No dia
seguinte o Álvaro se achava na casa do capitão Joaquim da Mota, à espera dos
autos que os havia, a ele e mais a comitiva, de conduzir à checara “Celeste”.
A
companhia era a mesma do jantar do dia anterior.
D. Laura,
à chegada do professor, reclamou-o. Subiu no automóvel com ele e só permitiu a
entrada de três petizes, dos quais o mais velho não contava mais de sete anos.
E,
enquanto o veículo corria sobre o pedregulho da alameda ensombrada, que
conduzia à quinta, ela foi-lhe dizendo um sem número de frases excitantes.
Eles
haviam ficado os últimos na fila dos automóveis e, para evitar a poeira da
estrada, distanciavam-se muito do último que ia na frente.
— Eu
gosto das almas como o senhor, solitárias e recolhidas, que mesmo nos momentos
de grande alegria, não se iludem e não deixam nunca de ser o que são.
— Más eu não
sou absolutamente hipócrita e a senhora está me emprestando; essa qualidade,
exclamou, num riso largo, o mestre-escola.
— Não
torça, Álvaro. O senhor entende-me bastante, para querer mangar comigo.
— Mangar
com uma tão linda mulher? Mas seria ignóbil da minha parte. Que quer que lhe diga?
Deixemos de casos intrincados de almas alheias, especialmente da minha, que
escapa à minha própria análise. Falemos mal dos outros. Não acha que seja um
bom emprego?
— Por
exemplo, riu maliciosamente D. Laura, falemos mal de sua namorada.
— Pois
seja dela.
—
Dir-me-á quem é?
— Para
que, se isso não passa de um namorico insignificante, em que eu sou o provocado?
— É
bonita?
— É. A
figura que, ontem, o Sebastião usou a respeito dela é exata: é linda como unia
boneca de “biscuit”. Ou antes... não, porque as bonecas são, em geral feias. É
bonita mas...
— Mas....
indagou a mulher ansiosa, mas com ar distraído, de quem quer afetar indiferença.
— Mas não
me agrada.
— Mas não
a deixa.
— Minha
senhora, eu não posso recusar o namorico a uma menina chique. Iria contra as
regras do bom tom.
— Que o senhor
aliás não segue. Então para um sentimento que não tem? É ser mau.
— Não é. É
mais por indolência, porque afinal o admirado sou eu e a enamorada é ela.
D. Laura
riu, chamando-lhe extraordinário.
— Nem
tanto quanto julga. Por exemplo, eu sou de uma timidez desastrosa.
— Não se
diria.
— Como
não? confirmou o rapaz. Então não acha tímido um moço que, desde ontem, tem a
tentação de devorar-lhe os lábios de beijos e ainda não o fez? Não foi falta de
ocasião nem de vontade.
— Foi,
naturalmente, por indolência, volveu D. Laura calmamente.
— Ou
melhor por timidez. Mas garanto-lhe que, hoje mesmo, tomarei desforra.
— Quem o
autorizou?
— Pois é
preciso, acaso, autorização?
Chegaram
à chácara.
— É grande
a propriedade? indagou o professor.
—
Bastante para girar-se uma hora.
— Nesse
caso dê-me o seu braço e vamos dar umas voltas por ela.
—
Professor, o Sr. está com intenções diabólicas!
— Quem
sabe? Acaso sente-se mal em saber que dá o braço a um cavalheiro que está pouco
bem disposto a seu respeito?
—
Absolutamente. Não sou mulher que me espante por tão pouco.
— Então
vamos.
E os dois
afastaram-se, a passo lento, por uma das alamedas da quinta.
D. Laura
sentia-se feliz de encontrar-se no meio das árvores amigas.
—
Infelizmente não há vi ração, disse sério, num ar compungido, o Álvaro.
— Para
quê? inquiriu a mulher, admirada.
— Para
tornar o nosso passeio digno de uma descrição clássica de Ponson du Terrail ou,
quando menos, de uma preleção pedagógica de dia de Festa das Árvores.
— O
senhor, por mais que se esforce, não pode esquecer-se de que é ferozmente
irônico.
— É a
minha mania. Não posso torcer a veia de meu temperamento.
— Podia
ter outra e deixar essa; que já é velha. Hoje toda a gente faz ironias. É moda.
— Queria
que fizesse madrigais?
— Era
talvez melhor.
— Mas, D.
Laura, madrigais todo o mundo os fez e os faz. E eu preciso acompanhar a minha
época para poder justificar o seu epíteto de extraordinário.
— Lá
volta o senhor. Sabe, Álvaro, que não é assim que se agradam mulheres?
— Eu sei.
Elas preferem beijos... A senhora, contudo, é muito alta e eu precisaria
arranjar, para dar cumprimento ao preceito, uma situação qualquer para fazê-la
abaixar-se ou sentar-se. Aqui não há bancos e há apenas dois minutos que
descemos do automóvel: não deve estar cansada... Demais, eu não conheço a arte
de seduzir. Não entendo da química do amor.
D. Laura
riu clamorosamente e indagou:
— Nunca
teve conquistas?
— Se as
fiz? Não... Mas já fui conquistado uma
vez; ainda não há dois meses.
— E foi o
senhor o conquistado?
— Sim,
porque eu nem sequer disse a essa mulher que a amava, nem por brincadeira.
— O senhor
é um excêntrico.
— Parece
que a senhora se diverte a me aplicar adjetivos. Acha-me com feição de
substantivo?
Ela riu
de novo:
— Está ou
não justificando o meu último dito?
— Não
sei.
Os dois
haviam chegado diante de uma latada de parreiras. Cachos maduros de uva pendiam,
excitando o desejo.
Dali
avistava-se, lá embaixo, a cidade, faiscando ao sol...
— Quer
chupar uvas, D. Laura?
— Quero.
Mas o senhor não as alcança. Eu, que sou mais alta, não vou até lá.
— Ali
está, porém, retorquiu o professor, o caixão providencial. Espere.
O rapaz
apanhou o primeiro cacho. D. Laura avizinhou-se para o receber, mas achegou-se
tanto que, quando ia levar o primeiro bago à boca, o mestre escola, num
movimento rápido, cingiu-lhe os braços ao pescoço e estampou-lhe nos lábios dois
rumorosos beijos.
A mulher
correspondeu-lhe, largando o cacho e abraçando-o com toda a força.
Depois,
fingindo-se arrependida, abandonou o rapaz e, baixando os olhos, disse:
— E você
não entendia de coisas de amor. Foi para isto que arranjou o caixão?
— Não se
zangue por tão pouca coisa!
— Foi uma
ação indigna! confirmou, batendo o pé.
— Pois
então, concertemo-la diante de todo São Luís, que lá embaixo nos olha, alvitrou
Álvaro, apontando a cidade.
E o
professor e D. Laura abraçaram-se de novo.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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