12/19/2018

Raimundo Correia: Juízos críticos sobre “Contemporâneas" de Augusto de Lima



Juízos críticos sobre “Contemporâneas" de Augusto de Lima

Ao abrir este belo volume de poesias, a primeira impressão que recebi foi a de uma funda e indefinível saudade.

Avivaram-ma, antes que me pudessem enlevar o espírito, as peregrinas riquezas, que estas páginas entesouram, e a música aprazível de seus versos, as recordações do poeta ausente e as dos melhores tempos de nossa velha e mútua afeição não resfriada até hoje por acontecimento algum e contra a qual não têm sabido prevalecer longos anos de superveniente separação.

Conheço a Augusto de Lima desde 1878, quando cursávamos ambos as aulas do 1° ano jurídico, em São Paulo. Desde essa data até dezembro de 1882, isto é, durante toda a nossa feliz quadra acadêmica, ninguém com ele conviveu mais intimamente do que o humilde autor destas linhas e ninguém mais lhe deveu pelos benefícios dessa convivência; mas nenhum outro também, com mais sincero entusiasmo, se acostumou a prezar o coração generoso e o caráter firme e ileso de Augusto de Lima e a admirar, através da sua nobre modéstia, o seu grande talento.

As poesias, que hoje se veem encerradas nas Contemporâneas, o poeta as compôs, pela maior parte, nessa época, e, publicadas nos principais jornais de São Paulo e da Corte, não lhes faltaram os elogios e os aplausos dos escritores que mais competência tinham na matéria. Foi o tempo dos seus primeiros triunfos literários; e é saudoso desse belo tempo, que eu, percorrendo agora o livro de Augusto de Lima, recordados sob o título de várias poesias, dou com os nomes de Assis Brasil, de Alcides Lima, de Valentim Magalhães, de Gaspar da Silva, de Teófilo Dias, de Randolfo Fabrino, de Affonso Celso Júnior, de Fontoura Xavier, de Júlio de Castilhos e de outros amigos e companheiros de então.

Teófilo Dias, no prefácio das Contemporâneas, começa dizendo:

“A leitura deste interessante, curioso e atraente volume de versos denuncia um grande poeta que, prodigamente dotado pela natureza, educa todos os dias, com tenacidade, as belas qualidades originárias, que lhe enriquecem e singularizam o talento: imaginação poderosa, sensibilidade delicada, elocução espontânea, individual e própria.”

Acerca do valor real do livro de Augusto de Lima, este “escrínio de joias raras”, como o chamou Carlos de Laet no seu Microcosmo, não se poderia melhor exprimir a verdade; e, para se concordar inteiramente com o que diz o ilustre prefaciador das Contemporâneas, basta que se leia qualquer dessas magníficas poesias intituladas “Através dos Séculos”, “O Inquisidor”, “Unda et Ignis”, “Ilha de Coral”, “Síntese”, “A Agonia do Cristo”, “A Herança de Prometeu”, “O Polvo”, “Elevação”, “O Abismo” e a “Morte de Safo”.

Trechos há, nas Contemporâneas, de uma beleza inimitável e nos quais o autor se revela, com efeito, um artista de primeira ordem.

Parece que é fazer um impossível; conciliar a forma, de uma exatidão geométrica, e os arroubamentos de uma ardente imaginação quase sempre caprichosa e temerária, pois que, deste modo, são como dois inimigos irreconciliáveis imaginação e forma.

Entretanto, até onde pode ser atingível esse ideal, sente-se que o poeta o atingiu em várias passagens do seu primoroso livro, conseguindo superar dificuldades, que a raros seria dado vencer e ajustando com admirável habilidade a altiveza do pensamento e a sublimidade das imagens ao molde rigoroso de suas impecáveis estrofes.

Para mostra disso, citarei aqui alguns trechos escolhidos no livro do poeta, compensando assim o muito, que há de insulso na prosa, com essas harmonias rigorosas e límpidas:

.......................................................

Eis já rasgada a funda galeria,
túmulo aberto da avareza insana,
onde nunca chegaste, ó grande Dia,
mas onde chega a intensa força humana.

Partindo aos estilhaços o veeiro,
a dinamite à rocha dá combate
e, em compassados golpes, o mineiro
a retumbante picareta bate.

Um estampido – e lasca-se o granito,
outro tiro – e o granito rola em seixos.
Das máquinas de ferro, ao forte atrito,
rincham as rodas nos candentes eixos.

E a rica flora mineral desata
e rompe o véu ao rútilo tesouro:
brota o esmeril, em fios corre a prata,
floresce a gema, abrem-se rosas de ouro.

Pertencem estas quatro esplêndidas estrofes à riquíssima poesia Visita a uma mineração, poesia profusa de aurígeras imagens e descrições rutilantes de fabulosas alhambras, e que termina com este profuso conceito:

E toda aquela maravilha imensa,
que de espanto e de luz nos embebeda,
se apouca, se constringe e se condensa
no disco miserável da moeda.

Em poesia de gênero diferente – Os dois Cristos –podem servir de modelo os seguintes decassílabos que encerram uma eloquente e vigorosa apóstrofe, onde a energia vibrante da frase e do ritmo, é sustida admiravelmente de princípio ao fim, de maneira a não fraquejar nunca:

Caíste, como cai qualquer na luta:
profeta, o verbo teu não mais ecoa,
mártir, a tua túnica impoluta
a ventania do porvir rasgou-a!

A limpidez azul da antiga crença
em que brilhava o místico Tabor,
toldou-a agora uma caligem densa:
a fumaça da Indústria e do Vapor.

Rompeu-se o véu do Templo, onde mistérios
celebravam os rígidos levitas,
amalgamando ao pó dos cemitérios
as lágrimas das dores infinitas.

De teu trágico inferno a densa lava
a rebramir no abismo hórrido, espesso,
ó malogrado herói, já não bastava
pra aquecer as caldeiras do Progresso.

Tua missão está completa. Agora
podes volver à solidão infinda;
mas vai depressa, porque vem a aurora,
e te pode encontrar aqui ainda!

.......................................................

E tu, homem, eterno caminheiro
da via dolorosa da Verdade,
é tempo de elevares sobranceiro
a grande luz de tua majestade.

Não te vença o punhal que dilacera
esse peito, em que a Dor blasfema e chora;
é no bojo da noite, que se opera
a luminosa gestação da aurora.

Não envergues a fronte augusta e casta
ao sofrimento rude, à mágoa funda:
a dor que hoje te corta a entranha vasta,
é como a dor do parto, é dor fecunda.

Abisma o olhar em tua consciência
e encontrarás as pérolas do Bem;
trabalha, colhe a esplêndida opulência,
que as minas de teu cérebro contêm.

Da antiga divindade o grande assento
ruiu de há muito às lúcidas procelas.
Não procures mais Deus no firmamento:
o firmamento só contém estrelas!

Augusto de Lima é, antes de tudo, o que atualmente se chama um poeta objetivista. Na maior parte de suas poesias, o eu ocupa um lugar secundário; o poeta raramente nos fala de si; preocupam-no mais os fenômenos do mundo exterior. Todavia parece que os poetas têm o direito de ser mais egoístas; filosofar com as Musas é arrostar as sirtes e os perigos de uma empresa grave e dificílima, porquanto, em geral, os filósofos, quase nunca nos falam das coisas, que já conhecemos, das quais justamente nos apraz ouvir falar; e com certeza é por esse motivo que os filósofos não são pessoas muito apreciáveis para o vulgo.

Nota-se que as Contemporâneas estão impregnadas de uma filosofia triste e desconsoladora e, ao mesmo tempo, fascinante como um abismo, senão desse espírito de dúvida em que um notável escritor descobriu todos os sintomas da doença do século e isto justifica talvez o título da obra. Nos quadros sombrios, que nos expõe o poeta poucas vezes se desliza o vulto luminoso e doce de uma mulher amada, a não ser o da pálida Margarida do Faust

“desfolhando ao luar
os brancos malmequeres”

Longe esteja destas palavras qualquer ideia de censura ao poeta; com elas manifesto-lhe apenas, que prefiro, sem dúvida, a Faust sábio e velho o jovem e amoroso Faust.

Contudo, à lira sonorosa de Augusto de Lima nenhuma das cordas falta; e a corda sensível dos românticos, essa mesma, cujas vibrações não se sentem com frequência no seu livro, o poeta não a tem menos afinada que as outras.

Há, nas Contemporâneas, provas disso; poucas sim, mas relevantes. Além dessa linda tradução de Soulary, O Espantalho, que a Arthur Azevedo tanto agradou, veem-se aí páginas, não muitas embora, perfumadas de encantador e suave lirismo e que rivalizam, a meu ver, com o que de melhor têm escrito no mesmo gênero os três grandes poetas Teófilo Dias, Alberto de Oliveira e Olavo Bilac.

Todos os que lerem as poesias líricas, que o autor das Contemporâneas intitulou “Noivado Celeste”, “Dormindo”, “Culto Ideal” e “Palimpsestos”, hão de afirmar que, realmente, são belíssimas.

Não resisto ao desejo de transcrever ainda aqui alguns daqueles feiticeiros “Palimpsestos”:

.......................................................

Vive-me n’alma este afeto,
que é notório, tu mo dizes,
mas eu no vácuo completo
passo os dias infelizes.
Bem vês que assim me assemelho
ao vidro de um liso espelho:
as imagens que lhe dão
todos as veem, ele não.

E assim minh’alma vive hoje,
correndo às dores entregue,
regato que de si foge
o que a si mesmo persegue...
E há de ir, no seu curso insano,
perder-se, enfim, no oceano,
contente por ter sofrido,
sofrendo por ter vivido.

Teu riso a torna amorosa,
mas não me tira a desgraça:
nem faz a pet’la da rosa
transbordar a cheia taça.
Basta, se choras, no entanto,
uma gota de teu pranto
e lá se vão minhas mágoas
na correnteza das águas...

Estas loas da desgraça,
recebe-as e queima-as logo;
e, se o pranto que as repassa
extinguir, acaso, o fogo,
rasga-as e lança os fragmentos
ao rio: – pobres lamentos!
irão, como ilhas errantes,
pedaços de almas amantes.

Conheço eu, porém, muitas outras poesias líricas de Augusto de Lima, que não se acham incluídas neste livro, e que aí, entretanto, viriam dar maior realce, se é possível, às aptidões artísticas e ao talento complexo do seu autor.

Se alguma censura merecer Augusto de Lima, seja só por isso: pelo fato de as haver excluído, injustamente, das suas formosas Contemporâneas. Mas esta falta será, certamente, reparada e muito breve, porque o poeta tem já a entrar no prelo um segundo volume de versos. A este espero ansioso para felicitar de novo a Augusto de Lima, abraçando-o, como agora o abraço, com efusão.
Disse o que sentia.

Raimundo Correia
Jornal Vassourense, 20 de dezembro de 1887.

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