12/28/2018

A carta do suicida (Conto), de Sud Mennucci


 A carta do suicida

Caríssimo Alfredo,

Hoje, às cinco horas da manhã, suicido-me. Hás de necessariamente querer saber das causas, dos horríveis motivos que me levam a esse ato de desespero e de revolta, ato que vem sofrendo a abominação dos séculos, previsto até pelo Código Penal.

Não baterás a cabeça à procura do enigma. Basta-te ler o que vem abaixo:

Hoje, mais ou menos às três horas da madrugada, saía eu do High-life, depois de haver jogado e perdido toda a minha primeira mesada, o que implicava a perda de uma linda marselhesa, a quem vinha fazendo a corte há uma boa porção de dias.

Como gosto extraordinariamente do mar, em especial desse “sonho inatingível de poeta” que é a baía de Guanabara, e como houvesse lua, fui andando pela praia do Flamengo em direção à minha casa. Apoiando-me por acaso à amurada do cais para ver melhor uma incidência de raios lunares sobre a água viva e irrequieta do mar, que produzia uma estranha e deliciosa refulgência, não sei por que, assaltou-me de improviso a ideia de dar hoje mesmo cabo da vida. Achei, a princípio, o pensamento curioso e faceto, por não lhe achar ligação nenhuma com o espetáculo magnífico da baía. E enquanto me punha a andar, já esquecido do mar, comecei a meditar sobre essa grande “covardia”.

Por uma natural associação de ideias, lembrei-me do suicídio de Henrique, aquele nosso saudoso e bizarro amigo, tão amigo do paradoxo e do sofisma que, num dia de dúvida sobre a existência de Deus, pôs termo à vida quase heroicamente. Lembras-te do escândalo levantado em torno daquele caso doloroso? Pois o espalhafato da imprensa pareceu-me digno remate de um espírito saturado de esnobismo qual o meu e que bem me poderia elevar à altura do acontecimento máximo da semana. Considera, meu amigo:

Sou um rapaz elegante, demasiado conhecido pela alta sociedade do Rio, relacionado com todas as boas e ilustres famílias que marcam o tom, nesta luminosa Sebastianópolis. Serei assim “o amigo inesquecível que abre, com o seu prematuro passamento, uma lacuna impreenchível em nosso meio culto”. É que o comentário compungido dos jornais sobre os moços suicidas, com as suas frases repassadas de um profundo sentimento de piedade e de simpatia, exerceram sempre sobre mim um irresistível encanto.

Ajunta a isso a probabilidade ou artes a certeza de que a formosa francesa do High-life declarará tristemente que minha morte lhe pesa sobre a consciência, porque foi da sua repulsa aos meus desejos que brotou a ideia do meu suicídio, pensa nas lágrimas que derramará e no confrangimento de sua alma como responsável moral de meu desaparecimento e terás mais um motivo bem forte de minha rematada loucura. Dirás que é um gozo póstumo. Não é, é apenas uma volúpia prelibada.

Há mais ainda, há a consoladora certeza de que a elegante mignonne da rua São Cristóvão me contará como mais um sacrificado ao altar de sua fulgurante beleza. Tu conhecê-la bem melhor que eu para garantir a justeza de meu acerto. É verdade que ainda anteontem, no cinema Avenida, o nosso flirt chamara a atenção dos bons burgueses que vão às casas cinematográficas na mais santa e mais pura intenção de ver as fitas. Mas que lhe custará, hoje à tarde, apresentar-se à sua mais íntima amiga e com as faces afogueadas de carmim, os cabelos desgrenhados num estudado negligé, declarar que a sua alma não encontra paz, ameaçar também suicidar-se, porque dirá — ela também me amava e si me repelia era apenas porque não tinha a plena convicção do meu amor. Quisera humilhar-me e saíra-lhe cara a experiência.

Ora, bem sabes, meu velho Alfredo, que da íntima amiga ao grande público leitor de novidades só há uma questão de... minutos.

Depois minha família far-me-á funerais esplêndidos, riquíssimos. Deixo as minhas disposições para que haja luxo, muito luxo e com muitos atos religiosos, os que ferem a imaginarão sensível das mulheres e prolongam a duração de minha lembrança.

Depois virão as missas pomposas e solenes, com catafalco e luzes, no sétimo, no trigésimo dia e eu todos os aniversários de meu passamento. Depois o mausoléu custoso, encomendado especialmente na Europa e enfim de vez em quando, a recordação grata e necrológica de algum amigo. Conto para isso contigo...

Conheces-me há muito tempo, Alfredo, para saber que isso que aí fica é a mais pura expressão da verdade.

Suicido-me porque acho chic e de muito bom tom esse ato que todos, numa instintiva solidariedade de rebanho, classificam de loucura ou de covardia.

Desespero de minha parte não o há, não o pode haver. O perder a mesada era para mim um fato vulgaríssimo. Meu pai que é rico e largo de mãos, mandava-me às vezes quatro e cinco mesadas. Vês daí que a perda da francesinha era uma simples questão de dias...

O amor também não é a causa. Nunca me liguei a mulher nenhuma, porque não achava nessas conjunções nada que as nobilitasse. Achava-as sujas.

Pelas moças de hoje, também não poderia apaixonar-me. Há uma falta tamanha de aristocracia e de linha que, para mim, uma paixão por qualquer das moças que conheci seria a amostra de amolecimento de meu cérebro e a prova da decadência completa de minha faculdade de análise. As minhas, galanterias à mignonne da rua São Cristóvão nunca foram além da amabilidade que me impunha o código de rapaz da moda. Porque o amor é, para mim, ainda neste momento, a ausência dessa instintiva superioridade da razão sobre a carne, que deve distinguir um homem de um bruto, superioridade que sempre quis ter e pude manter em todos os atos da vida.

Seria então, desespero pelo desmoronar de alguma linda esperança?

Pelo que disse acima, nunca as tive, desde que o homem põe a volúpia e mesmo a razão de ser da vida no amor.

Desespero da vida? Tampouco. Nunca fiz ideia nenhuma otimista ou pessimista e sempre procurei viver sem saber como nem porquê. Divertia-me, achava-lhe sabor, graça e encanto, vivi. Agora acho graça em morrer. Vou com os demais.

Nunca tive religião nenhuma porque nunca um sentimento mau brotou em minha alma, como nela não brotaria nunca um sentimento bom. E isto pelo simples fato de que nunca pude fazer a abstração necessária e perceber qual a diferença que havia entre uns e outros. Para mim vinham da mesma argila.

Não há covardia também em meu ato. Covarde por quê? Um covarde não ri diante da morte, não analisa com esta minha calma que é quase cínica. Demais o covarde despreza e maldiz a vida. Eu não. Agradeço-lhe os momentos de ventura e de delícia — e foram tantos! — que me proporcionou.

 E se o meu suicídio fosse para a redenção de um grande pecado ou para a redenção póstuma de toda a minha vida — que coisas engraçadas sabe inventar a dialética humana! — não seria com este meu ar jovial que me encaminharia para a grande treva. Os sacrifícios refletidos fazem-se de cenho carregado!

Suicido-me com uma pistola Browning, tipo moderno, com o cabo de prata todo cinzelado. Numa das faces há uma alegoria contraditória: representa Hebe distribuindo o vinho aos deuses no Olimpo...

Escolhi, a pistola por achá-la a mais digna arma com que eu me podia eliminar do mundo sem que a minha fisionomia sofra alteração. Quero que me encontrem barbeado, penteado, empoado, os lineamentos calmos e firmes, deitado direito e placidamente no meu divã, sorridente como quem dorme um sono longo povoado de sonhos belos.

Não quero que haja uma contração, uma só, a quebrar a linha de fidalga distinção que me elevou tanto na vida.

No meio de tanta alegria, só levo uma pequena mágoa: é a de não poder ler os artigos dos jornais sobre o meu “estranho suicídio”, as notícias sobre o luxo do enterro, sobre a concorrência das missas e os discursos fúnebres; não poder ver os faniquitos da mignonne nem as lágrimas copiosas da encantadora francesa ... Seria meu último gozo.

Até pelo reino dos mortos.

Do teu
 Sílvio

***
Quando Alfredo, meia hora mais tarde, chegou à casa do suicida, encontrou-o deitado, rígido e direito, e, como ele mesmo dissera, barbeado, penteado, empoado, os lineamentos calmos e firmes, e um fio de sangue vincando-lhe o rosto alvo, levemente azulado pela barba. Nos lábios, levemente entreabertos, parecia bailar, móbil e inquieto, um sorriso indizível de satisfação, um sorriso diabólico de triunfo e sarcasmo...
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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