O Tio Milon
Foi durante a guerra de 1870. Os prussianos ocupavam
todo país. O general Faidherbe, do exército do Norte, os tinha sob o seu
comando.
O Estado Maior prussiano se havia instalado na granja
do tio Milon. Este havia recebido e instalado os oficiais inimigos o melhor que lhe era possível.
Fazia um mês que a vanguarda extrema dos alemães
permanecia no povoado observando os movimentos do inimigo. Os franceses estavam acampados,
imóveis, a dez léguas dali e, não obstante isto, não se passava noite em que
não desaparecesse algum soldado.
Nenhum dos soldados de sentinela, ou das patrulhas
de ronda, voltava a seus postos.
Pela manhã os encontravam mortos no campo, à beira
dos caminhos, estendidos nas valas marginais. Até os cavalos apareciam mortos
também, degolados por tremenda punhalada no pescoço.
Todas as mortes pareciam ter sido cometidas pelos
mesmos homens que não apareciam em parte alguma.
Houve pânico em todo o país. Os prussianos fuzilavam
os homens por uma simples denúncia, encarceravam as mulheres e procuravam obter
por meio do terror as declarações das crianças. Não se pôde averiguar nada.
Mas, eis que uma manhã, encontraram tio Milon
estendido no terreno da granja com um talho na cara.
A três quilômetros dali haviam encontrado também
dois soldados mortos. Um deles tinha ainda na mão seu sabre ensanguentado.
Havia se defendido certamente.
Imediatamente se constituiu o conselho de guerra em
campo aberto, em frente à granja, e perante
ele levado o tio Milon.
Era um homem de sessenta e oito anos, pequeno, desajeitado,
com as mãos grandes e compridas como antenas. Seus cabelos escassos e sem brilho,
deixavam ver por todas as partes o couro do crânio. No pescoço sob a pele
vermelha e curtida, viam-se veias grossas, que se fundiam nos maxilares para aparecerem
outra vez nos frontais. No povoado tinha fama de avarento e de muito exigente
nos tratos e negócios.
Os alemães, colocaram-no em pé entre quatro soldados,
ante a mesa do tribunal. Cinco oficiais e o coronel iam julgá-lo.
O coronel tomou a palavra, em francês:
— Tio Milon: desde que estamos aqui só temos que lhe
fazer elogios. Você sempre se tem mostrado complacente e até afetuoso conosco,
porém, hoje pesa sobre a sua pessoa uma terrível acusação, e é necessário que
se saiba a verdade. Como foi produzida esta ferida que você tem na cara?
O velho não respondeu.
Esse silêncio o condena tio Milon. Quero que você me
responda explicitamente. Você sabe quem matou dois praças que foram encontrados
esta manhã perto do Calvário?
O acusado respondeu sem vacilar:
— Fui eu.
O coronel calou-se um momento, olhando muito
surpreendido e com firmeza o prisioneiro.
O tio Milon permanecia impassível, com cara
inexpressiva de homem do campo e com o olhar no chão, como se se estivesse
confessando ante um sacerdote. Só uma coisa podia revelar sua emoção anterior:
era que se via ele fazer grandes esforços para tragar a saliva, como se lhe apertassem o pescoço
para estrangulá-lo.
Sua família, o filho, a nora e os netos olhavam-no
cheios de espanto e consternação.
O coronel prosseguiu perguntando:
— Você sabe também quem matou todos os soldados do nosso exército que têm aparecido
mortos no campo quase que diariamente, desde o mês passado?
— Eu.
— Você matou todos, todos eles?
— Sim.
— Você sozinho?
— Eu só.
— Eu só.
—Diga-me como o fez.
O velho fez um gesto de desgosto. Indubitavelmente contrariava lhe a necessidade de falar durante muito tempo. E respondeu com má vontade:
— Que sei eu! Agia segundo se apresentava a ocasião.
— Advirto-lhe que é necessária que você me conte
tudo. E, ainda mais. É preciso que relate imediatamente. Como foi que você começou?
O tio Milon lançou um olhar inquieto a sua família
que o escutava angustiosa às suas costas. Vacilou um momento, porém, logo
decidiu-se e, resolutamente, disse:
— Vinha eu para casa uma noite, cerca de dez horas
do dia seguinte à chegada dos alemães. Os senhores e os soldados me haviam
roubado quase cinquenta escudos em moeda, além de uma vaca e de dois carneiros.
Eu disse a mim mesmo: tantas vezes quantas me roubem num valor de vinte
escudos, tantas vezes eu me vingarei. Sem contar que havia outras coisas que me
repudiam o sangue e que as direi depois. Vi, ao chegar, um soldado que estava
fumando cachimbo detrás da minha granja. Fui buscar uma foice e voltei,
caladinho e tão vagaroso, que não fiz o menor ruído. Cortei-lhe a cabeça de um
só golpe, de um só, como se fora uma espiga, e sem dar tempo a que ele
exclamasse, ao menos — “ai!”. Se querem encontrá-lo não têm mais que ir à
chácara e o acharão metido em um saco de carvão, com uma pedra dentro... Eu
tinha um plano. Juntei todos os seus objetos, desde os sapatos até o quepe, e
os escondi onde ninguém pudesse encontrá-los.
Calou o ancião. Os oficiais entreolhavam-se assombrados.
Seguiu-se o interrogatório e eis aqui o que ouviram:
Desde então o tio Milon viveu com uma única ideia
fixa: a de matar os prussianos.
Odiava-os com um rancor solapado e profundo de campônio
rústico e patriota. Tinha seu plano, como ele dizia, e esperou alguns dias.
Deixavam-no entrar e sair livremente porque
mostrava-se humilde e complacente com os vencedores. Assim, pois, cada noite
via sair as patrulhas. Com uma delas saiu ele também, depois de ter ouvido o
nome do povoado ao qual os soldados deviam dirigir-se, pois com o trato
continuado com tropa havia aprendido algumas palavras do alemão. Saiu pela
quadra, foi ao forno de gesso, penetrou no seu interior, e, bem no fundo,
encontrando no chão o uniforme do morto vestiu-se com ele.
Depois dirigiu-se ao campo, ocultando-se nas saliências
do terreno, escutando atento os menores ruídos, inquieto como um pássaro.
Quando julgou chegado o momento oportuno, aproximou-se de uma velha carroça e ocultou-se
entre os fardos de capim nela empilhados. Ainda esperou ali um momento. Por
fim, já quase à meia-noite, ouviu-se o galope sobre a terra dura do caminho. O
tio Milon escutou com atenção, para assegurar-se de que era só um soldado que se
aproximava, e preparou-se.
O cavalariano vinha correndo, a galope, trazendo um memorando.
Quando estava próximo, o tio Milon deixou-se cair no meio da carroça,
contorcendo-se, gemendo.
— Hilfe! Hilfe! Socorro! Socorro!
O ginete deteve-se. Viu um alemão, julgou-o ferido;
apeou-se do cavalo e aproximou-se confiante. Quando inclinava para socorrer o
desconhecido a lâmina do sabre atravessou-lhe o ventre. Caiu sem agonia,
retorcendo-se em um estremecimento supremo.
Então o velho levantou-se radiante de alegria, e
pelo prazer de uma carnificina, cortou a cabeça do cadáver. Arrastou-o, depois,
até um fosso e atirou-o dentro dele.
O cavalo esperava tranquilo o seu dono. O tio Milon
montou-o e fê-lo correr a galope, pela planície.
Ao cabo de uma hora viu outros dois soldados que,
caminhando juntos, voltavam ao quartel. Correu em direção a eles gritando:
"Hilfe! Hilfe!”, e os prussianos, conhecendo o uniforme, deixaram-no
aproximar-se sem a menor desconfiança. E o tio Milon passou entre os dois como
uma bala rasa, matando-os um com o sabre e o outro com um tiro de revólver.
Degolou depois os cavalos, os dois cavalos alemães,
e dirigiu-se cautelosamente para o forno de gesso onde escondeu o cavalo que havia
tomado ao primeiro soldado. Despiu o uniforme, vestiu novamente o seu traje de paisano
e foi deitar-se, dormindo tranquilamente em seu leito até a manhã seguinte.
Durante quatro dias não saiu, esperando o resultado
das investigações empreendidas. Mas, no quinto, tornou a fazer a mesma
operação, matando outros dois soldados. Desde então não se deteve em sua obra.
Cada noite prosseguia na aventura a que se propusera, matando prussianos já em
um sítio, já em outro.
Ao meio-dia ia completamente tranquilo levar a ração
a seu cavalo, escondido no forno.
Chegou, por fim, uma noite em que uma de suas
vítimas, apercebendo-se, pôde defender-se e feriu-o no rosto antes de morrer.
Pôde, mesmo assim, o tio Milon chegar ao forno, esconder
o cavalo e mudar o traje. Mas, ao chegar à quadra da granja perdeu os sentidos
e caiu no chão.
Encontraram-no ensanguentado em um monte de palha.
***
Quando concluiu o seu relato, levantou com altivez a
cabeça e ficou, impassível, olhando cara a cara os oficiais prussianos.
O coronel, torcendo o bigode, perguntou-lhe:
— Você não tem mais nada a acrescentar?
— Nada mais. A conta está certa. Metei dezesseis.
Nem um a mais, nem um menos.
— E você não sabe que vai morrer?
— Eu não pedi clemência aos senhores.
— Você já foi soldado?
— Sim. Em moço estive na guerra...
Ao demais, vocês mataram meu pai, que era soldado do
primeiro império. Vocês mataram meu filho menor. Francisco no mês passado,
perto de Evreux. Tinha uma dívida a saldar e ela está paga. Estamos em paz.
Os oficiais não cessavam de entreolharem-se.
O velho continuou:
— Oito por meu pai, oito por meu filho. Estamos em
paz. Eu não fui buscar os senhores para a querela. Eu não os conhecia, nem de
vista. Mas os senhores meteram-se na minha casa e mandam aqui, como se
estivessem em suas propriedades. Vinguei-me nos outros. Não me arrependo de o
ter feito.
Os prussianos falaram entre eles voz baixa. Um
capitão, que também havia perdido um filho no mês anterior, defendia aquele
velho indomável.
O coronel pôs-se de pé, aproximando-se do tio Milon,
disse-lhe, baixando a voz:
— Escuta. Talvez haja um meio de salvar-lhe a
vida...
Mas o ancião não o ouvia, fazia-se alheio. Olhando
altivo o oficial vencedor, fez um gesto horrível, que contraiu sua face cruzada
de parte a parte pela ferida e, inflando o peito, cuspiu com todas as suas forças
em pleno rosto do coronel prussiano.
O coronel, louco de raiva, levantou a mão e o velho
tornou a cuspir-lhe outra vez.
Todos oficiais levantaram-se e deram ordens a um
mesmo tempo.
Em menos de um minuto foi o velho, sempre impassível,
encostado na parede e fuzilado, enquanto olhava, pela última vez, e sorrindo, o
seu filho João, a sua nora e os netinhos que presenciavam a cena loucos de
espanto.
---
Guy de Maupassant
O Diário
Carioca, 13 de março de 1938
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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