Juízo crítico sobre as “Contemporâneas” de Augusto de Lima
O
“Parnasianismo” me é antipático. Um parnasiano parece-me um manequim
perfeitamente construído, mas tão pouco animado quanto pode ser o papelão de
que ele é feito. É papel, não é músculo. Se me não engano exagerando
inconscientemente os argumentos em meu favor, superabundam motivos racionais
para condenação desse modo de ser da poesia.
O
“Parnasianismo” é a volta ao passado. É uma excursão ao mundo clássico, esse
mundo tão diferente do nosso que só o podemos compreender auxiliados pela
interpretação autorizada de um historiador arqueólogo. E para que essa
excursão? E por que esse capricho súbito por um mundo sem vida, quando toda a
humanidade seria insuficiente ainda para ver e traduzir as infinitas fases da
vida no presente, para induzir ou imaginar a vida no futuro?
E
depois, é preciso reconhecer, é desolador o espetáculo das reações e contrarreações
literárias. As grandes literaturas clássicas interromperam-se quando a onda dos
vencedores infundiu um sangue novo no organismo senil da civilização
greco-romana. Os primeiros movimentos literários das nações esboçadas pela
fragmentação das raças, sob a influência dos climas variados, interrompem-se
com a vitória da mentalidade dos vencidos e o advento da Renascença.
Amalgamados elementos heterogêneos, forma-se o classicismo das literaturas
novas, convencional, falso, autoritário a ponto de estabelecer um estalão para
as paixões, um peso para as ideias, isso até o dia da reação romântica. O
Romantismo reata a tradição interrompida pelo enxerto erudito, que a todos os
povos impusera a mesma fisionomia dos gregos e romanos, e quebrando os diques,
rasgando os horizontes, impele a arte para a liberdade e principalmente, por
espírito de reação, para o inverossímil, o irrazoável, o absurdo, o impossível.
Não falando no Naturalismo, que é um método e pode abrigar inúmeras escolas,
aparece agora uma nova reação, o Parnasianismo, volta aos clássicos, retorno ao
“bom velho tempo” como se fora possível revestir a organização nova de homem
atual com a epiderme morta de homem de outrora.
Pois,
porque todos os movimentos exageram-se e ultrapassam o seu fim, há de vir
sempre uma reação, que, por sua vez, longe de suprimir os excessos anteriores,
procure trazer a campo o primitivo problema? Bem sei que, se assim foi, assim
devia ser. Não tenho a mais ligeira intenção de instaurar um processo ao
passado, porque ele foi como foi e não como eu o desejara. Se, porém, os
acontecimentos por si mesmos se explicam e justificam, não é menos certo que
estamos em uma era de comentários e crítica, e comentar o motivo de nossas
ações é influir indiretamente sobre elas. Seguindo nós de dia em dia menos
automaticamente o encadeamento dos fatos e parecendo irrazoável esse
balanceamento da arte entre dois extremos condenáveis, parece-me perfeitamente
correta toda tentativa em favor de um estado que não seja esse. É o que, na
proporção dos meios de que posso dispor e reservando o direito que reconheci em
todos, procuro fazer contra o Parnasianismo, expondo antipatias pessoais que
têm, pelo menos, tanto direito à publicidade como o próprio Parnasianismo.
Há,
porém, alguma coisa acima das antipatias literárias, é o sentimento de justiça,
é a admiração pelo mérito em qualquer ponto que ele se manifeste. A repulsão
pela escola (porque o Parnasianismo o é) não impede a admiração do indivíduo.
Não é outro o meu modo de proceder diante das Contemporâneas, poesias aparentemente filiadas à escola em questão.
As
Contemporâneas são poesias de estreia
de Augusto de Lima e, quando digo de estreia, refiro-me tão somente à
publicação de um livro, porque é literalmente impossível que se trate das
primeiras produções do poeta. Precede a obra um prefácio de Teófilo Dias, onde
o laureado autor das Fanfarras mostra
ter percebido, com o fino tato de artista, que um prefácio era, em tais
condições, pura questão de estilo, de etiqueta. O mundo dos literatos conserva
ainda as antigas tradições da cavalaria mediévica; apresentam-se os poetas e
romancistas como se armavam os cavaleiros. Ao lado de muitos inconvenientes,
esse costume tem a vantagem de fazer com que os bons artistas não sejam
confundidos com essa multidão de nulidades contra as quais só há uma arma –
ignorar-se-lhes a existência. O prefácio das Contemporâneas não é de um crítico, é de um poeta, e do que está em
melhores condições de compreender o estreante. Preenchidas as formalidades, o
prefaciador não se demora entre o poeta e o público e Augusto de Lima fica
entre os nossos poetas no lugar que de direito lhe pertence, apresentado ou
não, desde que escreveu as Contemporâneas.
Uma
leitura por muito rápida que seja das poesias de Augusto de Lima faz conhecê-lo
por uma de suas qualidades mais notáveis, que outros talvez classifiquem como a
mais notável. É a correção da forma. O verso de Augusto de Lima é moldável como
a cera, flexível como o aço; adapta-se a todos os preceitos da mais rigorosa
métrica, traduz as mais ligeiras gradações do pensamento e sempre, qualquer que
seja o momento, descreva ele com a calma de um espectador apenas curioso ou com
a emoção de um interessado, sempre dominando os sons variados daquela
instrumentação, nota-se o ritmo rigoroso, matemático, como só o têm os músicos.
E
é realmente um músico o autor das Contemporâneas.
Nos seus versos não lia somente a metrificação, não lia somente o que se
aprende lendo e analisando boas poesias, há mais do que isso, o que depende da
organização uma rica percepção dos sons.
Poeta
pelo espírito, Augusto de Lima é um músico pelo conhecimento de todos os
segredos da dicção, pela noção clara do valor musical da palavra, pela
delicadeza de sua organização auditiva.
A
palavra é, sem dúvida, para ele, ao mesmo tempo a representação de uma ideia e
de um som e, por isso, suas poesias não são simplesmente representativas, são
também sinfônicas.
Organizações
há que possuem em alta escala a percepção musical da palavra, sem que, por
isso, por um “balanceamento orgânico”, sofram atrofia proporcional em outro
sentido. O poeta das Contemporâneas é
assim. Ele não é simplesmente um poeta, não é simplesmente um auditivo na fraseologia dos
neurologistas, é um poeta em cuja personalidade entra a organização de um
músico. Sua poesia deve ser declamada, interpretada pela audição e nunca pela
visão somente. É poesia lírica, dando-se ao termo lírico a primitiva acepção, a que ele tinha quando a poesia mal
diferenciada da música era sempre cantada.
Creio
haver nisso um elemento de popularidade para o poeta. É sabido que os
“auditivos” são mais numerosos que os “visuais”. Não me refiro à representação
interna da palavra, mas, sim, ao maior grau de impressionabilidade de um ou
outro sentido. A universalidade da música, reforçada em nós por uma inclinação
da raça, bem evidente nas alterações da fonética brasileira, assegura à poesia
lírica das Contemporâneas uma longa
existência, muito mais longa do que devem esperar quantos servem-se da palavra
– símbolo, descurando a palavra – som.
Abstenho-me
de citar, porque fora preciso fazê-lo em larga escala para documentar o que
fica dito. Apenas a título de exemplo transcrevo duas quadras da poesia Entre
as árvores, fazendo observar na segunda quadra a prova das afirmações até aqui
feitas:
A onça gemedora
as pálpebras vermelhas
Escancara e
boceja; espreita... e segue após,
compassada no
trilho; uma nuvem de abelhas
acompanha-a,
soltando a zumbidora voz.
Contrastando a
altivez do carrascal felpudo,
em cachões a
cascata espumejante tomba
dos negros
alcantis – enquanto sobre tudo
paira a alegria
eterna, assim como uma pomba.
Fora
preciso transcrever quase toda a obra: “Entre as Árvores”, “O Cético”, “O
Inquisidor”, “Ilha de Coral”, “As Lágrimas do Regato”, “O Abismo” etc., para
exemplificar bem.
Até
aqui o cultor da forma. Não é, entretanto, esse o distintivo do poeta. Ser
parnasiano já é alguma coisa, mas não é tudo. Um verso bem feito pode ser uma
obra-prima, mas uma obra-prima sem vida. Faltando-lhe a sensibilidade própria a
um determinado indivíduo, faltam-lhe os elementos de relação do artista com o
mundo, essa relação que, análoga a muitas outras e a nenhuma semelhante,
constitui a base psíquico-fisiológica da personalidade do artista. Não basta a
complexidade dos sons bem dispostos em uma poesia para constituir o poeta, é
necessário ainda que ele possua alguma coisa de comum com todos os homens – o
sentir – e alguma coisa exclusivamente sua – a personalidade originada em uma
feição especial do sentir.
Augusto de Lima, apesar do culto da forma, é um homem de nosso tempo, vive no agitado meio social em que vivemos, sente o que nós sentimos, respira a atmosfera excitante que nos estimula a todos. Apesar do título de parnasiano, ele é um poeta de hoje, tem essa sinceridade. Suas poesias são realmente contemporâneas, literalmente contemporâneas. Não, ele não blasfemou, como afirma Teófilo Dias. Se suas poesias não são contemporâneas quanto à vida que devem ter, são contemporâneas quanto à vida que traduzem.
E
não seria essa a intenção do poeta, resumindo, em um título, um eloquente e
inconsciente protesto contra a escola a que o filiaram, contra a escola a que
ele próprio voluntariamente se filia por um equívoco na interpretação do que
sente?
Não
seja embora essa a verdadeira acepção, ainda assim o parnasiano pouco a pouco
se transfigura. Onde está a obediência a esse código antifisiológico e antipsíquico
que preceitua a insensibilidade do poeta? Onde está, nas Contemporâneas, essa indiferença, essa desumanidade professada
pelos parnasianos franceses? Em parte alguma. O poeta é um homem e o problema
parnasiano não pode ser resolvido por homens, deve ser reservado para os
autômatos. É uma irrefletida exemplificação da lógica hipótese de Maudsley:
“Suponho
que, se o homem algum dia chegar a alcançar uma harmonia perfeita com o mundo
exterior, isto é, com tudo que o cerca sem excetuar a natureza humana, de modo
a perceber e agir em todas as circunstâncias com a certeza e precisão
irrefletida do instinto, não existirão mais nem memória nem razão, nem
sentimento, nem vontade, porque esses fatos psíquicos implicam uma excitação
mental persistente na consciência; o homem agirá então com a regularidade, a
precisão, e a certeza automática de uma máquina perfeita”.
A
poesia de Augusto de Lima é de hoje e não pretende ocultá-lo, é, sem dúvida,
musical, e lírica, mas é humana. Ele reforça a imagem de suas ideias com a
música da palavra, mas não intenta a involução artística, a redução da poesia à
música, a uma sonoridade brilhante na frase de outro poeta. Seria uma tentativa
anacrônica, porque já houve em remoto passado essa simplificação, e uma
tentativa impossível, porque da complexidade de sua organização de artista só
pode provir uma função artística igualmente complexa.
Encontram-se
nas Contemporâneas alguns exemplos do
dialeto parnasiano, que não quero denominar argot dos poetas, mas Augusto de
Lima tem sentimento e ideias demais para que não faça de uma poesia uma
charada. Se o aproximarmos de outros menos corretos que ele, no entanto mais
parnasianos, embora não tenham chegado à perfeição
na imperfeição, veremos quanto é aparente o seu Parnasianismo. Sirvo-me de
dois poetas de nomeada entre poetas:
Vós que na lira
o lânguido desmaio
celebrais das
românticas Virgínias
o amor, e as
cheias ânforas cetíneas
dos lírios
brancos e as manhãs de maio;
Vosso arrabil
marcial, bravos, vibrai-o
e veremos das
órbitas sanguíneas,
despedirdes,
coléricas, fulmínias,
as faíscas
elétricas do raio.
Havia um bocejar
de luz prometiana:
era a estrela a
morrer. Um vinho de luz turva
ia enchendo do
céu a taça semi-curva
voltada na amplidão
com uns tons de porcelana.
Em
todas as Contemporâneas, onde a
perfeição da forma vai a ponto de não se notar a rima forçada, evidente na
citação feita, não encontro um verso tão proximamente aparentado com o
gongorismo, como esses. A poesia de Augusto de Lima é deste gênero:
O Cético
Percorro da
ciência o labirinto
e em tudo encontro
um eco duvidoso
matéria vã,
espírito enganoso,
mentis, tudo é
mentira, eu só não minto.
Vejo, é verdade,
a vida e a vida sinto,
o calórico, a
luz, a dor e o gozo,
a natureza em
flor, o sol formoso
e o céu das
cores da Aliança tinto.
Mas quem, senão
eu mesmo, vá tudo isto?
e quem pôde
afirmar-me que eu existo,
visões celestes,
velhas nebulosas?”
E em seu crânio
a razão desponta e morre,
como o santelmo
fátuo, que discorre
na solidão das
minas tenebrosas.
Fora
preciso citar o “Polvo”, as “Lágrimas do Regato” etc., para demonstrar bem o
que quero. É sempre uma poesia correta e sentida, cuidada e sincera; mais
correta do que sentida, porque chega às vezes à perfeição métrica sem alcançar
a paixão, porém bastante sensível, bastante sincera, bastante contemporânea
para romper os mesquinhos horizontes do mundo em miniatura parnasiana.
Resumindo
em uma palavra o que nas Contemporâneas
deixa-me entrever o poeta, direi que a qualidade pessoal de Augusto de Lima é a
graça. Mas nos entendamos, porque a palavra presta-se a equívocos e aos
equívocos se deve uma boa parte da anarquia intelectual. Não me refiro ao chic, o supremo grão da nulidade
artística. Refiro-me ao fenômeno estudado e explicado por Spencer, a esse alto
grão de energia que se deixa adivinhar na facilidade com que o artista se
expressa; à ausência absoluta de esforço, deixando-se entretanto suspeitar a
força em ação.
É
isso. A forma correta é o limite dentro do qual se agita a sensibilidade do
poeta. Do contraste entre essa viva sensibilidade e essa forma rigorosa, aquela
encerrada nesta sem as liberdades de uma natureza apaixonada, resulta uma
elevação da poesia. A palavra do poeta assume uma certa gravidade entre o tom
profético do romantismo hugoano e a familiaridade dos poetas sentimentais.
Ante
aquela forma impecável limitando uma vida fremente, tem-se a percepção de uma
individualidade profundamente sensível e energicamente calma. Apenas por uma
leve inflexão na voz, um brilho rápido e fugaz no olhar, conhece-se o que vai
pela consciência.
Não
é um organismo para o qual, com o embotamento das extremidades nervosas,
obstruíram-se as portas de entrada para as impressões do mundo exterior, ao
contrário, os receptores, mais perfeitos que comumente, multiplicam a extensão
e energia dos sentimentos. É, porém, um organismo no qual por efeito de herança
e hábito, as expressões das emoções, de esquema de ações, que eram, passaram a
esquema de um esquema.
É
um poeta que se domina e não um poeta que não sente. Sente na proporção da sua
organização cerebral de homem do século XIX, mas reage tão somente até o ponto
permitido pelo seu hábito social. A regularidade do verso, o rigor métrico é o
código artístico como o decoro, a delicadeza é o código de uma sociedade culta,
mas, dentro desse círculo, agitam-se todas as paixões humanas. Por isso,
Augusto de Lima, o poeta que, pelo culto da forma mais próximo está do
Parnasianismo, só é parnasiano aparentemente, e a simpatia que ele desperta
está na proporção do que ele sente, do que ele se afasta da escola. Qual não
seria o futuro das Contemporâneas se
ainda mais intensamente vivesse ali o homem de hoje? Mas, se assim fora, outro
que não Augusto de Lima seria seu autor. É preciso aceitá-lo tal qual é e,
felizmente para a literatura e para ele, não se trata neste caso de alguém que
possa ser como este ou como aquele indivíduo; Augusto de Lima é poeta, um
determinado poeta e não um poeta qualquer.
Lívio de Castro
Revista “A
Semana”, 31 de dezembro de 1887.
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