar
em tua consciência
e encontrarás as
pérolas do Bem;
trabalha, colhe
a esplêndida opulência,
que as minas de
teu cérebro contêm.
Da antiga
divindade o grande assento
ruiu de há muito
às lúcidas procelas.
Não procures
mais Deus no firmamento:
o firmamento só
contém estrelas!
Augusto
de Lima é, antes de tudo, o que atualmente se chama um poeta objetivista. Na maior parte de suas
poesias, o eu ocupa um lugar
secundário; o poeta raramente nos fala de si; preocupam-no mais os fenômenos do
mundo exterior. Todavia parece que os poetas têm o direito de ser mais egoístas; filosofar com as Musas é
arrostar as sirtes e os perigos de uma empresa grave e dificílima, porquanto,
em geral, os filósofos, quase nunca nos falam das coisas, que já conhecemos,
das quais justamente nos apraz ouvir falar; e com certeza é por esse motivo que
os filósofos não são pessoas muito apreciáveis para o vulgo.
Nota-se
que as Contemporâneas estão
impregnadas de uma filosofia triste e desconsoladora e, ao mesmo tempo,
fascinante como um abismo, senão desse espírito de dúvida em que um notável
escritor descobriu todos os sintomas da doença
do século e isto justifica talvez o título da obra. Nos quadros sombrios,
que nos expõe o poeta poucas vezes se desliza o vulto luminoso e doce de uma
mulher amada, a não ser o da pálida Margarida do Faust
“desfolhando ao
luar
os brancos
malmequeres”
Longe
esteja destas palavras qualquer ideia de censura ao poeta; com elas
manifesto-lhe apenas, que prefiro, sem dúvida, a Faust sábio e velho o jovem e amoroso Faust.
Contudo,
à lira sonorosa de Augusto de Lima nenhuma das cordas falta; e a corda sensível
dos românticos, essa mesma, cujas vibrações não se sentem com frequência no seu
livro, o poeta não a tem menos afinada que as outras.
Há,
nas Contemporâneas, provas disso;
poucas sim, mas relevantes. Além dessa linda tradução de Soulary, O Espantalho, que a Arthur Azevedo tanto
agradou, veem-se aí páginas, não muitas embora, perfumadas de encantador e
suave lirismo e que rivalizam, a meu ver, com o que de melhor têm escrito no
mesmo gênero os três grandes poetas Teófilo Dias, Alberto de Oliveira e Olavo
Bilac.
Todos
os que lerem as poesias líricas, que o autor das Contemporâneas intitulou “Noivado Celeste”, “Dormindo”, “Culto
Ideal” e “Palimpsestos”, hão de afirmar que, realmente, são belíssimas.
Não
resisto ao desejo de transcrever ainda aqui alguns daqueles feiticeiros
“Palimpsestos”:
.......................................................
Vive-me n’alma
este afeto,
que é notório,
tu mo dizes,
mas eu no vácuo
completo
passo os dias
infelizes.
Bem vês que
assim me assemelho
ao vidro de um
liso espelho:
as imagens que
lhe dão
todos as veem,
ele não.
E assim
minh’alma vive hoje,
correndo às
dores entregue,
regato que de si
foge
o que a si mesmo
persegue...
E há de ir, no
seu curso insano,
perder-se,
enfim, no oceano,
contente por ter
sofrido,
sofrendo por ter
vivido.
Teu riso a torna
amorosa,
mas não me tira
a desgraça:
nem faz a pet’la
da rosa
transbordar a
cheia taça.
Basta, se
choras, no entanto,
uma gota de teu
pranto
e lá se vão
minhas mágoas
na correnteza
das águas...
Estas loas da
desgraça,
recebe-as e
queima-as logo;
e, se o pranto
que as repassa
extinguir,
acaso, o fogo,
rasga-as e lança
os fragmentos
ao rio: – pobres
lamentos!
irão, como ilhas
errantes,
pedaços de almas
amantes.
Conheço
eu, porém, muitas outras poesias líricas de Augusto de Lima, que não se acham
incluídas neste livro, e que aí, entretanto, viriam dar maior realce, se é
possível, às aptidões artísticas e ao talento complexo do seu autor.
Se alguma censura merecer Augusto de Lima, seja só por isso: pelo fato de as haver excluído, injustamente, das suas formosas Contemporâneas. Mas esta falta será, certamente, reparada e muito breve, porque o poeta tem já a entrar no prelo um segundo volume de versos. A este espero ansioso para felicitar de novo a Augusto de Lima, abraçando-o, como agora o abraço, com efusão.
Disse
o que sentia.
Raimundo Correia
Jornal Vassourense,
20 de dezembro de 1887.
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