11/01/2018

“Quero ajudar o Brasil...” (Conto), de Monteiro Lobato



“Quero ajudar o Brasil...”

Já contei este caso. Vou contá-lo de novo. Hei de contá-lo toda a vida, porque é um grande conforto de alma. É a coisa mais bonita que ainda vi.

Foi no começo de nossa tremenda campanha pró-petróleo. Havíamos com Oliveira Filho e Pereira de Queiroz lançado a Companhia Petróleos do Brasil — em que ambiente, santo Deus! Tudo contra. Todos contra. O Governo contra. Os homens de dinheiro contra. Os bancos contra. A “sensatez” contra.

Ceticismo absoluto em todas as camadas. Uma guerra surda por baixo, subterrânea, que naquele tempo não sabíamos donde emanava. Guerra de difamação ao ouvido — a pior de todas. As coisas ditas em voz alta não causam efeito; ao ouvido, sim.

— Fulano é um escroque.

Enunciadas assim ao natural não impressionam a ninguém, tanto andamos afeitos a ouvir acusações dessas. Mas a mesma frase dita muito em reserva, ao ouvido, com a mão em tapa-som, “para que ninguém mais ouça”, cala fundo, faz-se imediatamente crida — e quem a recebe corre a propagá-la como dogma.

A guerra contra os promotores da nova companhia era assim: de ouvido em ouvido, as mãos sempre em tapa-som — para que ninguém mais ouvisse o que era preciso que todos soubessem. A calúnia é a rainha da técnica.

Nos seus manifestos os incorporadores haviam sido em extremo leais. Admitiam a possibilidade de fracasso, com perda total do capital empatado. Pela primeira vez na vida comercial deste país se propunha ao público um negócio com admissão das duas faces: vitória esplêndida, em caso de encontro do petróleo, ou perda total dos dinheiros invertidos, no caso reverso. Esta franqueza impressionou. Inúmeros subscritores vieram arrastados por ela.

— Vou tomar tantas ações só por terem os senhores mencionado a hipótese da perda total dos dinheiros. Isso me convenceu de que se trata de negócio sério. Os negócios não sérios só acenam com lucros, jamais com possibilidades de perda.

A lealdade dos incorporadores foi vencendo o público miúdo. Só aparecia no escritório gente simples, tentada pelas vantagens tremendas do negócio em caso de sucesso. O raciocínio de todos era o mesmo de na compra dum bilhete das grandes loterias do Natal.

Os incorporadores levaram o escrúpulo a ponto de lembrar a cada novo subscritor a hipótese da perda total do dinheiro.

— Sabe que corre o risco de perder o seu cobre? Sabe que se não tocarmos em petróleo o fracasso da empresa será completo?

— Sei. Li o manifesto.

— Mesmo assim subscreve?

— Mesmo assim.

— Então assine.

E desse modo iam sendo as ações absorvidas pelo público.

Certo dia entrou-nos pela sala um preto modestamente vestido, de ar humilde. Recado de alguém, certamente.

— Que deseja?

— Quero tomar umas ações.

— Para quem?

— Para mim mesmo.

Oh! O fato surpreendeu-nos. Aquele homem tão humilde a querer comprar ações. E logo no plural. Quereria duas, com certeza, uma para si, outra para a mulher. Isso importaria em duzentos mil-réis, quantia que já pesa num orçamento de pobre. Quantos sacrifícios não teria de fazer o casal para pôr de lado duzentos mil-réis ratinhados ao salário miserável? Para um ricaço tal quantia corresponde a um níquel; para um operário é uma fortuna, é um capital. Os salários no Brasil são a miséria que sabemos.

Repetimos ao extraordinário preto a cantiga de sempre.

— Sabe que há mil dificuldades neste negócio e que corremos o risco de perder a partida, com destruição de todo o capital empatado?

— Sei.

— E mesmo assim quer tomar ações?

— Quero.

— Está bem. Mas se houver fracasso não se queixe de nós. Estamos a avisá-lo com toda a lealdade. Quantas ações quer? Duas?

— Quero trinta.

Arregalamos os olhos e, duvidando dos nossos ouvidos, repetimos a pergunta.

— Trinta, sim — confirmou o preto.

Entreolhamo-nos. O homem devia estar louco. Tomar trinta ações, empatar três contos de réis num negócio em que a gente mais endinheirada não se atrevia a ir além de algumas centenas de mil-réis, era evidentemente loucura. Só se aquele homem de pele preta estava escondendo o leite — se era rico, muito rico. Na América existem negros riquíssimos, até milionários; mas no Brasil não há negros ricos. Teria aquele, por acaso, ganho algum pacote na loteria?

— Você é rico, homem?

— Não. Tudo quanto tenho são estes três contos que juntei na Caixa Econômica. Sou empregado na Sorocabana há muitos anos. Fui juntando de pouquinho em pouquinho. Hoje tenho três contos.

— E quer pôr tudo num negócio que pode falhar?

— Quero.

Entreolhamo-nos de novo, incomodados. Aquele raio de negro nos atrapalhava seriamente. Forçava-nos a uma inversão de papéis. Em vez de acentuarmos as probabilidades felizes do negócio, passamos a acentuar as infelizes. Enfileiramos todos os contras. Quem nos ouvisse, jamais suporia estar diante de incorporadores duma empresa que pede dinheiro ao público — mas de difamadores dessa empresa. Chegamos a afirmar que pessoalmente não tínhamos muitas esperanças de vitória.

— Não faz mal — respondeu o preto na sua voz inalteravelmente serena.

— Faz, sim! — insistimos. — Jamais nos perdoaríamos se fôssemos os causadores da perda total das reservas duma vida inteira. Se quer mesmo arriscar, tome duas ações só. Ou, três. Trinta é demais. Não é negócio. Ninguém põe tudo quanto possui num cesto só, e muito menos num cesto incertíssimo como este. Tome três.

— Não. Quero trinta.

— Mas por quê, homem de Deus? — indagamos, ansiosos por descobrir o segredo daquela decisão inabalável.

Seria a cobiça? Crença de que com trinta ações ficaria milionário em caso de jorrar o petróleo?

— Venha cá. Abra o seu coração. Diga tudo. Qual o verdadeiro motivo de você, um homem humilde, que só tem três contos de réis, insistir desta maneira em jogar tudo neste negócio? Ambição? Pensa que pode ficar um Matarazzo?

— Não. Não sou ambicioso — respondeu ele serenamente. — Nunca sonhei em ficar rico.

— Então por que é, homem de Deus?

— É que eu quero ajudar o Brasil...

Derrubei a caneta debaixo da mesa e levei uma porção de tempo a procurá-la. Maneco Lopes fez o mesmo, e foi embaixo da mesa que nos entreolhamos, com caras que diziam: “Que caso, hein?”. Em certas ocasiões só mesmo derrubando uma caneta e custando a achá-la, porque há umas tais glândulas que nos turvam os olhos com umas aguinhas impertinentes...

Nada mais tínhamos a dizer. O humilde negro subscreveu as trinta ações, pagou-as e lá se foi, na sublime serenidade de quem cumpriu um dever de consciência.

Ficamos a olhar uns para os outros, sem palavras. Que palavras comentariam aquilo? Essa coisa chamada Brasil, que é de vender, que até os ministros vendem, ele queria ajudar... De que brancura deslumbrante nos saíra aquele negro! E como são negros certos ministros brancos!

O incidente calou fundo em nossas almas. Cada um de nós jurou lá por dentro levar avante a campanha do petróleo custasse o que custasse, sofrêssemos o que sofrêssemos, houvesse o que houvesse. Tínhamos de nos manter na altura daquele negro.

A campanha do petróleo tem sofrido variados desenvolvimentos. Guerra grande. Luta peito a peito. E se o desânimo não nos vem nunca, é que as palavras do negro ultrabranco não nos saem dos ouvidos. Nos momentos trágicos das derrotas parciais (e têm sido muitas), nos momentos em que os lidadores no chão ouvem o juiz contar o tempo do nocaute, aquelas palavras sublimes fazem que todos se ergam antes do DEZ fatal.

“— É preciso ajudar o Brasil...”

Hoje sabemos de tudo. Sabemos das forças invisíveis, externas e internas, que puxam para trás. Sabemos os nomes dos homens. Sabemos da sabotagem sistemática, dos móveis da difamação ao ouvido, do perpétuo dar para trás da administração. Isso, entretanto, deixa de ser obstáculo porque é menor que a força haurida nas palavras do negro.

Abençoado negro! Um dia teu nome será revelado. O primeiro poço de petróleo em São Paulo não terá o nome de nenhum ministro nem presidente. Terá o teu. Porque talvez tenham sido tuas palavras a secreta razão da vitória. Os teus três contos foram mágicos. Amarraram-nos para sempre. Trancaram com pregos a porta da deserção...



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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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