O GUARDADOR DE REBANHOS
I
EU NUNCA GUARDEI
REBANHOS
Eu nunca guardei
rebanhos,
Mas é como se os
guardasse.
Minha alma é
como um pastor,
Conhece o vento
e o sol
E anda pela mão
das Estações
A seguir e a
olhar.
Toda a paz da
Natureza sem gente
Vem sentar-se a
meu lado.
Mas eu fico
triste como um pôr de sol
Para a nossa
imaginação,
Quando esfria no
fundo da planície
E se sente a
noite entrada
Como uma
borboleta pela janela.
Mas a minha
tristeza é sossego
Porque é natural
e justa
E é o que deve
estar na alma
Quando já pensa
que existe
E as mãos colhem
flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de
chocalhos
Para além da
curva da estrada,
Os meus
pensamentos são contentes.
Só tenho pena de
saber que eles são contentes,
Porque, se o não
soubesse,
Em vez de serem
contentes e tristes,
Seriam alegres e
contentes.
Pensar incomoda
como andar à chuva
Quando o vento
cresce e parece que chove mais.
Não tenho
ambições nem desejos
Ser poeta não é
uma ambição minha
É a minha
maneira de estar sozinho.
E se desejo às
vezes
Por imaginar,
ser cordeirinho
(Ou ser o
rebanho todo
Para andar
espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa
feliz ao mesmo tempo),
É só porque
sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma
nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um
silêncio pela erva fora.
Quando me sento
a escrever versos
Ou, passeando
pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos
num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado
nas mãos
E vejo um
recorte de mim
No cimo dum
outeiro,
Olhando para o
meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para
as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo
vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir
que compreende.
Saúdo todos os
que me lerem,
Tirando-lhes o
chapéu largo
Quando me veem à
minha porta
Mal a diligência
levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e
desejo-lhes sol,
E chuva, quando
a chuva é precisa,
E que as suas
casas tenham
Ao pé duma
janela aberta
Uma cadeira
predileta
Onde se sentem,
lendo os meus versos.
E ao lerem os
meus versos pensem
Que sou qualquer
coisa natural —
Por exemplo, a
árvore antiga
À sombra da qual
quando crianças
Se sentavam com
um baque, cansados de brincar,
E limpavam o
suor da testa quente
Com a manga do
bibe riscado.
II
O MEU OLHAR
O MEU OLHAR
O meu olhar é
nítido como um girassol.
Tenho o costume
de andar pelas estradas
Olhando para a
direita e para a esquerda,
E de, vez em
quando olhando para trás...
E o que vejo a
cada momento
É aquilo que
nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por
isso muito bem...
Sei ter o pasmo
essencial
Que tem uma
criança se, ao nascer,
Reparasse que
nascera deveras...
Sinto-me nascido
a cada momento
Para a eterna
novidade do Mundo...
Creio no mundo
como num malmequer,
Porque o vejo. Mas
não penso nele
Porque pensar é
não compreender...
O Mundo não se
fez para pensarmos nele
(Pensar é estar
doente dos olhos)
Mas para
olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho
filosofia: tenho sentidos...
Se falo na
Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a
amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama
nunca sabe o que ama
Nem sabe por que
ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna
inocência,
E a única
inocência não pensar...
III
AO ENTARDECER
Ao entardecer,
debruçado pela janela,
E sabendo de
soslaio que há campos em frente,
Leio até me
arderem os olhos
O livro de
Cesário Verde.
Que pena que
tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso
em liberdade pela cidade.
Mas o modo como
olhava para as casas,
E o modo como
reparava nas ruas,
E a maneira como
dava pelas coisas,
É o de quem olha
para árvores,
E de quem desce
os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar
nas flores que há pelos campos...
Por isso ele
tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca
disse bem que tinha,
Mas andava na
cidade como quem anda no campo
E triste como
esmagar flores em livros
E pôr plantas em
jarros...
IV
ESTA TARDE A
TROVOADA CAIU
Esta tarde a
trovoada caiu
Pelas encostas
do céu abaixo
Como um
pedregulho enorme...
Como alguém que
duma janela alta
Sacode uma
toalha de mesa,
E as migalhas, por
caírem todas juntas,
Fazem algum
barulho ao cair,
A chuva chovia
do céu
E enegreceu os
caminhos...
Quando os
relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o
espaço
Como uma grande
cabeça que diz que não,
Não sei porquê — eu não tinha medo —
Não sei porquê — eu não tinha medo —
Pus-me a rezar a
Santa Bárbara
Como se eu fosse
a velha tia de alguém...
Ah! é que
rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me
ainda mais simples
Do que julgo que
sou...
Sentia-me
familiar e caseiro
E tendo passado
a vida
Tranquilamente,
como o muro do quintal;
Tendo ideias e
sentimentos por os ter
Como uma flor
tem perfume e cor...
Sentia-me alguém
que nossa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer
em Santa Bárbara!
(Quem crê que há
Santa Bárbara,
Julgará que ela
é gente e visível
Ou que julgará
dela?)
(Que artifício!
Que sabem
As flores, as
árvores, os rebanhos,
De Santa
Bárbara?... Um ramo de árvore,
Se pensasse,
nunca podia
Construir santos
nem anjos...
Poderia julgar
que o sol
É Deus, e que a
trovoada
É uma quantidade
de gente
Zangada por cima
de nós...
Ali, como os mais
simples dos homens
São doentes e
confusos e estúpidos
Ao pé da clara
simplicidade
E saúde em
existir
Das árvores e
das plantas!)
E eu, pensando
em tudo isto,
Fiquei outra vez
menos feliz...
Fiquei sombrio e
adoecido e soturno
Como um dia em
que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequer de
noite chega.
V
HÁ METAFÍSICA
BASTANTE EM NÃO PENSAR EM NADA
Há metafísica
bastante em não pensar em nada.
O que penso eu
do mundo?
Sei lá o que
penso do mundo!
Se eu adoecesse
pensaria nisso.
Que ideia tenho
eu das coisas?
Que opinião
tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu
meditado sobre Deus e a alma
E sobre a
criação do Mundo?
Não sei. Para
mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É
correr as cortinas
Da minha janela
(mas ela não tem cortinas).
O mistério das coisas?
Sei lá o que é mistério!
O único mistério
é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol
e fecha os olhos,
Começa a não
saber o que é o sol
E a pensar
muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os
olhos e vê o sol,
E já não pode
pensar em nada,
Porque a luz do
sol vale mais que os pensamentos
De todos os
filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não
sabe o que faz
E por isso não
erra e é comum e boa.
Metafísica? Que
metafísica têm aquelas árvores?
A de serem
verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto
na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não
sabemos dar por elas.
Mas que melhor
metafísica que a delas,
Que é a de não
saber para que vivem
Nem saber que o
não sabem?
"Constituição
íntima das coisas"...
"Sentido
íntimo do Universo"...
Tudo isto é
falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que
se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em
razões e fins
Quando o começo
da manhã está raiando, e pelos lados das árvores Um vago ouro lustroso vai
perdendo a escuridão.
Pensar no
sentido íntimo das coisas
É acrescentado,
como pensar na saúde
Ou levar um copo
à água das fontes.
O único sentido
íntimo das coisas
É elas não terem
sentido íntimo nenhum.
Não acredito em
Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse
que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que
viria falar comigo
E entraria pela
minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui
estou!
(Isto é talvez
ridículo aos ouvidos
De quem, por não
saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende
quem fala delas
Com o modo de
falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as
flores e as árvores
E os montes e
sol e o luar,
Então acredito
nele,
Então acredito
nele a toda a hora,
E a minha vida é
toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão
com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as
árvores e as flores
E os montes e o
luar e o sol,
Para que lhe
chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores
e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele
se fez, para eu o ver,
Sol e luar e
flores e árvores e montes,
Se ele me
aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e
flores,
É que ele quer
que eu o conheça
Como árvores e
montes e flores e luar e sol.
E por isso eu
obedeço-lhe,
(Que mais sei eu
de Deus que Deus de si próprio?)
Obedeço-lhe a
viver, espontaneamente,
Como quem abre
os olhos e vê,
E chamo-lhe luar
e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem
pensar nele,
E penso-o vendo
e ouvindo,
E ando com ele a
toda a hora.
VI
PENSAR EM DEUS
Pensar em Deus é
desobedecer a Deus,
Porque Deus quis
que o não conhecêssemos,
Por isso se nos
não mostrou...
Sejamos simples
e calmos,
Como os regatos
e as árvores,
E Deus
amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as
árvores e os regatos,
E dar-nos-á
verdor na sua primavera,
E um rio aonde
ir ter quando acabemos!...
VII
DA MINHA ALDEIA
Da minha aldeia veio
quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha
aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do
tamanho do que vejo
E não, do
tamanho da minha altura...
Nas cidades a
vida é mais pequena
Que aqui na
minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as
grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o
horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos
pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos
pobres porque a nossa única riqueza é ver.
VIII
NUM MEIO-DIA DE FIM DE PRIMAVERA
NUM MEIO-DIA DE FIM DE PRIMAVERA
Num meio-dia de
fim de primavera
Tive um sonho
como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo
descer à terra.
Veio pela
encosta de um monte
Tornado outra
vez menino,
A correr e a
rolar-se pela erva
E a arrancar
flores para as deitar fora
E a rir de modo
a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do
céu.
Era nosso demais
para fingir
De segunda
pessoa da Trindade.
No céu era tudo
falso, tudo em desacordo
Com flores e
árvores e pedras.
No céu tinha que
estar sempre sério
E de vez em
quando de se tornar outra vez homem
E subir para a
cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa
toda à roda de espinhos
E os pés
espetados por um prego com cabeça,
E até com um
trapo à roda da cintura
Como os pretos
nas ilustrações.
Nem sequer o
deixavam ter pai e mãe
Como as outras
crianças.
O seu pai era
duas pessoas
Um velho chamado
José, que era carpinteiro,
E que não era
pai dele;
E o outro pai
era uma pomba estúpida,
A única pomba
feia do mundo
Porque não era
do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não
tinha amado antes de o ter.
Não era mulher:
era uma mala
Em que ele tinha
vindo do céu.
E queriam que
ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera
pai para amar com respeito,
Pregasse a
bondade e a justiça!
Um dia que Deus
estava a dormir
E o Espírito Santo
andava a voar,
Ele foi à caixa
dos milagres e roubou três.
Com o primeiro
fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo
criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro
criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o
pregado na cruz que há no céu
E serve de
modelo às outras.
Depois fugiu
para o sol
E desceu pelo
primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na
minha aldeia comigo.
É uma criança
bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao
braço direito,
Chapinha nas
poças de água,
Colhe as flores
e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos
burros,
Rouba a fruta
dos pomares
E foge a chorar
e a gritar dos cães.
E, porque sabe
que elas não gostam
E que toda a
gente acha graça,
Corre atrás das
raparigas pelas estradas
Que vão em
ranchos pela estradas
com as bilhas às
cabeças
E levanta-lhes
as saias.
A mim ensinou-me
tudo.
Ensinou-me a
olhar para as coisas.
Aponta-me todas
as coisas que há nas flores.
Mostra-me como
as pedras são engraçadas
Quando a gente
as tem na mão
E olha devagar
para elas.
Diz-me muito mal
de Deus.
Diz que ele é um
velho estúpido e doente,
Sempre a
escarrar no chão
E a dizer
indecências.
A Virgem Maria
leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito
Santo coça-se com o bico
E empoleira-se
nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é
estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus
não percebe nada
Das coisas que
criou —
"Se é que
ele as criou, do que duvido" —
"Ele diz,
por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não
cantam nada.
Se cantassem
seriam cantores.
Os seres existem
e mais nada,
E por isso se
chamam seres."
E depois,
cansados de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus
adormece nos meus braços
E eu levo-o ao
colo para casa.
.............................................................................
Ele mora comigo
na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna
Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano
que é natural,
Ele é o divino
que sorri e que brinca.
E por isso é que
eu sei com toda a certeza
Que ele é o
Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão
humana que é divina
É esta minha
quotidiana vida de poeta,
E é porque ele
anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu
mínimo olhar
Me enche de
sensação,
E o mais pequeno
som, seja do que for,
Parece falar
comigo.
A Criança Nova
que habita onde vivo
Dá-me uma mão a
mim
E a outra a tudo
que existe
E assim vamos os
três pelo caminho que houver,
Saltando e
cantando e rindo
E gozando o
nosso segredo comum
Que é o de saber
por toda a parte
Que não há
mistério no mundo
E que tudo vale
a pena.
A Criança Eterna
acompanha-me sempre.
A direção do meu
olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido
atento alegremente a todos os sons
São as cócegas
que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem
um com o outro
Na companhia de
tudo
Que nunca pensamos
um no outro,
Mas vivemos
juntos e dois
Com um acordo
íntimo
Como a mão
direita e a esquerda.
Ao anoitecer
brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da
porta de casa,
Graves como
convém a um deus e a um poeta,
E como se cada
pedra
Fosse todo um
universo
E fosse por isso
um grande perigo para ela
Deixá-la cair no
chão.
Depois eu
conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri,
porque tudo é incrível.
Ri dos reis e
dos que não são reis,
E tem pena de
ouvir falar das guerras,
E dos comércios,
e dos navios
Que ficam fumo
no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe
que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem
ao florescer
E que anda com a
luz do sol
A variar os
montes e os vales,
E a fazer doer
nos olhos os muros caiados.
Depois ele
adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo
para dentro de casa
E deito-o,
despindo-o lentamente
E como seguindo
um ritual muito limpo
E todo materno
até ele estar nu.
Ele dorme dentro
da minha alma
E às vezes
acorda de noite
E brinca com os
meus sonhos.
Vira uns de pernas
para o ar,
Põe uns em cima
dos outros
E bate as palmas
sozinho
Sorrindo para o
meu sono.
......................................................................
Quando eu
morrer, filhinho,
Seja eu a
criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao
colo
E leva-me para
dentro da tua casa.
Despe o meu ser
cansado e humano
E deita-me na
tua cama.
E conta-me
histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos
teus para eu brincar
Até que nasça
qualquer dia
Que tu sabes
qual é.
.....................................................................
Esta é a
história do meu Menino Jesus.
Por que razão
que se perceba
Não há de ser
ela mais verdadeira
Que tudo quanto
os filósofos pensam
E tudo quanto as
religiões ensinam?
IX
SOU UM GUARDADOR DE REBANHOS
SOU UM GUARDADOR DE REBANHOS
Sou um guardador
de rebanhos.
O rebanho é os
meus pensamentos
E os meus
pensamentos são todos sensações.
Penso com os
olhos e com os ouvidos
E com as mãos e
os pés
E com o nariz e
a boca.
Pensar uma flor
é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto
é saber-lhe o sentido.
Por isso quando
num dia de calor
Me sinto triste
de gozá-lo tanto.
E me deito ao
comprido na erva,
E fecho os olhos
quentes,
Sinto todo o meu
corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e
sou feliz.
X
OLÁ, GUARDADOR
DE REBANHOS
"Olá,
guardador de rebanhos,
Aí à beira da
estrada,
Que te diz o
vento que passa?"
"Que é
vento, e que passa,
E que já passou
antes,
E que passará
depois.
E a ti o que te
diz?"
"Muita coisa
mais do que isso.
Fala-me de
muitas outras coisas.
De memórias e de
saudades
E de coisas que
nunca foram."
"Nunca
ouviste passar o vento.
O vento só fala
do vento.
O que lhe
ouviste foi mentira,
E a mentira está
em ti."
XI
AQUELA SENHORA TEM UM PIANO
AQUELA SENHORA TEM UM PIANO
Aquela senhora
tem um piano
Que é agradável
mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é
preciso ter um piano?
O melhor é ter
ouvidos
E amar a
Natureza.
XII
OS PASTORES DE VIRGÍLIO
OS PASTORES DE VIRGÍLIO
Os pastores de
Virgílio tocavam avenas e outras coisas
E cantavam de amor literariamente.
E cantavam de amor literariamente.
(Depois — eu
nunca li Virgílio.
Para que o havia
eu de ler?)
Mas os pastores
de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga.
E a Natureza é bela e antiga.
XIII
LEVE
LEVE
Leve, leve,
muito leve,
Um vento muito
leve passa,
E vai-se, sempre
muito leve.
E eu não sei o
que penso
Nem procuro
sabê-lo.
XIV
NÃO ME IMPORTO COM AS RIMAS
NÃO ME IMPORTO COM AS RIMAS
Não me importo
com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores
iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo
como as flores têm cor
Mas com menos
perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o
meu exterior.
Olho e
comovo-me,
Comovo-me como a
água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento...
E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento...
XV
AS QUATRO CANÇÕES
AS QUATRO CANÇÕES
As quatro
canções que seguem
Separam-se de
tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o
que eu sinto,
São do contrário
do que eu sou...
Escrevi-as
estando doente
E por isso elas
são naturais
E concordam com
aquilo que sinto,
Concordam com
aquilo com que não concordam...
Estando doente
devo pensar o contrário
Do que penso
quando estou são.
(Senão não
estaria doente),
Devo sentir o
contrário do que sinto
Quando sou eu na
saúde,
Devo mentir à
minha natureza
De criatura que
sente de certa maneira...
Devo ser todo
doente — ideias e tudo.
Quando estou
doente, não estou doente para outra coisa.
Por isso essas
canções que me renegam
Não são capazes
de me renegar
E são a paisagem
da minha alma de noite,
A mesma ao
contrário...
XVI
QUEM ME DERA
QUEM ME DERA
Quem me dera que
a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de
onde veio volta depois
Quase à noitinha
pela mesma estrada.
Eu não tinha que
ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice
não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não
servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava
virado e partido no fundo de um barranco.
XVII
NO MEU PRATO
NO MEU PRATO
No meu prato que
mistura de Natureza!
As minhas irmãs
as plantas,
As companheiras
das fontes, as santas
A quem ninguém
reza...
E cortam-as e
vêm à nossa mesa
E nos hotéis os
hóspedes ruidosos,
Que chegam com
correias tendo mantas
Pedem
"Salada", descuidosos...,
Sem pensar que
exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e
os seus filhos primeiros,
As primeiras
verdes palavras que ela tem,
As primeiras coisas
vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas
desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde
a pomba apareceu
O arco-íris se
esbateu...
XVIII
QUEM ME DERA QUE EU FOSSE O PÓ DA ESTRADA
QUEM ME DERA QUE EU FOSSE O PÓ DA ESTRADA
Quem me dera que
eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos
pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que
eu fosse os rios que correm
E que as
lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera que
eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...
Quem me dera que
eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...
E que ele me batesse e me estimasse...
Antes isso que
ser o que atravessa a vida
Olhando para
trás de si e tendo pena...
XIX
O LUAR
O LUAR
O luar quando
bate na relva
Não sei que coisa
me lembra...
Lembra-me a voz
da criada velha
Contando-me
contos de fadas.
E de como Nossa
Senhora vestida de mendiga
Andava à noite
nas estradas
Socorrendo as
crianças maltratadas...
Se eu já não
posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
Para que bate o luar na relva?
XX
O TEJO É MAIS BELO
O TEJO É MAIS BELO
O Tejo é mais
belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é
mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que
corre pela minha aldeia.
O Tejo tem
grandes navios
E navega nele
ainda,
Para aqueles que
veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
A memória das naus.
O Tejo desce de
Espanha
E o Tejo entra
no mar em Portugal.
Toda a gente
sabe isso.
Mas poucos sabem
qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso
porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se
para o Mundo.
Para além do
Tejo há a América
E a fortuna
daqueles que a encontram.
Ninguém nunca
pensou no que há para além
Do rio da minha
aldeia.
O rio da minha
aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé
dele está só ao pé dele.
XXI
SE EU PUDESSE
SE EU PUDESSE
Se eu pudesse
trincar a terra toda
E sentir-lhe uma
paladar,
Seria mais feliz
um momento...
Mas eu nem
sempre quero ser feliz.
É preciso ser de
vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias
de sol,
E a chuva,
quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a
infelicidade com a felicidade
Naturalmente,
como quem não estranha
Que haja
montanhas e planícies
E que haja
rochedos e erva...
O que é preciso
é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou
na infelicidade,
Sentir como quem
olha,
Pensar como quem
anda,
E quando se vai
morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim
seja...
XXII
NUM DIA DE VERÃO
NUM DIA DE VERÃO
Como quem num
dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico
confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem o quê...
Não sei bem como nem o quê...
Mas quem me
mandou a mim querer perceber?
Quem me disse
que havia que perceber?
Quando o Verão
me passa pela cara
A mão leve e
quente da sua brisa,
Só tenho que
sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir
desagrado porque é quente,
E de qualquer
maneira que eu o sinta,
Assim, porque
assim o sinto, é que é meu dever senti-lo...
XXIII
O MEU OLHAR
O MEU OLHAR
O meu olhar azul
como o céu
É calmo como a
água ao sol.
É assim, azul e
calmo,
Porque não
interroga nem se espanta...
Se eu
interrogasse e me espantasse
Não nasciam
flores novas nos prados
Nem mudaria
qualquer coisa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se
nascessem flores novas no prado
E se o sol
mudasse para mais belo,
Eu sentiria
menos flores no prado
E achava mais
feio o sol...
Porque tudo é
como é e assim é que é,
E eu aceito, e
nem agradeço,
Para não parecer
que penso nisso...)
XXIV
O QUE NÓS VEMOS
O QUE NÓS VEMOS
O que nós vemos
das coisas são as coisas.
Por que veríamos
nós uma coisa se houvesse outra?
Por que é que
ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir
são ver e ouvir?
O essencial é
saber ver,
Saber ver sem
estar a pensar,
Saber ver quando
se vê,
E nem pensar
quando se vê
Nem ver quando
se pensa.
Mas isso
(tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um
estudo profundo,
Uma aprendizagem
de desaprender
E uma sequestração
na liberdade daquele convento
De que os poetas
dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as
penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal
as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores
senão flores.
Sendo por isso
que lhes chamamos estrelas e flores.
XXV
AS BOLAS DE SABÃO
AS BOLAS DE SABÃO
As bolas de sabão
que esta criança
Se entretém a
largar de uma palhinha
São
translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis
e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos
como as coisas,
São aquilo que
são
Com uma precisão
redondinha e aérea,
E ninguém, nem
mesmo a criança que as deixa,
Pretende que
elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se veem
no ar lúcido.
São como a brisa
que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos
que passa
Porque qualquer coisa
se aligeira em nós
E aceita tudo
mais nitidamente.
XXVI
ÀS VEZES
ÀS VEZES
Às vezes, em
dias deluz perfeita e exata,
Em que as coisas
têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim
próprio devagar
Por que sequer
atribuo eu
Beleza às coisas.
Uma flor acaso
tem beleza?
Tem beleza acaso
um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência
apenas.
A beleza é o
nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas
em troca do agrado que me dão.
Não significa
nada.
Então por que
digo eu das coisas: são belas?
Sim, mesmo a
mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm
ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas
que simplesmente existem.
Que difícil ser
próprio e não ver senão o visível!
XXVII
SÓ A NATUREZA É DIVINA
SÓ A NATUREZA É DIVINA
Só a natureza é
divina, e ela não é divina...
Se falo dela
como de um ente
É que para falar
dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá
personalidade às coisas,
E impõe nome às coisas.
Mas as coisas
não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu
é grande a terra larga,
E o nosso
coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu
por tudo quanto sei.
Gozo tudo isso
como quem sabe que há o sol.
XXVIII
LI HOJE
LI HOJE
Li hoje quase
duas páginas
Do livro dum
poeta místico,
E ri como quem
tem chorado muito.
Os poetas
místicos são filósofos doentes,
E os filósofos
são homens doidos.
Porque os poetas
místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios
têm êxtases ao luar.
Mas flores, se
sentissem, não eram flores,
Eram gente;
Eram gente;
E se as pedras
tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam
homens doentes.
É preciso não
saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma
das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si
próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios
não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo
a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que
compreendo a Natureza por fora;
E não a
compreendo por dentro
Porque a
Natureza não tem dentro;
Senão não era a
Natureza.
XXIX
NEM SEMPRE SOU IGUAL
NEM SEMPRE SOU IGUAL
Nem sempre sou
igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não
mudo muito.
A cor das flores
não é a mesma ao sol
De que quando
uma nuvem passa
Ou quando entra
a noite
E as flores são
cor da sombra.
Mas quem olha
bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando
pareço não concordar comigo,
Reparem bem para
mim:
Se estava virado
para a direita,
Voltei-me agora
para a esquerda,
Mas sou sempre
eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre,
graças ao céu e à terra
E aos meus olhos
e ouvidos atentos
E à minha clara
simplicidade de alma...
XXX
SE QUISEREM QUE EU TENHA UM MISTICISMO
SE QUISEREM QUE EU TENHA UM MISTICISMO
Se quiserem que
eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas
só com o corpo.
A minha alma é
simples e não pensa.
O meu misticismo
é não querer saber.
É viver e não
pensar nisso.
Não sei o que é
a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum
outeiro
Numa casa caiada
e sozinha,
E essa é a minha
definição.
XXXI
SE ÀS VEZES DIGO QUE AS FLORES SORRIEM
SE ÀS VEZES DIGO QUE AS FLORES SORRIEM
Se às vezes digo
que as flores sorriem
E se eu disser
que os rios cantam,
Não é porque eu
julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
E cantos no correr dos rios...
É porque assim
faço mais sentir aos homens falsos
A existência
verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo
para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez
de sentidos...
Não concordo
comigo mas absolvo-me,
Porque só sou
essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens
que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser
linguagem nenhuma.
XXXII
ONTEM À TARDE
ONTEM À TARDE
Ontem à tarde um
homem das cidades
Falava à porta
da estalagem.
Falava comigo
também.
Falava da
justiça e da luta para haver justiça
E dos operários
que sofrem,
E do trabalho
constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que
só têm costas para isso.
E, olhando para
mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com
agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele
sentia, e a compaixão
Que ele dizia
que sentia.
(Mas eu mal o
estava ouvindo.
Que me importam
a mim os homens
E o que sofrem
ou supõem que sofrem?
Sejam como eu —
não sofrerão.
Todo o mal do
mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o
céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é
perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava
pensando
Quando o amigo
de gente falava
(E isso me
comoveu até às lágrimas),
Era em como o
murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse
entardecer
Não parecia os
sinos duma capela pequenina
A que fossem à
missa as flores e os regatos
E as almas
simples como a minha.
(Louvado seja
Deus que não sou bom,
E tenho o
egoísmo natural das flores
E dos rios que
seguem o seu caminho
Preocupados sem
o saber
Só com florir e
ir correndo.
É essa a única
missão no Mundo,
Essa — existir
claramente,
E saber faze-lo
sem pensar nisso.
E o homem
calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com
o poente quem odeia e ama?
XXXIII
POBRES DAS FLORES
POBRES DAS FLORES
Pobres das
flores dos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo
da polícia...
Mas tão boas que
florescem do mesmo modo
E têm o mesmo
sorriso antigo
Que tiveram para
o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu
aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas
falavam...
XXXIV
ACHO TÃO NATURAL QUE NÃO SE PENSE
ACHO TÃO NATURAL QUE NÃO SE PENSE
Acho tão natural
que não se pense
Que me ponho a
rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de
quê, mas é de qualquer coisa
Que tem que ver
com haver gente que pensa...
Que pensará o
meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às
vezes isto até dar por mim
A perguntar-me coisas...
E então
desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse
por mim com um pé dormente...
Que pensará isto
de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra
consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver,
que a tenha...
Que me importa
isso a mim?
Se eu pensasse
nessas coisas,
Deixaria de ver
as árvores e as plantas
E deixava de ver
a Terra,
Para ver só os
meus pensamentos...
Entristecia e
ficava às escuras.
E assim, sem
pensar tenho a Terra e o Céu.
XXXV
O LUAR
O LUAR
O luar através
dos altos ramos,
Dizem os poetas
todos que ele é mais
Que o luar através
dos altos ramos.
Mas para mim,
que não sei o que penso,
O que o luar
através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através
dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar
através dos altos ramos.
XXXVI
HÁ POETAS QUE SÃO ARTISTAS
HÁ POETAS QUE SÃO ARTISTAS
E há poetas que
são artistas
E trabalham nos
seus versos
Como um
carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não
saber florir!
Ter que pôr
verso sobre verso, corno quem constrói um muro
E ver se está
bem, e tirar se não está!...
Quando a única
casa artística é a Terra toda
Que varia e está
sempre bem e é sempre a mesma.
Penso nisto, não
como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as
flores e sorrio...
Não sei se elas
me compreendem
Nem sei eu as
compreendo a elas,
Mas sei que a
verdade está nelas e em mim
E na nossa comum
divindade
De nos deixarmos
ir e viver pela Terra
E levar ao solo
pelas Estações contentes
E deixar que o
vento cante para adormecermos
E não termos
sonhos no nosso sono.
XXXVII
COMO UM GRANDE BORRÃO
COMO UM GRANDE BORRÃO
Como um grande
borrão de fogo sujo
O sol posto
demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo
vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum
comboio longínquo.
Neste momento
vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo
plácido
Que aparece e
desaparece.
Também às vezes,
à flor dos ribeiros,
Formam-se bolhas
na água
Que nascem e se
desmancham
E não têm
sentido nenhum
Salvo serem
bolhas de água
Que nascem e se
desmancham.
XXXVIII
BENDITO SEJA O MESMO SOL
BENDITO SEJA O MESMO SOL
Bendito seja o
mesmo sol de outras terras
Que faz meus
irmãos todos os homens
Porque todos os
homens, um momento no dia, o olham como eu,
E, nesse puro
momento
Todo limpo e
sensível
Regressam
lacrimosamente
E com um suspiro
que mal sentem
Ao homem
verdadeiro e primitivo
Que via o Sol
nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é
natural — mais natural
Que adorar o ouro
e Deus
E a arte e a
moral...
XXXIX
O MISTÉRIO DAS COISAS
O MISTÉRIO DAS COISAS
O mistério das coisas,
onde está ele?
Onde está ele
que não aparece
Pelo menos a
mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio
disso e que sabe a árvore?
E eu, que não
sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho
para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um
regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único
sentido oculto das coisas
É elas não terem
sentido oculto nenhum,
É mais estranho
do que todas as estranhezas
E do que os
sonhos de todos os poetas
E os pensamentos
de todos os filósofos,
Que as coisas
sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada
que compreender.
Sim, eis o que
os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não
têm significação: têm existência.
As coisas são o
único sentido oculto das coisas.
XL
PASSA UMA BORBOLETA
PASSA UMA BORBOLETA
Passa uma
borboleta por diante de mim
E pela primeira
vez no Universo eu reparo
Que as
borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as
flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem
cor nas asas da borboleta,
No movimento da
borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que
tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é
apenas borboleta
E a flor é
apenas flor.
XLI
No Entardecer
No Entardecer
No entardecer
dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não
haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um
momento, uma leve brisa...
Mas as árvores
permanecem imóveis
Em todas as
folhas das suas folhas
E os nossos
sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram a ilusão
do que lhes agradaria...
Ah, os sentidos,
os doentes que veem e ouvem!
Fôssemos nós
como devíamos ser
E não haveria em
nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-ia
sentir com clareza e vida
E nem repararmos
para que há sentidos...
Mas graças a
Deus que há imperfeição no Mundo
Porque a imperfeição
é uma coisa,
E haver gente
que erra é original,
E haver gente
doente torna o Mundo engraçado.
Se não houvesse
imperfeição, havia uma coisa a menos,
E deve haver muita coisa
Para termos
muito que ver e ouvir...
XLII
PASSOU A DILIGÊNCIA
PASSOU A DILIGÊNCIA
Passou a diligência
pela estrada, e foi-se;
E a estrada não
ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a ação
humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e
nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre
pontual todos os dias.
XLIII
ANTES O VOO DA AVE
ANTES O VOO DA AVE
Antes o voo da
ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem
do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e
esquece, e assim deve ser.
O animal, onde
já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já
esteve, o que não serve para nada.
A recordação é
uma traição à Natureza,
Porque a
Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é
nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave,
passa, e ensina-me a passar!
XLIV
ACORDO DE NOITE
Acordo de noite
subitamente,
E o meu relógio
ocupa a noite toda.
Não sinto a
Natureza lá fora.
O meu quarto é
uma coisa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um
sossego como se nada existisse.
Só o relógio
prossegue o seu ruído.
E esta pequena coisa
de engrenagens que está em cima da minha mesa
Abafa toda a
existência da terra e do céu...
Quase que me
perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e
sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa
que o meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a
sua pequenez a noite enorme
É a curiosa
sensação de encher a noite enorme
Com a sua
pequenez...
XLV
UM RENQUE DE ÁRVORES
UM RENQUE DE ÁRVORES
Um renque de
árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um
renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o
plural árvores não são coisas, são nomes.
Tristes das
almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam
linhas de coisa a coisa,
Que põem
letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham
paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria
terra inocente e mais verde e florida do que isso!
XLVI
DESTE MODO OU
DAQUELE MODO
Deste modo ou
daquele modo.
Conforme calha
ou não calha.
Podendo às vezes
dizer o que penso,
E outras vezes
dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo
os meus versos sem querer,
Como se escrever
não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever
fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o
sol de fora.
Procuro dizer o
que sinto
Sem pensar em
que o sinto.
Procuro encostar
as palavras à ideia
E não precisar
dum corredor
Do pensamento
para as palavras
Nem sempre
consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento
só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa
o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro
despir-me do que aprendi,
Procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta
com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as
minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me
e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal
humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo,
querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem
sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo,
ora bem ora mal,
Ora acertando
com o que quero dizer ora errando,
Caindo aqui,
levantando-me acolá,
Mas indo sempre
no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou
alguém.
Sou o
Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta
das sensações verdadeiras.
Trago ao
Universo um novo Universo
Porque trago ao
Universo ele-próprio.
Isto sinto e
isto escrevo
Perfeitamente
sabedor e sem que não veja
Que são cinco
horas do amanhecer
E que o sol, que
ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro
do horizonte,
Ainda assim já
se lhe veem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo
do muro
Do horizonte
cheio de montes baixos.
XLVII
NUM DIA EXCESSIVAMENTE NÍTIDO
NUM DIA EXCESSIVAMENTE NÍTIDO
Num dia
excessivamente nítido,
Dia em que dava
a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não
trabalhar nada,
Entrevi, como
uma estrada por entre as árvores,
O que talvez
seja o Grande Segredo,
Aquele Grande
Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há
Natureza,
Que Natureza não
existe,
Que há montes,
vales, planícies,
Que há árvores,
flores, ervas,
Que há rios e
pedras,
Mas que não há
um todo a que isso pertença,
Que um conjunto
real e verdadeiro
É uma doença das
nossas ideias.
A Natureza é
partes sem um todo.
Isto é talvez o
tal mistério de que falam.
Foi isto o que
sem pensar nem parar,
Acertei que
devia ser a verdade
Que todos andam
a achar e que não acham,
E que só eu,
porque a não fui achar, achei.
XLVIII
DA MAIS ALTA JANELA DA MINHA CASA
DA MAIS ALTA JANELA DA MINHA CASA
Da mais alta
janela da minha casa
Com um lenço
branco digo adeus
Aos meus versos
que partem para a Humanidade.
E não estou
alegre nem triste.
Esse é o destino
dos versos.
Escrevi-os e
devo mostrá-los a todos
Porque não posso
fazer o contrário
Como a flor não
pode esconder a cor,
Nem o rio
esconder que corre,
Nem a árvore esconder
que dá fruto.
Ei-los que vão
já longe como que na diligência
E eu sem querer
sinto pena
Como uma dor no
corpo.
Quem sabe quem
os terá?
Quem sabe a que
mãos irão?
Flor, colheu-me
o meu destino para os olhos.
Árvore,
arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino
da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e
sinto-me quase alegre,
Quase alegre
como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e
fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e
o seu pó dura sempre.
Corre o rio e
entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico,
como o Universo.
XLIX
METO-ME PARA DENTRO
METO-ME PARA DENTRO
Meto-me para
dentro, e fecho a janela.
Trazem o
candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz
contente dá as boas noites.
Oxalá a minha
vida seja sempre isto:
O dia cheio de
sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso
como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e
os ranchos que passam
Fitados com
interesse da janela,
O último olhar
amigo dado ao sossego das árvores,
E depois,
fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada,
nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida
correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um
grande silêncio como um deus que dorme.
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