Oscar Wilde: o artista da alma
De Isabel de Aragônia, filha de um rei
de Nápoles e de Ippolita Sforza, conta-se haver tido a existência tão cheia de sobressaltos
e cortada de tais dissabores que sempre fazia acompanhar a sua assinatura nas cartas que escrevia da designação — “única em
desgraça", — querendo com isso significar que a ela cabia o doloroso
privilégio de ter sido a mais infeliz dentre todas as mulheres.
A Oscar Wilde, melhor que a qualquer
outro escritor, caberia o direito, nos últimos anos em que sobreviveu à condenação,
de fazer suas as palavras do epíteto com que a si mesmo se crismara aquela
desventurosa princesa.
O homem que sempre estivera preocupado com as belas altitudes e sonhara fazer da existência uma obra de arte, acabou obscuramente no vilipêndio e no martírio, exibindo pelas ruas da metrópole do mundo civilizado o seu espectro de galé recém-vindo do cárcere e a caricatura da sua elegância desmantelada. Não foi dado a esse Petrônio do século XIX acabar coroado de rosas, entre formosos braços femininos, ao som das cítaras, na ebriedade de um festim magnífico. Seu fim não se revestiu ao menos da beleza trágica que iluminou a última hora de alguns outros eleitos do espírito, como Pouskine sucumbindo na violência de um duelo, Chenier no cadafalso, Shelley nas ondas, Byron nas pugnas pela liberdade. De Wilde pode dizer-se que não morreu. Finou-se apagadamente na penumbra de um quarto ultramodesto de um hotel barato, abandonado pelo destino e pelos homens.
No banquete de Agatão ele teria tomado
a palavra ao lado de Alcebíades e a confissão de sua psicopatia teria provocado,
quando muito, o sorriso malicioso de alguns convivas. Mas a moral, ao tempo de
Péricles, sob o céu radioso da Grécia, era muito diversa da do tempo da rainha
Vitória, sob a umidade dos blacks-fegs londrisa.
Esperemos, no entanto, que sobre a sepultura de Wilde floresça a rosa branca que
vicejou sobre a cova do réprobo que ele viu enforcar no cárcere de Reading.
Ao tempo de seus triunfos mundanos, quando pisava as alcatifas dos palácios,
ostentava cravos verdes na lapela, usava camafeus que haviam pertencido,
segundo dizia ele, a múmias do Egito, fumava cigarros de ponta de ouro e
esmaltava as frases que ouvidos ávidos escutavam, de todos os recamos, de todas
as lantejoulas, de todas as pedrarias de uma imaginação poderosa, ao tempo em
que as grandes damas nos salões dourados suspendiam o ritmo dos pesados leques
de plumas para ouvir-lhe um paradoxo, Wilde proclamava-se pomposamente — o Rei
da Vida. Esta não tardou em mostrar-lhe a facilidade com que destrona os
soberanos e despedaça os tronos.
Paradoxal como Carlyle ou Rémy de Gourmont,
cansado talvez de realizar em seus livros todas as audácias do pensamento e da frase,
Oscar Wilde quis viver este paradoxo impossível: contrapor ao rígido formalismo
da hipócrita moral britânica, intransigente nas questões de decoro, a exibição
escandalosa de vícios que chocavam profundamente a austeridade superficial dos ingleses
dissimulados.
A personalidade e a obra de Oscar
Wilde ainda esperam o crítico imparcial e sereno que as julgue com mais
perfeita segurança. Entre o livro manifestamente tendencioso de Alfredo Douglas
e as apreciações quase sempre incondicionalmente encomiásticas de Roberto Ross,
haverá lugar para um estudo severo e desapaixonado. Não será nunca demais assinalar
que a desventura trouxe uma feição inteiramente nova para a obra do escritor inglês;
a Bailada do Cárcere se Reading é o
poema de suprema piedade, através do qual todos os homens confraternizam pela dor
assim como o De Profundis é um
evangelho de humildade suprema, a mea-culpa
de um pecador que se reabilita pela contrição.
Alma cosmopolita, evocador admirável
de civilizações extintas, Wilde sabia fazer resurgir com verdadeira mão de
mestre os ambientes das tragédias e de muitos contos que escreveu, bem como a
alma das personagens que neles tomaram parte. Em Salomé é o Oriente, com toda a sua fatalidade, a sua pompa, as suas
superstições, as suas aberrações sexuais, as mortes violentas em torno da mesa
dos banquetes, os pássaros de agouro que esvoaçam como um vento gelado... No Aniversário da Infanta é a Espanha de
Carlos II, com o seu luxo sombrio, a sua pragmática inflexível mumificando a
vida, contendo todos os impulsos, preocupada com os demônios e os auto-de-fé, trans formando o Escurial
num palácio sinistro, onde os fantasmas se movem pesados de veludos, com punhos
de renda e golas de cambraia. Na Tragédia
Florentina é a Renascença do século décimo sexto com requintes de elegância
e civilizações sutilíssimas, e sobre a qual paira ainda o espírito de Lourenço
e de Maquiavel. É o tempo em que, no dizer sugestivo de um escritor, “depois de
haver um homem golpeado a garganta de seu inimigo, numa betesga escura,
dirige-se a uma vila suntuosa nas vizinhanças
de Florença e aí discute tranquilamente, elegantemente, acerca da imortalidade
da alma, como um sábio da academia platônica, em fato do risonho jardim da
Toscana”.
É a época em que o Magnífico, na hora da
morte, lastima não haver tido tempo para completar a sua biblioteca e em que o
autor do Príncipe, sabedor do êxito
da emboscada do Simigaglia, preparada por César Bórgia para colher nela desafetos
seus, classificá-la de “il belíssimo inganno”.
No ataque de Gaeta, como relembra
Lebey, Afonso o Magnânimo proíbe os seus soldados que empreguem na construção
de fortificações pedras de uma vila que
dizem haver pertencido à Cícero, Ficine escreveu três tratados sobre o sol, a
luz e a volúpia e Nano Crossa no seu leito de morte pede que lhe tragam um
outro crucifixo porque o que tem sob os seus olhos de agonizante é mal
esculpido.
Há na alma da Renascença muita coisa
da do Oriente, porém um Oriente mais requintado e polido pela cultura do
ambiente mediterrâneo; a mesma luxúria, o mesmo sabor de sangue nas bordas da taça
por onde se bebe o amor, mas tudo prestigiado pelo condão maravilhoso da Arte.
Aqui já se não morre, como no Oriente aos golpes brutais de toscas e grosseiras
cimitarras, mas traspassado por finíssimos estoques em cujo punhos refulgem as
pedras preciosas e cujas lâminas foram às vezes ilustradas pelo cinzel de
gravadores insignes. A cólera já não se desencadeia à oriental, instantânea e flumínea,
mas aguarda a cumplicidade da sombra e se compraz em preparar pacientemente a
armadilha, ou confeccionar a peçonha. O ímpeto, o arremesso já são refreados;
há uma disciplina das emoções. A vítima escolhida é instada com as palavras
mais corteses ou carinhosas para comparecer à mesa de um suntuoso jantar, de
onde se erguerá dentro em pouco com a morte nas entranhas, entre os sorrisos e
as amabilidades do anfitrião. Na Tragédia
Florentina, a par de todo o deslumbramento cênico, Wilde surpreende maravilhosamente
a alma de Bianca e de Simone nas suas mutações imprevistas, até ao final da peça,
cujas últimas frases de diálogo porque acaba são uma síntese admirável do espírito
da Renascença. Guido Bardi, estrangulado, expira, encomendado a alma a Jesus Cristo,
Bianca e Simoné encaram-se pasmados; ela pergunta-lhe porque lhe não dissera ele
até então que era tão forte; ao que o marido lhe responde por uma outra
pergunta: por que lhe não havia ela dito até aquele dia que era tão bela?...
Toda a Renascença está nisto, efetivamente: no culto da Força e da Beleza,
exercido entre os brocados, os damascos, as tapeçarias, os cristais e os
embustes, a sensualidade complicada e refinada pelos jogos maravilhosos da
imaginação e da inteligência.
Oscar Wilde, o homem que tão bem nos soube
descrever todas essas elegâncias e magnificências, não podia sobreviver por
muito tempo à pior de todas as misérias — a miséria moral.
A nós, que o amamos, só nos resta
esperar que a beleza de sua obra e os milagres do esquecimento consigam delir
de sobre sua memória a tacha de ignomínia com que uma pátria ingrata estigmatizou
um de seus filhos ilustre.
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JORGE JOBIM
Revista Ilustração Brasileira, 25 de
dezembro de 1922.
Pesquisa, transcrição e adaptação
ortográfica: Iba Mendes (2018)
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