Certa vez,
em diligência, na comarca de meu primeiro emprego judiciário, no interior de
Minas, longe de arraiais e povoados, em montanhosa região de lavra de ouro,
viram meus olhos, na pesquisa curiosa em que se apraziam dos panoramas e
perspectivas, as ruínas de uns velhos muros, na orla de um bosque, já dentro da
espessa mata sombria.
Que as fosse
ver de perto e as visitar não mo permitiram guias e companheiros, que,
timoratos, nem mesmo um rápido e fugaz olhar lançavam sobre elas.
Por quê?
— O sítio era
mal-assombrado, as ruínas tinham sua misteriosa história trágica. Aí nada pude
obter que me contassem; ao passo apressado das alimárias espertas, passamos de
largo. Mais tarde inquiri, busquei saber, e eis quanto me disseram.
Que intenção
piedosa, ou que mal arrojada plantaria ali os quatro muros da pequena igreja,
era coisa que ninguém sabia ao certo.
Lendas,
inverossímeis algumas, fantasiosas todas, envolviam as tristes ruínas.
O sítio era
soturno. À meia encosta de uma colina que, logo após, se erguia, quase a prumo,
em rocha, escalavrada e limosa, pela altura, além, o acesso do santuário era
dificultado por grandes blocos erráticos que se lhe acumulavam em torno. Por um
lado, a dois passos, o solo abria-se num grotão, em cujo fundo referviam águas vindas
por ignotos, invisíveis rumos.
Hoje, a
mataria investiu o templo, assaltou-lhe os pátios, crescia do interior, onde
ruíram os tetos; apenas se erguiam as quatro paredes abertas em fendas,
olhando, desconsoladamente, sem ver, para os quatro lados da terra, pelos vãos
das portas e janelas, escancarados como órbitas vazias...
Dizia-se que
nesse trágico lugar, um noivo, em acesso de paixão, tresvairado, sacrificara a
esposa, que acreditara impura; e que, mais tarde, nas ânsias do remorso e da
dúvida, viera, penitente e louco, plantar um templo à misericordiosa Mãe dos
homens.
Outros
prendiam a criação da solitária capela à dor de um velho pai, que numa alegre
excursão de amazonas e cavaleiros, vira de improviso, o vulto da filha
estremecida resvalar nas lajes e desaparecer no abismo...
Corriam
ainda outras versões; o certo é que bizarra fora a ideia de erigir-se, neste
agreste recanto a pequena igreja, cuja ruína lúgubre a floresta ora envolvia.
Por muitos anos vivera, entretanto, essa ermida de estranha e misteriosa origem
e que teve não menos estranho e misterioso fim.
Dos arraiais
próximos vinham ali satisfazer promessas. A invocação da Senhora da Serra era,
por toda a redondeza, respeitada e tida por miraculosa. Romeiros piedosos
entretinham, preparado para as cerimônias do culto, esse lugar sagrado,
duplamente sagrado, pelo sentimento religioso e pela superstição do mistério.
Conta-se que muita dor arrefeceu, muito martírio moral aliviou.
O certo é
que na calma de seu retiro, o pequeno templo nunca estava abandonado; a lâmpada
do santuário jamais deixaram que se extinguisse e, não raro, lá dentro, por
dias e noites, velas e círios ardiam, votivamente, numa crepitação solitária.
Contudo, não
tinha a ermida um serventuário efetivo, nem mesmo um simples guarda; guardava-a
e servia-a o respeito comum dos habitantes próximos.
E, do mesmo
modo porque um dia a igrejinha aparecera, um dia perceberam os fiéis que a
ermida tinha seu cura. Um padre, ou alguém, que um velho hábito envergava, ali
se havia instalado.
Ao fundo,
alguns passos distantes, sobre a rocha, construiu-se uma tosca, pequena casa,
residência do religioso.
E, sem que
ninguém pensasse em inquirir quem era e de onde viera, o improvisado vigário
foi visto e aceito, num acordo tácito que o sentimento reciproco selou.
Aumentou de
tal jeito o mistério. Para templo, que não se sabia quem construíra, chegara um
cura, que se não sabia de onde vinha. E a fama da milagrosa ermida cresceu e
dilatou-se. O ermitão não era velho, nem moço. Trazia n'alma, porém, a funda
preocupação de uma dor irreparável, que de todo em todo, o prendia aquela
religiosa empresa.
Não parecia
criatura de nossos dias: depois que chegara, jamais o viram entregue a outro
mister senão o que o sacerdócio lhe impunha. Se bem que, de seu estado coisa
alguma se soubesse, e já, de muito, houvessem desaparecido vestígios de
tonsura, na exuberância de uma cabeleira loira, que lhe sobrava na nuca e se
confundia com a fina barba que lhe envolvia o rosto, geralmente o recebiam como
confessor e celebrante.
A clientela
dos fiéis crescia: ex-votos cobriam as paredes internas da pequena igreja,
cerimônias celebravam-se amiúde, e, na sobriedade de seu viver, nada faltava ao
cura para as necessidades materiais da vida.
E desse
modo, nesse entendimento entre fiéis e pastor, foram passando anos, que criaram
para o estranho ermitão a auréola de santidade, que a persistência da vida
austera e a dedicação exclusiva à obra espiritual, de mais em mais acentuava.
As missas de
domingo, sobretudo, atraíam maior concorrência, a despeito da hora matinal em
que eram ditas.
E assim
seguiram as cousas, sem história, na continuidade serena e uniforme dos dias e
dos meses.
Mas, tudo
acaba; tudo o que existe no mundo está marcado para acabar.
Certa manhã,
num domingo, rezava, na compunção habitual, o eremita, a missa matutina. Não
notara a assistência, no momento, mas depois a circunstância foi assinalada e
confirmada por muitas vozes, que o celebrante manifestava, nessa clara manhã,
uma abstração maior, um ar de maior desprendimento dos aspectos materiais do
mundo.
Por vezes,
em meio das orações, braços erguidos, parava o ofício, como num êxtase, alheio
à vida, alheio aos fiéis; depois prosseguia, arrastadamente, entregue, de todo,
à sujeição espiritual do ato que celebrava. No momento da consagração, vários
fieis comungaram, presos da emoção enorme que o aspecto sobre-humano do cura
lhes transmitira na solenidade do seu gesto e na dolorosa expressão de seu
rosto.
Retirando-se,
após, para o altar, preparou para si o corpo e o sangue de Cristo; o pequeno
acólito, ao deitar no pobre cálice o vinho, que o ritual prescreve, viu,
surpreso, que, por sua vez o cura no mesmo despejou também o conteúdo de um
pequeno frasco.
E a missa
continuou. Feitas as orações, abençoado esse vinho, o cura tomou o cálice e o
absorveu de um trago. Não rezou mais: pousando o cálice sobre o altar, ergueu
os olhos para a imagem, na brancura de suas vestes e, alguns minutos após,
levando a mão ao peito, prostrou-se e caiu pesadamente, ao chão.
Acercaram-no,
atônitos, os fiéis; olharam-lhe o rosto, apalparam-lhe o corpo: estava morto.
***
Como um
pousado bando de pombos, que a súbita queda de um corpo, em meio deles,
dispersa, fazendo-os voar, céleres, por direções diversas, tal os fiéis,
desordenadamente, em pânico, abandonaram a ermida.
Ninguém
ousou volver atrás um olhar curioso e, cada qual, foi em casa, na segurança do
lar, no aconchego dos seus, que parou e respirou. E dias correram e meses passaram e anos fluíram, sem que
pessoa alguma se atrevesse a acercar-se da igreja misteriosa.
O corpo do
cura sacrílego, ali encontrou o seu original mausoléu, onde, insepulto, esperou
a ação fatal da decomposição. E esse novo mistério envolveu, no vago de sua
história, a ermida misteriosa.
Quando,
passado algum tempo, chegou, de um longínquo lugar, um bispo, cuja autoridade
se desconhecia, decretando a interdição da solitária e mal-assombrada capela,
já sobre ela a superstição do povo havia feito pesar a sanção de um interdito
mais eficaz e solene.
O abandono
dos homens estimulou a ação da natureza, entregue à sua expansão irrefreada.
O mato
tomou os caminhos, envolveu as paredes, enredou em seu intrincado a pequena
construção, que, afinal, ruiu, sobrevivendo, apenas, na consistência de uns
muros e no mistério, que no fundo das almas recalca, a ingenuidade primitiva da
gente da serra.
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Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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