O Pai Natal
O Pai Natal andava
atarefadíssimo. E compreendia-se muito bem. Tratava-se da viagem à Terra e da
distribuição de bilhões de presentes a todos os mortais deste heroico planeta.
O suor caía-lhe às bagadas e o lenço de Alcobaça que levara da visita do ano
anterior, estava todo molhado das contínuas limpezas à sua respeitável calva.
O Menino Jesus tolhia-lhe os
movimentos, constantemente a mexericar nos brinquedos mais vistosos, que o
pobre Menino Jesus também quereria para si. Já lhe tinha dado algumas sapatadas
nas mãozinhas, mas isso nenhum resultado deu em benefício da ordem.
Gostava de ser pontual; era
uma das suas glórias, essa, de em milhares de anos chegar à Terra à meia-noite,
ouvir os si nos de todo o planeta tocar festivos e os salmos elevarem se das
sombras das catedrais. Continuadamente arredava as barbas imensas com a mão de
fortes cordoveias, e pela abertura do gibão vermelho, orlado de branco,
procurava o grande relógio de ouro que consultava numa justificada inquietação.
As impertinências infantis e adoráveis do Menino não eram nada, não o
incomodavam. Havia outros embaraços e, estes sim, de certa importância. É que o
Pai Natal era assediado com incríveis pedidos, de uma insistência que lhe fazia
perder a bonomia.
Imensa gente queria ir com ele.
S. Francisco de Assis lamentava-se profundamente, com humildade enternecedora,
servindo-se da sua voz mais comovente. Com suavidade, pousando a mão de longos
dedos descarnados sobre a manga farta do gibão vermelho do Pai Natal, ia
dizendo:
Sabes lá que saudades eu tenho
da Terra! Aqui, bem vês, a minha alma não tem violências a combater, nem ódios
a aplacar. Que queres que eu faça no infinito da bem-aventurança? Não tenho
feras a quem arranque os abrolhos, não posso continuar a minha sina de fazer os
corações tão puros que se pudessem irmanar todos, como um só coração, para o
mundo. Bem sei que não tenho irmão lobo para afagar — ai de mim! Também não
tenho a gratidão infinita dos homens, dos animais e das coisas.
A medo, vagamente esperançado
que as suas palavras lhe tivessem tocado na alma, insistiu ciciando:
— Tu podias deixar-me ir! Bem
sabes que quero a minha pobreza, quero vê-la com a mesma alegria do avarento
pelo seu ouro. Bem sei que a ordem é terminante, mas a minha graça e a tua
podem bem com um pequeno contrabando. Deixa-me ir no fundo do saco, o S. Pedro
de ti não desconfia — acrescentou inclinando-se ao ouvido do Barbaças,
convidando-o à cumplicidade.
A palavras loucas, orelhas
moucas, isso é o que se diz lá na minha terra, lá em Portugal — respondeu o
barba branca, impassível, enchendo, apressado, de brinquedos o saco infinito.
— Olha, não sejas impiedoso,
bem vês, que houve uma grande injustiça que felizmente não creio irremediável,
mas isto de não deixar vir os animais para aqui, é imperdoável.
E, com ar desolado, abrindo os
braços.
— Nem sequer as avezinhas!
Deixa-me ir ver a minha rica bicharada...
— Não há filosofia que me faça
sair dos meus deveres — volveu o Pai Natal, um pouco agastado. E suspendendo um
momento a sua fala para tomar o ar concentrado de quem espevita a memória:
— Já aqui há pouco tempo,
coisa de uns mil anos, gastaste uma cera enorme sem resultado aliás, com aquela
tua ideia de que no céu a bem-aventurança era um prêmio excessivo para tão
pequeno sacrifício feito lá em baixo; quase que me ias convencendo, mas desta
vez não há pão quente. Está dito, está dito — rematou o Pai Natal terminante.
S. Francisco lança mão de mais
um apelo, como quem queima o último cartucho. E como se não tivesse ouvido a
ordem terminante do Pai Natal, largou com insistência e energia:
— Os homens não me chegaram a
entender. Entenderam-me, sim, na sua bondade amada, a irmã Lua, a irmã Água e o
irmão Fogo, mas os homens nunca se me entregaram totalmente. E contudo o meu
misticismo era mais doce e forte que a mais sólida razão, e abarcava tudo até o
próprio infinito. Chegava até aqui onde nos encontramos porque é feito de almas
e consciências.
O Pai Natal pôs as barbas em
riste, o que era sinal da maior impaciência.
Porém S. Francisco, sem se dar
por achado, continuou:
— Pensas que quero ir fazer
milagres? Isso não me interessa, acredita meu amigo. O milagre não chega para
resolver o meu problema. O que eu quero, bondoso amigo, é espalhar a minha
mística e a minha alegria por todo o mundo. Oh! Era por isso que eu tanto
falava às aves como aos homens, às fragas como aos deuses. Tudo tem alma, a
alma imensa que dá a luz universal e liga os mundos.
O Barbaçanas suspendeu o
serviço e, com surpresa do santo, atirou-lhe à queima-roupa:
— Então tu estiveste outro dia
ao serão a contar os sofrimentos que te magoaram quando te deu, com o delírio
deambulatório, para meteres a eito e só, por umas serranias fora, onde ias
deixando a pele... E também encareceste as dores que te afligiram na tua doença
e ainda querias voltar para tal peste...
Hã?!
São Francisco ia a falar, mas
o Barbaçanas, rematou em voz mais alta:
— Já sei o que me vais dizer.
Vais dizer que a carne é um embaraço terrível, que nos diminui e perde, vais
dizer que agora desprezarias totalmente a carne... Mas para cá vens de
carrinho!
São Francisco tem o ar mais
doloroso que se pode imaginar. Nos seus olhos cintilam lágrimas amargas e numa
voz sombria e ardente, magoada de soluços, disse ainda:
— Peço-te que me acudas,
porque de contrário acaba para mim a bem-aventurança. Porque o que me aflige —
é esta consciência a clamar dentro de mim, sem se fatigar como um oceano, a
clamar imperiosa e irrespondível contra esta quietação, contra esta minha
dolorosa inutilidade, contra a minha trágica, condenada e desprezível inércia.
O Pai Natal comoveu-se por
momentos mas... Nada disse.
Em face desta teimosia, quem
teria o ousio de insistir? Calado, ali se ficou o S. Francisco, as mãos que as
feras não podiam mais lamber carinhosamente, metidas nas largas mangas do
hábito sombrio, com que o vestiu El Greco, assistindo triste aos preparativos
da viagem. Porém, a bondade infinita com que conseguia meter as mãos nos
colmilhos indefesos das feras perdurava no seu coração e, lançando recurso da
sua última possibilidade, com uma voz de rosas, foi dizendo, como se fora a
monologar.
— É para sofrer ainda que
quero ir! As chagas de Cristo que se abriram no meu corpo já me não doem e
quero vê-las sangrar de novo!
O Pai Natal suspendeu o seu
trabalho visivelmente comovido. Mas, de repente, como quem tem uma ideia
inesperada, bate na testa com força e exclama:
— E se queres ficar lá em
baixo? Hem? Quem é que te arranca outra vez para o céu? Nada! Isso são
responsabilidades de mais. Aqui não se pode mentir, como tu sabes, isso seria
um cúmulo nestes santos lugares, pensa nisto por amor de Deus!
E rematou inflexível:
— Não me comprometas!
Quando ia a meter no saco um
comboio, a que nada faltava, locomotiva a trabalhar, passageiros, gares,
sinaleiros, etc., ouve-se o Pai Natal resmungar.
— Lá vem outro! E então aquele
que é todo efes-e-erres. Era S. Jorge: armadura reluzente, lança primorosa.
— Deixa-me ir contigo! Tenho
saudades dos dias de batalha. Esta lança é que disse as minhas melhores
orações. Sabes lá a alegria de esquartejar dragões e, na noite silente,
cavalgar no próprio campo de batalha onde o inimigo jaz destroçado para sempre!
A Bem-aventurança — disse-lhe baixinho, curvando-se para o ouvido, receoso de
que alguém ouvisse não é nada ao lado do triunfo deslumbrante com que a
multidão me recebia quando regressava vitorioso no meu ginete de sangue
ardente, galopando... Para que quero eu este elmo brilhante, esta viseira
inútil e este peitoral recamado de glória e alegorias, onde resvalaram milhares
de lanças? — disse o santo, batendo com o guante nas abas do volante, que tocou
como um sino. Para quê a minha espada de aço de Livorno?
— O São Francisco tem mais
vagar que eu para te responder, vês ainda o que tenho para meter no saco? — e
apontou com o braço ilimitados quilômetros de brinquedos, que às braçadas ia
engolfando no saco sem fim.
São Jorge manteve-se absorto,
envolvido na luz dourada, onde a sua armadura brilhava como fogo. Parecia
pensar. Subitamente, como quem toma uma decisão, puxa o braço do Pai Natal e
diz-lhe à orelha:
— Já que me não deixas ir,
queria pedir-te um grande favor.
— Às tuas ordens! — exclamou o
Pai Natal desembaraçado.
— Podias trazer o meu retrato
que Ticiano fez de uma maneira assombrosa. Não há cores mais ricas, nem sonho
mais profundo. Avalias a alegria que me daria ao ver o meu cavalo de guerra,
nobre como se lhe girasse nas veias sangue azul. Este teu criado cavalgando,
nimbado de luz, jovem e amado! Que bem ficava aqui tamanha obra de arte!
Ficaria a ser o teu escravo para sempre!
O Pai Natal passou a mão pela
barba branca e, em seguida, cruzando os braços como quem tira satisfações:
— Ora o menino! Pensas que
nasci ontem? Querias meter-me em boa! Querias que eu roubasse? Essa nem parece
tua, a pequenada à espera dos brinquedos e eu pela tua causa às voltas com a
polícia!
E rematou, com desdém:
— Juízo, meu amigo, juízo! — e
batia com o indicador na cara, liquidando enérgico:
— A lei é a lei! Já sabes que
não vais!
O Pai Natal vendo muitos
santos da Corte Celestial assistindo impassíveis ao seu trabalho, irritou-se e
exclamou, censurando com ironia:
— Mãos à obra, amigos!
Ajudem-me! Se eu mandasse, vocês tinham de saber quanto custa o suor que se
perde a ganhar o pão de cada dia!
Os santos começaram logo
afanosamente a encher o saco milagroso, e a montanha de brinquedos diminuía a
olhos vistos. O S. Roque com aquela solenidade que toda a gente lhe conhecia,
aproximou se do Pai Natal e ciciou:
— Estás arranjado! Vem ali a
linda Maria Madalena!
— Deus me acuda! Isto com
mulheres é mil vezes pior; o ano passado tive que me zangar a valer.
Maria Madalena aproximava-se
naquele seu passo divino, tão leve, tão leve, que nem roçava nas tapeçarias, o
cabelo negro como a noite, solto em onda que se dispersava nos ombros e depois
em catadupa caía descendo das espáduas, vestiu do a cintura e rodando os
quadris. O vestido de luar tecido, revelava desde o galho da perna à beleza do
seio. De mãos cruzadas e de olhar imenso, belo da ternura humana com que chorou
as dores de Jesus, parou junto do homem do gibão, com os lábios finos
emudecidos num beijo eterno. O do gibão fez de conta que não era nada com ele e
continuou a engolfar a sua preciosa mercadoria, deitando o rabo do olho
suspicaz a espiar a visita.
Até que, numa voz onde à
doçura da vida eterna se misturava ainda o fluxo ardente da paixão terrena,
fluiu:
— Caridade sem amor; ofende.
Os mártires morrem hoje sem compaixão e sem glória. Os crucificados não têm
lágrimas ardentes, nem beijos sagrados para lhe caírem como joias sobre os pés
doloridos e chagados. Morrem no seio da multidão como num deserto. Não chega
nenhum soluçar ao seu ouvido a dizer-lhe amor, nem sequer os embalam como a
crianças, as palavras magoadas e exangues que a dor vai esmagando nos meus
lábios feridos. Não há linho mais fino que o das minhas tranças, o linho é
inerte e nas minhas tranças corre impetuosa a vida da minha alma, que faz
esquecer todos os sofrimentos. A cruz do Nazareno era tão alta e os meus
pecados levaram-me para tão fundo, que não havia milagre que me deixasse
aproximar das chagas das mãos e do rosto divino e sentir o travor do fel que os
fariseus lhe tinham deixado nos lábios. Mas foi melhor assim, pois foi a
derradeira das humildades para uma pecadora, enxugar de rojo aos pés da cruz o
sangue divino com as minhas tranças e beijar os seus santíssimos pés.
— Quero ir, ouviste! — disse a
santa inesperadamente e com energia.
O Pai Natal, delicadamente,
tirou da cabeça o barrete pontiagudo de lã vermelha, gentileza raríssima no
Barbaçana e, confuso, desculpou-se. Que não podia ser, que seria um desgosto
inconsolável ter naquela idade de ser repreendido, que pensasse bem e que lhe
perdoasse.
Na imensidade reboavam
moldando-se pelo infinito os acordes da 5ª Sinfonia de Beethoven, desdobrando o
clamar angustioso do homem no céu imenso, angustioso e trágico, mas ao mesmo
tempo heroico na sua afirmação de vida — viver! Oh! Viver mesmo no mistério. Dá
vontade de fechar os ouvidos para não sofrer com aquela interrogação
mortificada a que ninguém responde e que penso ser um protesto contra a
limitação que Deus impôs ao homem. Certas voltas de som parecem erguer o
calvário de Apoio... Onde a beleza fosse crucificada... E o som foi-se pouco a
pouco perdendo...
Santa Maria Madalena
retirou-se suavemente como tinha chegado, mas com os olhos cheios de lágrimas.
O Pai Natal encolhia os ombros
com pena, mas ia resmungando:
— Uma tragédia! Sempre estes
incômodos!
E, depois, aborrecido, olhando
em redor com receio de ser ouvido, exclamou:
— Mas que grandíssimo canudo!
Depois, ao longe, um vulto
solene, mitrado, as longas vestes do seu hábito caindo majestosas, as longas
barbas alvíssimas, o olhar de uma profundidade sem limites, como se abandonasse
por momentos o quadro de Vieira Portuense, vem caminhando nimbado de luz, em
direção ao burburinho que cerca o Pai Natal.
Este, que o declina ainda
longe, exclama sentencioso:
— Respeito meus amigos, muito
respeito! Reparem só quem ali vem — Aurelianus Augustinus — disse com ar
superior dos seus conhecimentos de latim.
Todos olharam e emudeceram.
Santo Agostinho aproveitou
este silêncio e disse ao Pai Natal, que tirara o barrete pontiagudo com
humildade e interrompera o serviço:
— Ando muito triste — disse o
maior doutor da cristandade —, ando muito triste porque o mundo se desligou das
virtudes platônicas que criam a vida moral que são a própria vida. Os Estados
transformaram-se em máquinas ferozes e atuam como monstros esmagando tudo,
triturando tudo implacavelmente, no desprezo total das ideias vivas e eternas
que dão alma ao mundo. Com o desprezo da razão, perde-se a lei e a moral, que
servem de única estrutura à República das gentes. — E depois, num desabafo:
— A consciência e o Estado só
podem viver felizes sob a mesma lei moral. Compreendes agora como o vasto mundo
é triste!
As mãos do santo estremeciam e
o seu olhar profundo tomou uma amargura tão impressionante, que o Barbaças se
comoveu, embora não entendesse o que o santo lhe queria dizer.
Com respeito, continuou a
ouvir:
— Convidei Platão e Descartes
para virem comigo, para nos levares, mas estão descrentes da cruzada que
procuro empreender... Disseram-me que não valia a pena, o que me magoou. Bem
lhes disse que o idealismo e o espiritualismo rolam na tempestade brutal que é
a vida de cada um e de milhões, que as almas endurecem e se perdem
inexoravelmente, num mar de agrores ilimitado. Platão ainda me disse: Os homens
acabarão por me entender e amar — resposta dolorosa como vês. O resgate das
almas mal começa. É preciso resgatar as almas para que o Estado as não devore.
Entretanto devora-lhes a vida.
Nesta altura é que o Pai Natal
atingiu onde queriam chegar as filosofias e sem perder o respeito, continuando
de cabeça descoberta, audacioso, mas sem ocultar de todo a sua rebentina, foi
dizendo:
— Divino santo perdoai-me! Mas
a viagem é arriscada e a vossa idade merece todos os cuidados. Como vós sabeis,
santo e sábio, logo se daria conta da vossa ausência e que havia de ser de mim,
meu augusto santo?
O Pai Natal convencido de que
estava a ganhar a partida, pediu licença para dizer:
— Se me permitis, meu senhor,
um conselho de ignorante, rogava de joelhos, que espereis um momento, coisa de
mil anos e se então — o que não creio — ainda não tiver aparecido a tal lei ou
razão, ireis comigo, dar-me-eis essa honra.
O santo pareceu aquiescer e o
Barba Branca recomeçou de gibão arremangado a encher a sacaria. Quando S.
Agostinho já ia longe disse para S. Tomás que estava ao lado e ouvira parte da
conversa:
— Deus me perdoe, mas não há
nada mais simples do que intrujar um sábio. E era com estas que ele queria ir?
Estava bem arranjado, bem se vê que não sabe onde se ia meter... Aquilo só por
a chaminé como eu!
Continuou a encher os sacos e
resmungou:
— Estou mas é para aqui a encher-me
de pecados por causa destes senhores... Arranjo-a fresca!
Já tinha tudo pronto e passava
a última inspeção com o olhar, quando S.
Francisco de Assis chegou
correndo, com um grande saco.
— Que temos — disse o Pai
Natal, intrigado — hã?
— Já que me dão deixas ir,
queria pedir-te para levares esta encomendinha. O Pai Natal relanceou os olhos
pelo saco e cofiando a barba:
— Encomendinha lhe chamas tu a
essa bizarma!
— Toma-lhe o peso — disse o
santo confundido com o receio de não lhe fazerem a vontade.
O Pai Natal deu o chão ao saco
e verificou que pesava tanto como uma pluma.
— É extraordinário, S.
Francisco, estou admirado para a minha vida, não pesa nada! Olha, S. Francisco,
já agora desculpa, mas diz-me o que leva o saco, gostava de saber.
S. Francisco, compungido,
explicou:
— É muito grande, pois é para
deitares à terra inteira essas sementes que levas. Não tens nada que te
enganar, porque eu escrevi aqui o que o saco guarda.
E apontou com o dedo longo e
marfinado para os grandes caracteres da palavra «Bondade».
— Boa ideia, oxalá germine —
disse o Barbaçana.
Como não havia tempo a perder,
pegou na mão do Menino Jesus e meteu-se a caminho com grande inveja da Corte
Celestial, que viera em peso ao bota-fora. Acenavam com os lenços enquanto se
avistou o Pai Natal, com o Menino a reboque, até dobrar o ramo da parábola no
espaço sem fim. Logo as estrelas se afastaram com donaire e a Via Láctea, como
passadeira sideral, começou a desdobrar-se diante dos passos do Pai Natal,
ajoujado de brinquedos e sorridente de ilimitada felicidade. O Menino Jesus
tinha de correr a bom correr pela galáxia fora, para acompanhar o Pai Natal
que, finalmente, deixara de responder à infinidade de perguntas que o Menino
lhe ia formulando sem descanso.
O espetáculo era assombroso.
Embora o visse todos os anos, o Pai Natal estacava sempre dominado por este
prodígio sem nome. A Terra rolava com uma velocidade incalculável e as grandes
cidades com miríades de luzes voltejavam num enxame loiro de endoidecer. A água
dos oceanos refletia o céu estrelado, lucilando milhões e milhões de sóis em
superfícies imensas que, já de si, eram brilhantes. Os rios arqueavam de prata
fundida os continentes como belas cinturas. Um Sol maior, o nosso, de todos os
dias, envolvia meia Terra lanceolando-lhe um meridiano fantástico de golpes de
luz que se perdiam no infinito.
O Menino Jesus espetou o
dedinho e perguntou que bola era aquela.
O Barbaças, visivelmente
arreliado com a dificuldade da resposta, disse-lhe:
— Que há de ser? Um girassol
cá do jardim, tu não vês?
Tudo isto se passava num
silêncio verdadeiramente infinito, irreal. Mundos que se moviam nas trajetórias
mais fantásticas, sem contudo perderem o sincronismo no espaço inacreditável e
com velocidades astronômicas. Só as sapatorras do Pai Natal faziam, no pasmoso
silêncio astral, um barulho dos diabos, que ele não podia remediar.
— Esta chiadeira dos
borzeguins é que me pode comprometer!
O Menino Jesus não deu conta
da observação. Pestanejava quando mais cerca, no silêncio eterno, algum cometa
passava inundando tudo de uma luz ardente e tão veloz que a vista não o podia
acompanhar. A lua branca e serena era a única nota de ternura calma naquela
fantasmagoria sem nome. O silêncio transformava-se numa angústia, como se fora
a alma inacessível da misteriosa imensidade.
Quando chegaram, caíam as doze
badaladas na torre dos Clérigos. Quem se afirmasse bem, veria pelos telhados da
cidade passar o gibão vermelho do Pai Natal, apressado, levando a reboque o
Menino Jesus. De longe o gibão era uma nuvem rosada, que a brisa fosse rolando,
como vela de barco, no mar ondulado dos telhados.
A alegria do Pai Natal! Ele
sabia que os seus presentes realizavam o sonho — o sonho que só a divindade
podia milagrosamente tocar — de tantos corações! Para os pequeninos, ao menos,
naquele dia dava-lhes a certeza de que não havia sonhos vãos e que a existência
é plena quando a um sonho se segue outro sonho, e das cinzas de um se erguem as
asas para outro e sempre assim.
— É tão barato, afinal —
verificava o santo com os seus botões.
O saco tinha de tudo: globos
brilhantes, bonecos de mil formas, o mais vasto e fantástico jardim zoológico
feito de peluches, tecidos e cartolina; comboios e aeroplanos, gramofones e
relógios, lanternas mágicas e guizos prateados; pontes e viadutos, móveis de
meio palmo e flores de papel; chocolates e caixas de música; polichinelos
sempre gentis de cara de alvaiade e pierrôs de alma apaixonada e face dolorida;
joias de belo ouro, pulseiras e ocarinas; livros com as mais belas histórias do
mundo e bailarinas leves como borboletas. E tão barato afinal!
O Menino Jesus ajudava como
podia, acumulando os sapatos mais pequeninos que eram os da forma do seu pé.
Quando chegaram ao Barredo,
desceram por uma chaminé a prumo e com dificuldade. O Pai Natal pôs-se a coçar
a barba, intrigado, pois não via sapatos, nem presépio, nem árvore do Natal. O
fogão, apagado, de tijolos desconjuntados, era como uma chaga. Há muito não
queimara lenha. Em pregos, pendurada, roupa pobre e rota e as paredes
escorrendo negra umidade.
O Pai Natal ficou angustiado,
de mãos cheias de brinquedos rutilantes e as longas barbas trémulas de comoção,
com tanta miséria. Relanceou os olhos pela pobre quadra, para os abrir
desmesuradamente ao dar com um berço feito de duas tábuas em meia lua, onde a
roupa desenhava o pequenino volume de um corpo de criança.
O Menino Jesus ia a correr
para o berço, mas o Pai Natal, pondo o indicador sobre o nariz, disse-lhe
baixinho:
— Chiu! Não o acordes!
E foi ele, aliviado dos
brinquedos, pé ante pé, até junto do berço. Desviou carinhosamente, com mil
cuidados, o cobertor velhíssimo que cobria a criança. E apareceu-lhe, linda
como os anjos, a figurinha doce de um menino de anéis loiros, profusos em toda
a cabeça, invadindo as fontes até se espalharem um pouco pelo rosto, as
pálpebras descidas sobre olheiras fundas e a boquinha exangue e impassível.
Passa a sua larga mão a afastar o cabelo dourado do pequeno, para se afirmar
melhor, e esta encontra a algidez do mármore nas breves feições.
A luz amanhecente desenha já
os quadros da vidraça, são mais que horas de regresso. Mas o Pai Natal não
cessa de soluçar, a alma alanceada por tanta desgraça, caído de rodo sobre o
chão.
Ouve-se uma vozinha suave mas
decidida.
— Fico eu e leva esse menino
para o céu!
E dizendo isto o Menino Jesus
bateu as mãozinhas de alegria e deitou-se no berço.
— Leva-o para o céu, eu fico
na Terra de onde nunca devia ter saído.
Quando o Pai Natal chegou ao
céu, ao abrir o saco, saiu um lindo querubim, batendo as asas brancas,
hesitantes como as das aves quando ensaiam voo ao abandonar o ninho.
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