11/22/2018

O lobo (Conto Natalino), de Jean Aicard



O lobo


I
Morena, esbelta, olhos vivos e gestos de uma jovialidade ainda infantil a pequenina pastora fica por vezes pensativa, longos momentos sentada na relva, ao lado do rebanho tranquilo. Ovelhas, carneiros, cabras encontrando por ali pasto abundante, quase não se espalham; demais o cão já idoso e atento é bastante para mantê-los nos limites do estrito campo gramado.

Marieta pode sentar-se e pensar à vontade. Em que pensará assim essa menina que ainda não completou onze anos? Por que sorrirá assim refletindo e fitando no horizonte coisas que só ela vê com os olhos da imaginação?

Quase tudo quanto sua vista alcança pertence a seu pai, que, trabalhador e dedicado vai dia a dia ampliando seus bens. É dele esse rebanho, pouco numeroso, é certo, mas de animais escolhidos, na raça e apurados no trato; é dele o bosque de castanheiros, que limita o campo à esquerda, com sua folhagem espessa e luzente, que promete belos frutos sadios para o inverno; dele também o prado mais distante onde uma vaca se mantém imóvel como uma pintura; também lhe pertence a casa, aquela casa, que anos atrás era uma choupana mas hoje está reconstruída com pedras sólidas.

Assim as reflexões de Marieta nada têm de melancólicas, ao contrário, ela pensa no futuro, sem inquietações nem receios, com o coração enlevado juntando apenas um pouco de sonho à realidade feliz que a rodeia desde a infância. É camponesa de alma, sabendo bem o valor do tempo e de todas as coisas... Enquanto seus olhos vagueiam docemente pela paisagem seus dedos ligeiros vão desfiando um de linho, que envolve em um instrumento de fiar, por ela mesmo feito com um caniço bem fino.

II
Na hora em que o sol se entristece e decai até a linha do horizonte onde o céu parece um Iago de sangue, a pequenina pastora assobia o cão, ajuda-o a reunir o rebanho e desce com ele para a planície. Então, caminhando devagar em o dia já duvidoso e a noite ainda incerta, ela contempla de longe sua casinha, cuja fumaça parece fazer-lhe acenos, afetuosos chamando-a para que chegue mais depressa.

Marieta compreende os sinais da fumaça.

— Vem — diz-lhe a casa. — A sopa está pronta e o caldeirão cantarola docemente sobre o fogão; a louça já disposta sobre a toalha muito branca, cintila à luz da lâmpada, que mamãe acendeu agora mesmo. Em face do fogão os pães na caixa gradeada parecem grandes frutos de ouro.

Papai chegando do campo e levando o cavalo à estrebaria, pode desde longe ver o alegre aspecto da mesa; mamãe, que prepara tão zelosamente as refeições vai e vem pela sala, com passos breves e ligeiros, interrompendo de instante a instante, docemente inquieta, para verificar se o irmãozinho recém-nascido continua a dormir tranquilo em seu berço de palha.

Marieta entra e goza intensamente encontrando tudo como seus olhos sonharam ao ver; entra, atira ao cabide a capa vermelha e se dispõe de pronto a ajudar a mamãe que embala o pequenino. Este, porém, logo acorda, completando assim os aprestos da mesa.

III
Um dia a desgraça entra por aquela porta. — Uma moléstia rápida, implacável levou a esposa e, entre os soluços arquejantes, o homem gemia:

— Que vou eu fazer, viúvo, com dois filhos?...
Mas, no dia seguinte, Marieta tendo perdido apenas a alegria de seu olhar tomou conta da casa, com um ar autoritário e grave que a transformava toda, dando-lhe, desde este momento, o aspecto emotivo e sagrado de uma mulher. Era de ver como ela a tudo atendia preparando as refeições e cuidando com o pequenino, que alimentava e tratava com carinhos verdadeiramente maternais. Apenas não podia mais olhar pelo rebanho e foi preciso contratar um pastor.

Infelizmente essa existência durou apenas seis meses. Uma tarde, o velho que sempre tivera tanto orgulho de sua robustez vergou sob um feixe de feno. Uma dor aguda e ardente atravessara-lhe os rins....

Esteve apenas seis meses de cama e com a falta de seu trabalho a miséria caiu ali.

Foi preciso vender o rebanho, depois o bosque e por fim o campo também. Quando o pobre homem cerrou os olhos para sempre só lhe restava a casa.

E Marieta?

Vizinhos compassivos vieram oferecer-lhe abrigo e conselhos. Devia confiar o irmãozinho a um asilo e empregar-se em qualquer fazenda da vizinhança...

Pois claro! como poderia uma menina de 12 anos morar sozinha naquela casa isolada com uma criança ainda tão pequena.

Porém Marieta opunha a todas as advertências uma negativa pertinaz.

— Não. Eu quero viver aqui onde meus pais viveram e morreram. Não tenho medo e posso trabalhar para viver; sei fazer tricô, fiar, lavar, coser roupa... Se me derem trabalho eu poderia ganhar o meu sustento.

— Você não resiste!

— Como não. Sou forte.

— Ao menos arranja um cão.

— Mais uma boca para comer? Não. Prefiro ficar sozinha. Quem me há de fazer mal?

Não houve remédio senão deixá-la como queria e todos, impressionados por essa coragem ingênua porfiaram em auxiliá-la respeitando sua sede de independência que lhe parecia uma maravilha.

V
A casa era à beira da estrada e muita gente vinha até ali pela curiosidade de ver aquela criaturinha que vivia só servindo de mãe a um irmão.

Um dia um negociante de Paris, que ali viera em excursão, conhecendo sua história e desejoso não somente de auxiliar a órfã como de adquirir recordações daquele recanto da Provença propôs-lhe comprar a “huche". Na região dá-se esse nome a caixa dos pães; igualmente uma caixa gradeada como uma gaiola, feita de madeira sólida, com uma porta em rosário; cada casa a tem pregada à parede, bem alta como para dar mais importância ao alimento essencial.

O negociante admirou a forma antiga e pesada à da 'huche", suas proporções robustas e propôs-se comprá-la.

Marieta recusou. Por quê? — indagou o visitante — para um só pão não precisa uma caixa tamanha.

Mas a menina persistiu na recusa. Tinha a impressão de que sem a "huche" tradicional a casa perderia o aspecto familiar que lhe era tão caro.

De fato a "huche caracteriza o lar provençal. Aquela era enorme de carvalho luzente pela limpeza de muitos anos, e o pão, dentro dela perecia uma hóstia no tabernáculo.

VI
Durante o dia, sentada diante da mesa atarefando-se em torno do fogão ou mesmo curvada ao tanque, Marieta não perde de vista o pequenino Miguel, que deitado no chão sobre panos macios brinca e ri. Já diz duas ou três palavras o inocente e tem um amigo, Medor, o enorme cão do vizinho que se afeiçoou a ele e vem, de quando cm quando alegrá-lo com sua presença. Cães e crianças sempre viveram em boa camaradagem. Este adorou Miguel desde o momento em que o viu pela primeira vez e, comovida por esta simpatia, Marieta tudo fazia para agradar-lhe reservando-lhe os ossos mais apetitosos e todas as guloseimas de que podia dispor.

Um dia o vizinho, disse-lhe:

— Pequena. — Você não devia viver assim. Vamos entrar no inverno e nessas longas noites de frio, algum malvado pode vir até aqui.

— Ora qual! — respondeu Marieta erguendo os ombros com desdém. — Já tem aparecido por aqui mendigos e vagabundos de sua casa; mas quando eu lhes apareço com meu irmão eles riem. Se declaram estar com fome eu dou-lhes o que tenho. Mais de um tem partilhado o mingau do Miguel e comem com avidez, que mostra fome de verdade... Coitados! Há tanta miséria por esse mundo! Além disso, todos veem Medor por aí e pensam que é meu. E... — acrescentava ela inocentemente com um sorriso. — Aqui não há o que roubar.

— Pois sim!... Eu, em teu lugar... — murmurou o vizinho afastando-se e sacudindo a cabeça.

VII
O inverno veio cruel. As árvores curvaram-se ao peso da massa de neve; toda a planície cobria-se com o pálido lençol da estação inclemente e os campos abandonados ficaram em silêncio.

Marieta pouco saía mas não por medo; somente para que o mau tempo não a fizesse adoecer... Se ela adoecesse, quem havia de cuidar de Miguel. Ladrões nunca apareceram; decerto andavam pelas cidades onde há mais conforto e mais riqueza para atrai-los.

Mas veio um lobo.

Havia já muitos dias que acossados pela fome eles desciam dos Alpes e apareciam na orla do bosque sem medo e piedade, esquálidos, movidos somente pela fome e tão ferozes que até cavalos e bois atacavam.

O terror espalhou-se por toda a região e cada qual tratou de fechar-se em casa, saindo somente de arma em punho.

VIII
Na manhã de Natal, Marieta teve que sair para encher o cântaro na fonte, que felizmente era a uns vinte passos. Estava o cântaro cheio quando, erguendo a cabeça, viu, à pequena distância, um lobo, um lobo enorme que devia ser já muito velho.

Sentindo que fora também visto e compreendendo que não poderia mais atacar de surpresa, a fera deteve-se com uma pata imóvel no ar. Mas está pronto a dar o bote se a menina fizer menção de fugir. Deteve-se mas não pensa em fugir; espera e seus olhos tem uma fixidez vacilante e má.

Marieta não perdeu a cabeça. A ideia que domina em seu cérebro e esta: — A casa ficou aberta com o menino deitado no chão. Portanto é preciso que ela enfrente o lobo, que o vença ou pelo menos, que o afaste para poder entrar e fechar a porta.

Junto à fonte viu no chão um pau lascado, com uma das extremidades bem pontiagudas e forte. Sem desviar o olhar do lobo, devagar, com gestos bem vagarosos e prudentes ela abaixa-se, e apanha esse pedaço de madeira.

Assim armada, só lhe resta escolher o momento mais propício para alcançar a casa.

Mas os olhos do animal brilharam de súbito como se ele não mais pudesse conter a impaciência e, temendo o ataque terrível, Marieta recuou num salto alucinado, que a fez chegar à porta. Mas não teve tempo para entrar; já o lobo estava sobre ela e seus dentes prendiam-lhe a saia, que cedeu em tiras.

Porém no mesmo instante, o animal sentiu na goela a ponta acerada do cacete, que lhe pregava a língua à garganta. Estorceu-se raivoso mas Marieta mantinha-o corajosamente curvado para ela, como São Jorge sobre o dragão; até que sentindo a fera fraquear, recuou mais e bateu a porta na ânsia de encontrar o irmãozinho.

Imprudência terrível. Contava que o fecho, um pesado ferrolho de madeira caísse por si como de costume. Porém batera a porta com demasiada força, fazendo-o saltar. Quando se voltou com o irmão nos braços viu a porta entreaberta, e o lobo, que já mostrava na fresta deixada aberta o focinho em sangue.

Então Marieta volteou, atônita, angustiada, com a preocupação única de salvar a criança. Como? Onde escondê-lo ? Ali! na “huche”!

Subiu lépida ao tosco banco, que era o único na casa e, erguendo bem o menino nos braços, tentou introduzi-lo na caixa gradeada. Miguel compreendeu logo o que supunha um brinquedo e ele mesmo introduziu-se de gatinhas pela pequena porta.

Marieta voltou-se. Os lobos não sabem subir por uma parede. O pequenino estava em segurança, e livre desse susto ela não temia a luta com o invasor.

Quando o lobo deu o primeiro passo, ela apresentou-lhe um tição aceso, que apanhara no fogão. O animal hesita e Marieta adiantando-se ousadamente, agitando a brasa crepitante obriga-o a recuar.

Um baque forte, uma respiração ofegante, uma confusão de corpos negros que rolam pelo soalho. É Medor que chegou. Vinha visitar seus amigos, encontrou ali o inimigo tradicional e atirou-se a ele. Foi brusca a luta; o lobo já ferido não resistiu por muito tempo.

***

Quando os vizinhos acudiram afinal, o rosto de Miguel aparecera risonho entre os rosáceos ingênuos da “huche” e sua irmã ainda trêmula de emoção estendia-lhe os braços como para uma promessa deslumbrante de futuro, vendo no sagrado depósito do pão quotidiano a humanidade de amanhã resguardada e salva pelo amor da humanidade de hoje.


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Jean Aicard
Tradução anônima, in: Revista Eu Sei Tudo, dezembro de 1922.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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