Araripe Júnior: Juízo
crítico sobre as “Contemporâneas” de Augusto de Lima
Nunca
é tarde para mandar-se um brinde a um poeta, a quem as vozes da admiração dos
amigos afagam, fazendo-lhe uma justa festa de chegança.
Não
é verdade que se deveria sempre soltar uma girândola de foguetes, ou dar um
tiro de bacamarte, como em certas solenidades se pratica no sertão, quando nasce
uma árvore frutífera rara em um pomar ou se descobre uma flor de espécie não
classificada?
Com
maioria de razão deveriam repicar os sinos da freguesia e a irmandade do S. S.
Apólio tomar a opa e os tocheiros para levar à pia batismal o poeta recém-nascido,
consagrando-o com o nome, pelo qual o mundo das letras o apregoará tanto na
vida como na morte.
Receba,
pois, o poeta das Contemporâneas
estas palavras saídas do coração; e, em falta de melhores, guarde-as, não pelo
que valem, sendo, como são, frutos de pouco sabor, mas pelo que, no intento de
quem as prefere, elas pretendem simbolizar – o entusiasmo franco causado por um
livro – a sensação deliciosa de uma leitura comunicativa.
Não
critico aquilo de que me apaixono; e o livro que tenho diante dos olhos acha-se
perfeitamente neste caso. Sinto-o, como se sente a aura blandiciosa em um clima
tropical, morno e anestésico; percebo-o, como se percebe o gárrulo, iriante e
festivo guainumbi; observo-o, como se observam os tons coloridos pela luz
eclíptica do sol em uma tarde de agosto; penso-o e repenso-o, como se pensa o
mistério da existência e o movimento do universo. E tenho dito tudo e não tenho
dito nada, porque, para que a satisfação fosse completa, seria talvez
necessário fazer o que fazem as crianças em sua ingênua perversidade – abrir de
meio a meio o pacto, lascar o brinquedo que nos encanta, que produz tão belas
harmonias, para consultar-lhe as entranhas, o mecanismo interno e verificar a
explicação de tantos e tão caprichosos efeitos – e depois... depois, como
certos aristarcos ou como a boa constritor, acariciar a vítima com a baba,
para, em seguida, devorá-la, putrefazê-la nas voltas intestinais.
Isto,
porém, é o que não perpetrarei por forma alguma. Autopsiam-se os defuntos. Com
os vivos pomo-nos apenas em relação de ódio ou simpatia. Demais, a crítica já
disse quase tudo e, pela pena esperançosa de um Lívio de Castro, já deu até a
fórmula do poeta. O que poderia eu acrescentar se não uma pálida nota à margem
desses justíssimos juízos?
Que
o talento do autor das Contemporâneas
é um talento formosíssimo em toda a intensidade do superlativo? Que esse
talento não sofre nem de máculas, nem de hesitações, nem de deliquescências,
nem de pedantismo? Que é um talento sadio e franco, espontâneo e seguro, sereno
e azul – tão sereno como uma manhã de minha terra natal, tão azul como os olhos
de Julieta, com que provavelmente cisma?
Não.
Um poeta assim se explica por si – dando-se a ler – deixando que a alacridade
diante de tão lindas páginas traduza-se por si e que o orgulho nacional se
expanda ao ver um espécime de poesia tão nova, tão balsâmica, tão nossa.
Não
se trata de um parnasiano que se tortura pela forma, nem de um blasé, um
decadente, que refine o sentimento, nem de um filósofo que tente as cosmogonias
novas, nem de um platônico que definhe a olhar para a lua, mas de um espírito
profundamente colorido nos dons de expressão, amante das grandes linhas, que
pensa quando sente e que sente quando quer, dando à sua lira todas as inflexões
que comporiam uma alma francamente apreensiva das belezas da vida e da vida de
sua terra.
Nas
Contemporâneas, e é o que nesse livro
mais me apaixona, a poesia circula como a seiva em uma árvore florida e
vigorosa. Cambiante em tudo, a imaginação do vate surge em toda a parte e não
se deixa apatetar na contemplação exclusiva de um aspecto único.
Panteísta
na poesia “Através dos séculos”, cético no que conserva este mesmo título,
místico no “Amor”, ateu nos “Dois Cristos”, fetichista no “Polvo”, “Lágrimas do
Regato” e na “Cólera do Mar”; contudo, ali vai banhar-se nas forças colossais
do século, para surgir logo adiante incandescente de transformismo e irradiante
de amor brasílico.
O
que resta agora é que o poeta não se deixe cair na modorra tropical e saiba
viver... viver com toda a força e intensidade a que tem direito o seu gênio
artístico, e que, neste momento supremo, em que parece que o Brasil gravita
para o seu verdadeiro centro econômico, e que alguma coisa de novo vibra no
organismo social, não se engolfe entre as tetas de terra que lhe circundam na
roça a mansão poética, e concentrando-se em espírito no poema que atualmente
elabora – “A Vida” – consagra um canto à festa de recepção dos legionários do
progresso, que, diariamente, de todos os pontos da Europa, irrompem através do
Atlântico, em demanda das nossas florestas portentosas.
Araripe Júnior
Revista “A
Semana”, 11 de fevereiro de 1888.
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