Nasceram na mesma semana um pinto,
um peruzinho e um marreco. Até aqui, nada. Todos os dias vêm ao mundo marrecos,
perus e pintos sem que isso ponha comichões na pena dos novelistas. O estranho do
caso foi que nasceram irmãos, contra todos os preceitos biológicos.
— ??
Explica-se. Tio Pio, preto cambaio
que tomava conta do terreiro, tivera a ideia de reunir sob certa galinha, em choco
sobre apenas cinco ovos, mais três de perua e dois de marreca salvos de ninhadas
infelizes, conseguindo assim dar vida àquela estranha irmandade de nova espécie.
Dos nove ovos só vingaram três, e
lá estavam os produtos já crescidotes sob à guarda solícita do Peva-de-raça, capão
de pintos posto a pajeá-los para que dona galinha não perdesse tempo com tão pífia
ninhada.
Triste sorte na fazenda a dos galos
cotós de pernas! Tio Pio os punha de parte para capões de pintos, transformando
os belicosos “clarins da aurora” em tristes eunucos, bichos metade galo, metade
galinha, senhores de crista, espora e cauda flamante não mais destinadas a seduzir
frangas, senão a divertir pintinhos.
Peva-de-raça tinha este nome pelas
razões que o nome indica. Mas vá lição para os leitores da cidade, gente que de
galos e galinhas só conhece os da torre das igrejas e as que aparecem ao jantar
em molho pardo. Peva: perna curta; de raça: raça estrangeira.
— A mó que Plimu — explicava Pio aos
interpelantes.
Excelente sujeito o Peva! Tomara os
órfãos no primeiro dia sem nenhuma relutância e dera com eles criados à custa de
infinitos de pachorra.
Muitos dissabores sofreu. O marrequinho,
sobretudo, causou-lhe sérios aborrecimentos.
Havia na fazenda um tanque bordado
de taboas esbeltas, rico de traíras e
sapinhos de cauda. Esse tanque era
a mania do lindo pompom de arminho amarelo. Quantas vezes não ficou o Peva à beira
d’água seguindo de olhos aflitos as evoluções do mimoso palmípede, que nela penetrava
e nadava, e mergulhava com louca afoiteza, inconcebível para o velho capão!
Já os outros não o afligiam tanto.
Divertiam-no até. O capão gostava de ver o peruzinho em caça às moscas. Magricela
e tonto, como sabia marcar a presa, achegar-se com extrema lentidão e de repente
— zás! — uma bicada certeira!
É pinto, esse era mestre em travessuras.
Subia-lhe às costas, tenteando-se nas asinhas, e trepava-lhe pelo pescoço até alcançar
a crista, cujas carúnculas bicava.
Era muito cauteloso, o Peva. Se vinha
chuva, punha-se logo de agacho para abrigo dos guris — de dois apenas, que o terceiro,
o marreco, nenhum caso d’água fazia, antes pelava-se por chuva, só recolhendo ao
sentir-se entanguido.
E era muito metódico, o Peva. Mal
a tarde fechava a carranca anunciativa da noite, lá ia ele de rumo ao terreiro aninhar-se
rente ao muro, sempre no mesmo lugar. Escarrapachava-se ali ao jeito das galinhas
e esperava que os órfãos, depois dumas derradeiras voltas por perto, viessem chegando
e se metessem dentro da plumosa casa viva.
Entrava primeiro o peru, um friorento
de marca; depois o pinto; o marreco por último.
E o Peva cochilava, transfeito em
esquisito animal de quatro cabeças: a sua, grande, cristuda, e mais três cabecinhas
curiosas, que abriam seteiras na plumagem e espiavam o mistério do mundo a envolver-se
nas sombras da noite.
Aquela singularidade deu nome e renome
aos três bichinhos. Quantos pintos, perus e marrecos houvesse na fazenda eram todos
conhecidos por pinto, peru e marreco, genericamente. Só eles se personalizavam.
Eram o Pinto Sura, o Peruzinho do Capão e o Reco-Reco. Seres privilegiados, libertos
da disciplina comum do galinheiro, tornaram-se logo as criaturinhas mais populares
daquele pequeno mundo. Viviam soltos sem lei nem grei, como boêmios errantes encontradiços
por toda parte — nos chiqueiros, nos pastos, ao pé das tulhas, à porta das cozinhas,
onde quer que aparecesse fartura de milho, siriris e quireras.
Havia na fazenda outros animais populares.
Havia a Ruça, mulinha de carroça, bastante velha e próxima da aposentadoria. Só
trabalhava em serviços leves de terreiro, puxando a “carrocinha de dentro”. Pertencera
à tropa, transportara muito café para a cidade, sempre com carga de oito arrobas,
façanha de que, com saudades, se recordava agora.
Entre as vacas era a Princesa a mais
popular. Vaca de estimação. Enriquecera a fazenda de numerosos filhos, entre os
quais o possante Beethoven, agora pastor do rebanho. Dera ainda a Rosita, leiteira
de truz fiel à estirpe e certa nas doze garrafas diárias. E quantas outras crias
que já andavam por sua vez de bezerrinho novo, ou na canga, a puxar carros! Vivia
às soltas, livre de cercas, sempre no pasto dos porcos, ocupando o tempo em mascar
babosamente boas palhas de milho.
Quem mais? Sim, o Vinagre — fiel guardião
da “casa-grande”, veadeiro de fama outrora, hoje um dorminhoco que o que fazia era
cochilar ao sol, de focinho entre as patas e olhos lacrimejantes. Todo ele era passado.
Durante as sonecas vinham agitá-lo pesadelos, nos quais reviviam as cenas violentas
das caçadas de antanho. E o glorioso veterano acuava a dormir.
Os homens nunca prestam grande atenção
aos animais que os rodeiam. Brutinhos, dizem, e desprezam-nos. Mas a verdade é que
a esses nossos manos o que os inferioriza é não gozarem o dom da fala, pelo menos
de fala inteligível para nós, visto como pensam e superiormente raciocinam, possuindo
sobre os homens e as coisas ideias terrivelmente lógicas.
Ali na fazenda eram todos concordes
num ponto: a supremacia de Tio Pio sobre os demais seres humanos. Era Tio Pio a
atenção que nada esquece, a justiça que dá e pune, o amor que compreende, o deus
que cura, a ordem que tudo simplifica.
Para o trio do Peva era Tio Pio o
Recolhe-ovos, o Deita-ninhadas, o Mata-piolho, o Varre-galinheiro, o Pega-frango,
o Arruma-ninho, o Traz-quirera, o Rebenta-cupim, o Espanta-cachorro — modalidades
várias dum alto espírito de providência.
Para a Princesa era o Traz-milho,
o Tira-leite, o Prende-bezerro, o Esvurma-berne, o Fecha-porteira, o Bota-no-pasto.
Para a mulinha era o Põe-carroça,
o Arruma-arreios, o Escova-pelo, o Dá-ração.
Para o Vinagre era o Lava-cachorro,
o Traz-angu, o Atiça-atiça, o Prega-pontapés.
Só ele, entre tantos homens da fazenda,
revelava-se, apesar de preto, claro de intenções e compreensível; só ele não podia
desaparecer sem grave dano geral. Lembravam-se de como todos padeceram certa ocasião
em que Tio Pio caiu de cama. Houve desordem grossa. Pintos morreram de fome; Vinagre
emagreceu; a Princesa viu-se privada de palha; o Peva dormiu fora do terreiro pela
primeira vez. Ao cabo de dez dias, quando o preto ressurgiu, recém-sarado, foi como
se repontasse o sol em seguida a longo tempo de chuvas. Que alegria!
As demais criaturas humanas afiguravam-se-lhes
misteriosas e sobretudo ilógicas. Impossível ao Vinagre entender o patrão. Já de
cara alegre, já de cara amarrada, recebia-o alternativamente com carinho ou pontapés.
E o velho cachorro filosofava: como é que um mesmo ato meu, sempre gesto de afago
e submissão, ora recebe prêmio, ora castigo? Não entendia...
E muito menos o entendiam o Peva,
a Princesa e a Ruça. Sua presença no curral ou no pasto era signo certo de calamidade
— morte, prisão, tortura. “Mate aquele boi”, “Pegue aquele frango”, “Arreie aquele
cavalo”, “Cape aquele porco”. Mate, pegue, arreie, cape, venda, esfole — não se
lhe ouviam outras palavras. E toda gente corria pressurosa a executar-lhe as ordens,
por mais tirânicas que fossem.
Igualmente incompreensíveis eram os
filhotes do homem. Que criaturinhas variáveis, irrequietas, cruéis! Sempre de vara
na mão, perseguiam abelhas e borboletas, esmagavam os sapos, atropelavam as galinhas.
Ao vê-las, Vinagre disfarçadamente saía para longe e o Peva bandeava-se com seus
órfãos para o outro lado dalgum vedo. Só a Princesa nenhum caso deles fazia, certa
do terror que lhes inspiravam os seus longos chifres.
Já a Dona, mulher do Senhor, não infundia
medo senão às aves. Terrível inimiga do galinheiro! Depredava os ovos e condenava
à morte justamente os mais belos frangos e as mais respeitáveis matronas de pena
— “galinhas velhas”, como dizia a ingrata.
Para os outros animais a Dona significava
apenas ignorância. Era a “Perguntativa” e a “Muda-cor”. Hoje de cor-de-rosa, amanhã
de azul, não usava cor fixa. E vivia interrogando:
— Pio, que burro é esse?
— Não é burro, sinhá, é a mulinha
Ruça.
Perguntava sempre. Que caroços eram aqueles na vaca? Que boi estava
rinchando no pasto? Que trepadeira andavam
a tirar das árvores?
Viera duma cidade grande, havia pouco
tempo, cheia de gritinhos e medo aos bichos. Ignorava tudo, fora pilhar ninhos.
Papa-ovo, apelidou-a o Peva, como já havia
apelidado Tio Pio de É-hora e aos demais
camaradas da fazenda de Sim-Senhores,
porque Sim Senhor era o estribilho com
que habitualmente retrucavam a todas as ordens do Dono.
Por uma tarde igual às outras, recolhia-se
Peva ao pouso do costume seguido dos três órfãos já marmanjões. No céu, a caraça
vermelha do sol escondia-se detrás do morro, e na terra os primeiros grilos ensaiavam
as asas cricrilantes. Rente à porteira a mulinha, solta no pasto minutos antes,
espojava-se regalada.
— Boa tarde! — saudou-a o Peva. —
Cansadinha, hein?
A mula interrompeu a cabriola e abanou
as orelhas como quem diz: “É verdade”. Depois falou:
— Acho prudente que tome cuidado com
seus filhos. A Perguntativa anda interessada por eles — e isso é mau sinal. Vi-a
em conversa com É-hora e pilhei este pedacinho: “O marreco do capão está no ponto”.
Não sei o que quer dizer, mas boa coisa não será.
O Peva enrugou a testa, apreensivo.
Jamais a Perguntativa se referia a alguma ave sem que sobreviesse desgraça. “Está
no ponto” — que quereria dizer aquilo?
A mulinha ignorava-o. Sabia de algumas
palavras triviais, conhecia o pegue, o prenda,
o mate — mas o está no ponto era-lhe
coisa nova.
— Quem há de saber disto é o Vinagre.
Mora na casa-grande e entende a língua dos homens melhor do que nenhum de nós. Consulte-o,
e não deixe também de consultar a Princesa, cuja experiência da vida é grande.
Peva se foi à Princesa, que encontrou
mascando as palhas do costume.
— Está no ponto — poderá dizer-me, senhora Princesa, que coisa significa
na língua dos homens?
A vaca interrompeu a mascação e disse:
— Já ouvi essa palavra aplicada ao
meu filho segundo, o Barroso. Tinha ele dois anos e meio. O Dono passava em companhia
de um Sim-senhor. Avistou de longe o meu Barroso no pasto e ordenou: “Aquele boizinho
está no ponto. Carro com ele!”. No dia seguinte laçaram-no, meteram-no na canga
e o pobre do meu garrote muito que padeceu a puxar um carro pesadíssimo. Deste incidente
concluo que estar no ponto quer dizer
carro.
Peva, um tanto curto de ideias, tremeu
ante aquela revelação. Horror, meterem no carro ao seu querido marrequinho! Em seguida
duvidou. Andar no carro era coisa que só vira fazer aos bois. Não podia ser. A vaca
errara evidentemente.
“Resta-me consultar o Vinagre”, refletiu,
e todo pepé, com ruguinhas de apreensão na crista, foi ter com o velho cachorro.
Vinagre não resolveu o enigma, embora
respondesse como o mais sábio dos oráculos.
— Pode ser muita coisa. A linguagem
dos homens varia, ora quer dizer isto, ora aquilo. Mas que não é coisa boa, isso
eu asseguro.
Nesse dia o capão, seguido dos órfãos,
recolheu-se ao pouso habitual sem a despreocupação de outrora. Custou-lhe conciliar
o sono. Não lhe saíam da cabeça as palavras misteriosas e de sentido inapreensível.
Por fim dormiu e sonhou. Sonhou que ao lado do Barroso jungiam ao carro o pobre
marrequinho. O sonho virou pesadelo e Peva sofreu horrores ante o quadro do filho
adotivo a debater-se sob a monstruosa canga...
No dia seguinte, no momento da ração
de milho, Tio Pio inesperadamente agarrou o marrequinho pelas pernas e lá se foi
com ele para a Cozinha.
Aflitíssimo, tomado de imenso desespero,
Peva inda alimentou esperanças de vê-lo. Mas a noite chegou e com ela a primeira
desilusão de sua vida. Nada do marreco. Pela manhã, nada. Meio-dia, nada.
À hora do jantar encontrou Vinagre
roendo uns ossos no terreiro.
— Que é isso, amigo?
— Ossos de marreco.
— De marreco! — exclamou Peva, surpreso.
— Sim. Que admiras? Que os marrecos
tenham ossos? Têm-nos, e excelentes...
Peva estarreceu. Compreendia afinal
o tremendo sentido das palavras misteriosas. Está no ponto significava condenação à morte. Horror!...
Guardou consigo, entretanto, aquela
mágoa. Nada disse ao peruzinho nem ao frango, prevendo para os dois sorte idêntica.
— Bem triste a vida sob o domínio
cruel do homem! Nada de bom vem deles... — filosofou.
Nessa mesma tarde Peva cruzou-se com
a Princesa e disse-lhe:
— Erraste, Princesa. Está no ponto quer dizer morte.
A vaca parou a mastigação da palha
e sorriu da ingenuidade do Peva. Ela tinha tanta certeza de que queria dizer carro...
A vida na fazenda rolava na mesmice
de sempre. Tudo continuava. A Ruça, a puxar a carrocinha; a Princesa, a mascar palhas;
o Vinagre, a acuar em sonhos. Só na tribo do Peva a alegria não era a mesma. Saudades
do marreco. Várias vezes o frango indagou do destino de Reco-Reco, forçando o capão
a mentir. “Anda de viagem, uma longa viagem... Um dia volta.”
Mas com que tristeza punha os olhos
no tanque ou nas poças de enxurro que se formavam em dias de aguaceiro, pensando
lá consigo: “Nunca mais!”...
O tempo corre, as estações se sucedem.
A primavera anunciou-se nos mil botões que se arredondavam nas laranjeiras. Os órfãos
do capão já eram mais companheiros de ciscagem do que filhotes pipilantes. Já dispensavam
a sua solícita assistência. O peruzinho, grandalhudo e bem empenado, fez-se independente.
O frango punha crista, com as esporas abotoadinhas. Mudara de gênio, e se via alguma
franga ia arrastar-lhe a asa até que algum galo de verdade o escorraçasse.
Certa manhã a Perguntativa veio assistir
à amilhagem das aves. Fez várias perguntas e deu várias ordens ao Pio, concluindo,
de dedo apontado para o frango:
— Está pedindo panela, aquele!
— Qual, Sinhá? O Sura?
— Sura quer dizer sem rabo? É. É ele
mesmo.
Peva, que tudo ouvira, engasgou-se
com o grão de milho que tinha no bico, perdeu a fome e incontinenti saiu do bando.
Embora não compreendesse o sentido daquelas palavras, previu que “boa coisa não
seria”, como filosofava o Vinagre.
E acertou. O frango, no dia imediato,
desapareceu misteriosamente. Peva procurou-o por todos os cantos e, desconfiado,
foi rondar os fundos da Cozinha na esperança de ouvi-lo piar lá dentro. Não ouviu
pio nenhum — mas encontrou penas suspeitas no monte de lixo...
Adquirida a certeza do novo desastre,
fez-se ainda mais tristonha a vida do pobre capão. A Cozinha! Era nas goelas daquele
horrendo Moloch que sucessivamente iam desaparecendo os seus queridos órfãos. Engolira
o marreco, engolira o frango... Engoliria também o peruzinho, por que não?
Velho e desalentado, com o coração
sempre saudoso dos travessos garotinhos que criara, tornou-se macambúzio. Inda passeava
com o peru, apesar da cada vez maior independência deste. Chegou a notar que era
ele, Peva, quem o acompanhava agora. Notou-o, mas procurou iludir-se e simulava
amadrinhá-lo, como outrora...
Pela força do hábito inda dormiam
juntos, no antigo pouso ao pé do muro. Mas logo o peru, que é amigo de poleiro,
elegeu um, cômodo, em certa escada velha, e o capão teve de acompanhá-lo na mudança.
E ali passaram a dormir juntinhos e encorujados no mesmo degrau.
Assim viveram até a chegada do Ano-Bom.
Na véspera a Perguntativa apareceu
no momento do dar milho e disse ao
Pio:
— Olhe, amanhã temos o peru. Não esqueça
de comprar pinga.
Desta feita Peva não vacilou quanto
ao sentido da expressão. Está no ponto — panela
— temos o peru — deviam ser frases equivalentes. Estava pois condenado a entrar
para a Cozinha o seu derradeiro filho...
Cheio de resignação e com a alma em
transes, Peva passou o dia num canto, jururu, remoendo as doces recordações de outrora.
Ao cair da noite recolheu-se. Empoleirou-se na velha escada e achou muito natural
que o peru não comparecesse.
Dormiu tarde e teve o sono agitado
de contínuas estremeções de angústia. No dia seguinte notou movimento fora do comum
na casa-grande. Vinha gente de longe, mulheres de trole, homens a cavalo. Vinagre,
esquecido da soneca do costume, entrava e saía, abanando a cauda com vivacidade
de cachorro novo.
Num destes vaivéns Peva o deteve.
— Que há na casa-grande? Tanta gente...
— Há peru — respondeu o cão. — Quando
há peru, os homens se assanham, vestem roupas novas, brincam e dançam. Tenho notado
que a presença do peru à mesa provoca nos homens uma espécie de delírio, como entre
as galinhas a queda de içás.
Esta observação do cachorro, embora
muito lisonjeira para a raça dos perus, não consolou nada ao nosso Peva, que se
sentia ganho menos de tristeza que de funda indiferença pela vida. O sucessivo sacrifício
dos filhotes calejara-lhe por partes o coração. No dia do marreco a dor que sentiu
foi verdadeira dor de pai; em seguida, pela morte do frango, a sua dor foi dor de
pai adotivo; agora, ao perder o peru, a dor era calma e resignada. Dor de filósofo.
Compreendia, afinal, que a vida foi e é assim, e não melhora...
Os capões inspiram desprezo aos galos
e talvez piedade irônica às senhoras galinhas. Por isso Peva, em sua triste solidão,
deambulava pelo terreiro como criatura sem lugar na vida. As lindas frangas, as
viçosas poedeiras, e até as velhas galinhas aposentadas, tinham pela sua honesta
companhia um profundo desdém. E como nem os frangotes o procuravam, o isolamento
do triste eunuco era completo.
Esse errar à toa fê-lo notado de Tio
Pio, que se lembrou de pô-lo a criar nova ninhada.
— Anda vadiando aqui, este diabo...
Espera que te arrumo.
Agarrou-o, levou-o ao galinheiro,
esfregou-lhe urtiga no abdome e deitou-o sobre uma ninhada de dez pintos nascidos
na véspera.
Não ofereceu Peva a menor resistência.
Deixou fazer. Agachou-se como dantes e cobriu lindamente os gentis recém-nascidos.
Altas horas, porém, ergueu-se e tomou
rumo do poleiro, abandonando aos frios da noite a roda de vidinhas pipilantes. Não
mais queria exercer a profissão de mãe. Para quê?
— Se têm de morrer na Cozinha, morram
agora enquanto ainda não lhes tenho amor.
Os pintos amanheceram mortos, entanguidos
de frio.
Quando Tio Pio tomou conhecimento
do desastre, ficou furioso.
— Cachorro! Você fez mas paga!
Houve um corre-corre. A galinhada
assustadiça debandou; os marrecos meteram-se no tanque.
Cotó de pernas, frouxo de asas, Peva
pouco resistiu à perseguição do negro. Rendeu-se e, seguro pelas patas, de cabeça
para baixo: com as ideias perturbadas pela congestão do cérebro, por sua vez transpôs
a soleira da Cozinha, insaciável sorvedouro de vidas, odioso túmulo de Reco-Reco,
do Sura, do Peru e agora do venerável tutor da estranha irmandade...
Quem na manhã do dia seguinte passasse
pelo fundo da horta veria no monte de lixo um punhado de penas escaldadas, escorridas,
sem cor, sujas de cinza. E veria duas pernas rugosas de longas esporas recurvas.
E veria ainda uma dolorosa cabeça de crista violácea, com os olhos semiabertos,
em cujas pupilas de vidro várias formiguinhas se miravam.
Horríveis, aqueles despojos?
Um urubu pousado ali perto não pensava
assim...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
qual e o tipo de narrador desse conto??
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