Digressões sobre a poesia de Augusto Nobre
A fraterna piedade de Augusto Nobre e a saudade amiga de Justino de Montalvão honraram-me com o pedido comovente de algumas linhas que acompanhassem este volume póstumo. Tendo organizado a nota que precede os fragmentos, ao diante publicados, do poema O Desejado, hesitei grandemente em aquiescer à solicitação que refiro. Temi que malignas malevolências acaso increpassem como de impertinente intrometimento essas linhas sinceras e inocentes. E elas seriam, de fato, com severidade condenáveis, desde que as ditassem pedantescas pretensões de recomendação às delicadas leituras. O nome do poeta não é somente conhecido; está decisivamente consagrado. Um prosador incorreto e seco não conseguiria senão tornar-se ridículo, quando tão improcedente estímulo fosse a impulsioná-lo.
Assim
meditava e quase me resolvia por uma polida escusa, que me magoaria aliás;
porém mais se radicou em meu ânimo o motivo antagônico que me convidara a ceder
à cativante sedução do pedido, feito pelo irmão e pelo companheiro.
Lembrava-me
e lembrei-me de que fora eu quem, sem sequer de vista o conhecer, apontou ao
público culto o original, prometedor talento daquele moço ignorado então.
Concorrendo
num efeito de beneficência, aparecera no Porto um volumezinho de versos,
colaborado principalmente por acadêmicos, sob o título genérico e designativo
de Um bouquet de sonetos. Eu lera as composições contidas na
simpática coleção e prestei preferente cuidado àquelas que a novos, sem
notoriedade ainda, pertenciam. Entre essas, primacialmente sobressaía o soneto
de Antônio Nobre, nome que eu havia notado já, por subscrever, em revistas
literárias de colegiais, infantilidades onde perpassava uma réstia do fulgor
divino. Fundara, por esse tempo, um diário de propaganda política A
Discussão; na seção literária da folha estampei um artigo longo acerca do
opúsculo que me atraíra o reparo; Gomes Leal replicou-me, com motivo de algumas
afirmativas minhas, concernentemente à forma e à essência do gênero artístico.
E no modesto estudo com que momentaneamente quebrei, confugindo, a monotonia
acre das acerbas recriminações partidárias, indiquei o nome do jovem poeta,
como o de alguém que tinha personalidade e viria a ser muito.
Veio,
na verdade, a ser muito: tão fino, candidamente malicioso, doce, ingênuo era
seu temperamento; tão sincera sua tristeza; tão moderno seu gosto; tão
nacionalista seu sentir, na pátria e na família; tão sugestiva sua imaginação,
ardorosa e melancólica!
Ora,
já quando, na jubilosa plenitude da consciência estética, o escritor preparava
em Paris o original definitivo do seu volume Só, como quer que ao
mesmo Paris, cético e arisco na banalidade de uma afetuosidade de superfície,
me atirasse uma onda centrifuga do atroz redemoinho, ele mostrou-me que não
esquecera as palavras do jornalista portuense, as quais só um mérito possuíam,
o de se haverem coadunado com o lealismo de uma emoção espontânea. Na escura
rua de Trévise me procurou, abandonando por horas a sua preferida
margem-esquerda, de que lhe era tão penoso afastar-se, Antônio Nobre, uma tarde
em que eu sofria cruelmente. Esta visita sensibilizou me; como me
encantou a conversação do poeta, pelo tom sutil da melindrosa reserva na
consolação, a um tempo caridosa e primorosa, de uma alma em carne viva, como a
minha por então andava.
Só
no Porto novamente me reencontrei, conversando, com Antônio Nobre; de volta do
exílio eu, de regresso da ilusão de estâncias salvadoras ele. Ambos viajáramos;
ambos conhecêramos a glacial indiferença do homem; o poeta e o político
encontrávamo-nos na identidade de uma amarga desesperança tranquila.
Separamo-nos depois de uma hora, melhorados para um instante.
Não
o tornei a ver; sabia que ia cada vez mais a pior, neste rude Porto, fatal,
física e moralmente, às naturezas suscetivelmente quintessenciadas como a dele.
Súbito entrou em minha casa Justino de Montalvão, para que eu estivesse à noite
na igreja, a ajudar a conduzir o nosso amigo, no seu caixão, para a sua tarima.
Eis o desfecho de tudo.
Nunca
me afligiu a minha aridez verbal como agora, em que me daria um orgulho
inefável o poder falar do talento deste querido morto com palavras encantadas,
que embebessem a leitura numa idealidade sonhada.
Pouso
a pena áspera; demasiado dilacerou o papel; o dever da gratidão está cumprido;
mas quedaria ainda faina para a crítica perspicaz e expressiva. Como
indispensável, tocante elemento informativo, tenho aqui a fazer uma referência
ao título do volume, Despedidas. Este título foi escolhido pelo
poeta. Criminosa impiedade seria que de outrem emanasse.
Em
uma das crises de pungente desânimo que frequentemente o assaltavam no último
período da implacável enfermidade a que sucumbiu, pediu ele que, se viesse a
morrer antes de poder publicar o seu livro, lhe dessem o título de Despedidas,
significando este a sua retirada da vida literária; mas mais tarde deu a
perceber claramente que assim o escolhera, por serem as suas últimas poesias,
visto que tinha perdido a esperança de cura da doença que o torturava. Ainda só
quinze dias antes da data fatal do seu trespasso, quis ele ir para a aldeia,
com tenções de passar a limpo todas as suas poesias e de escrever
definitivamente O Desejado, que, como se frisa na nota que lhe
precede hoje os fragmentos, o poeta tinha todo in mente, mas muito
incompleto nos seus cadernos de apontamentos.
Destas
linhas que acima ficam se depreende que jamais lograram os versos que saem
agora a lume o ser corrigidos por seu autor. Se imperfeições aqui ou ali acaso
os maculem, acate-se o legítimo escrúpulo que não se atreveu a sujeitar o texto
a alheia revisão minuciosa. Ele foi recebido como uma herança de coração; com
inquieto sobressalto, julgou-se sacrílego que ela não fosse assaz respeitada.
Todavia,
esta advertência era indispensável, para obviar a quaisquer reparos que o livro
atual pudesse oferecer a uma leitura ou hostil ou sequer fria. Não é a essa
espécie de crítica, a qual não compreende porque não sente, que o editor confia
a obra póstuma do poeta a quem amou e cuja inolvidanda memória o penetra de uma
inexaurível saudade. A verdadeira crítica, a crítica sã, fá-la-á o leitor
melhormente dotado, com apurar que o livro atual, fragmentário consoante é,
confirma a glória de Antônio Nobre, cuja figura literária destacará como uma
das mais acentuadas dentre as mais acentuadas da nova geração portuguesa.
José Pereira de Sampaio (Bruno)
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