Caríssimo Alfredo,
Hoje, às cinco horas da manhã,
suicido-me. Hás de necessariamente querer saber das causas, dos horríveis
motivos que me levam a esse ato de desespero e de revolta, ato que vem sofrendo
a abominação dos séculos, previsto até pelo Código Penal.
Não baterás a cabeça à procura do enigma.
Basta-te ler o que vem abaixo:
Hoje, mais ou menos às três horas da
madrugada, saía eu do High-life,
depois de haver jogado e perdido toda a minha primeira mesada, o que implicava
a perda de uma linda marselhesa, a quem vinha fazendo a corte há uma boa porção
de dias.
Como gosto extraordinariamente do mar,
em especial desse “sonho inatingível de poeta” que é a baía de Guanabara, e
como houvesse lua, fui andando pela praia do Flamengo em direção à minha casa.
Apoiando-me por acaso à amurada do cais para ver melhor uma incidência de raios
lunares sobre a água viva e irrequieta do mar, que produzia uma estranha e
deliciosa refulgência, não sei por que, assaltou-me de improviso a ideia de dar
hoje mesmo cabo da vida. Achei, a princípio, o pensamento curioso e faceto, por
não lhe achar ligação nenhuma com o espetáculo magnífico da baía. E enquanto me
punha a andar, já esquecido do mar, comecei a meditar sobre essa grande “covardia”.
Por uma natural associação de ideias,
lembrei-me do suicídio de Henrique, aquele nosso saudoso e bizarro amigo, tão
amigo do paradoxo e do sofisma que, num dia de dúvida sobre a existência de
Deus, pôs termo à vida quase heroicamente. Lembras-te do escândalo levantado em
torno daquele caso doloroso? Pois o espalhafato da imprensa pareceu-me digno
remate de um espírito saturado de esnobismo qual o meu e que bem me poderia
elevar à altura do acontecimento máximo da semana. Considera, meu amigo:
Sou um rapaz elegante, demasiado
conhecido pela alta sociedade do Rio, relacionado com todas as boas e ilustres
famílias que marcam o tom, nesta luminosa Sebastianópolis. Serei assim “o amigo
inesquecível que abre, com o seu prematuro passamento, uma lacuna impreenchível
em nosso meio culto”. É que o comentário compungido dos jornais sobre os moços
suicidas, com as suas frases repassadas de um profundo sentimento de piedade e
de simpatia, exerceram sempre sobre mim um irresistível encanto.
Ajunta a isso a probabilidade ou artes a
certeza de que a formosa francesa do High-life
declarará tristemente que minha morte lhe pesa sobre a consciência, porque foi
da sua repulsa aos meus desejos que brotou a ideia do meu suicídio, pensa nas
lágrimas que derramará e no confrangimento de sua alma como responsável moral
de meu desaparecimento e terás mais um motivo bem forte de minha rematada
loucura. Dirás que é um gozo póstumo. Não é, é apenas uma volúpia prelibada.
Há mais ainda, há a consoladora certeza
de que a elegante mignonne da rua São
Cristóvão me contará como mais um sacrificado ao altar de sua fulgurante beleza.
Tu conhecê-la bem melhor que eu para garantir a justeza de meu acerto. É
verdade que ainda anteontem, no cinema Avenida, o nosso flirt chamara a atenção dos bons burgueses que vão às casas cinematográficas
na mais santa e mais pura intenção de ver as fitas. Mas que lhe custará, hoje à
tarde, apresentar-se à sua mais íntima amiga e com as faces afogueadas de
carmim, os cabelos desgrenhados num estudado negligé, declarar que a sua alma não encontra paz, ameaçar também
suicidar-se, porque dirá — ela também me amava e si me repelia era apenas
porque não tinha a plena convicção do meu amor. Quisera humilhar-me e saíra-lhe
cara a experiência.
Ora, bem sabes, meu velho Alfredo, que
da íntima amiga ao grande público leitor de novidades só há uma questão de...
minutos.
Depois minha família far-me-á funerais
esplêndidos, riquíssimos. Deixo as minhas disposições para que haja luxo, muito
luxo e com muitos atos religiosos, os que ferem a imaginarão sensível das
mulheres e prolongam a duração de minha lembrança.
Depois virão as missas pomposas e solenes,
com catafalco e luzes, no sétimo, no trigésimo dia e eu todos os aniversários
de meu passamento. Depois o mausoléu custoso, encomendado especialmente na Europa
e enfim de vez em quando, a recordação grata e necrológica de algum amigo.
Conto para isso contigo...
Conheces-me há muito tempo, Alfredo,
para saber que isso que aí fica é a mais pura expressão da verdade.
Suicido-me porque acho chic e de muito bom tom esse ato que
todos, numa instintiva solidariedade de rebanho, classificam de loucura ou de
covardia.
Desespero de minha parte não o há, não o
pode haver. O perder a mesada era para mim um fato vulgaríssimo. Meu pai que é
rico e largo de mãos, mandava-me às vezes quatro e cinco mesadas. Vês daí que a
perda da francesinha era uma simples questão de dias...
O amor também não é a causa. Nunca me
liguei a mulher nenhuma, porque não achava nessas conjunções nada que as nobilitasse.
Achava-as sujas.
Pelas moças de hoje, também não poderia
apaixonar-me. Há uma falta tamanha de aristocracia e de linha que, para mim,
uma paixão por qualquer das moças que conheci seria a amostra de amolecimento
de meu cérebro e a prova da decadência completa de minha faculdade de análise.
As minhas, galanterias à mignonne da
rua São Cristóvão nunca foram além da amabilidade que me impunha o código de
rapaz da moda. Porque o amor é, para mim, ainda neste momento, a ausência dessa
instintiva superioridade da razão sobre a carne, que deve distinguir um homem
de um bruto, superioridade que sempre quis ter e pude manter em todos os atos
da vida.
Seria então, desespero pelo desmoronar
de alguma linda esperança?
Pelo que disse acima, nunca as tive,
desde que o homem põe a volúpia e mesmo a razão de ser da vida no amor.
Desespero da vida? Tampouco. Nunca fiz ideia
nenhuma otimista ou pessimista e sempre procurei viver sem saber como nem porquê.
Divertia-me, achava-lhe sabor, graça e encanto, vivi. Agora acho graça em
morrer. Vou com os demais.
Nunca tive religião nenhuma porque nunca
um sentimento mau brotou em minha alma, como nela não brotaria nunca um
sentimento bom. E isto pelo simples fato de que nunca pude fazer a abstração
necessária e perceber qual a diferença que havia entre uns e outros. Para mim
vinham da mesma argila.
Não há covardia também em meu ato.
Covarde por quê? Um covarde não ri diante da morte, não analisa com esta
minha calma que é quase cínica. Demais o covarde despreza e maldiz a vida. Eu
não. Agradeço-lhe os momentos de ventura e de delícia — e foram tantos! — que me proporcionou.
E se o meu suicídio fosse para a redenção de
um grande pecado ou para a redenção póstuma de toda a minha vida — que coisas
engraçadas sabe inventar a dialética humana! — não seria com este meu ar jovial
que me encaminharia para a grande treva. Os sacrifícios refletidos fazem-se de
cenho carregado!
Suicido-me
com uma pistola Browning, tipo
moderno, com o cabo de prata todo cinzelado. Numa das faces há uma alegoria contraditória:
representa Hebe distribuindo o vinho aos deuses no Olimpo...
Escolhi, a pistola por achá-la a mais
digna arma com que eu me podia eliminar do mundo sem que a minha fisionomia sofra
alteração. Quero que me encontrem barbeado, penteado, empoado, os lineamentos
calmos e firmes, deitado direito e placidamente no meu divã, sorridente como
quem dorme um sono longo povoado de sonhos belos.
Não quero que haja uma contração, uma
só, a quebrar a linha de fidalga distinção que me elevou tanto na vida.
No meio de tanta alegria, só levo uma
pequena mágoa: é a de não poder ler os artigos dos jornais sobre o meu “estranho
suicídio”, as notícias sobre o luxo do enterro, sobre a concorrência das missas
e os discursos fúnebres; não poder ver os faniquitos da mignonne nem as lágrimas copiosas da encantadora francesa ... Seria
meu último gozo.
Até pelo reino
dos mortos.
Do teu
Quando Alfredo, meia hora mais tarde,
chegou à casa do suicida, encontrou-o deitado, rígido e direito, e, como ele
mesmo dissera, barbeado, penteado, empoado, os lineamentos calmos e firmes, e
um fio de sangue vincando-lhe o rosto alvo, levemente azulado pela barba. Nos
lábios, levemente entreabertos, parecia bailar, móbil e inquieto, um sorriso indizível
de satisfação, um sorriso diabólico de triunfo e sarcasmo...
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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