O FAUSTO DE CAPIM GROSSO
Tinha
acabado de completar vinte e cinco anos de idade. Estava transbordando num
verdadeiro mar de felicidade e contentamento. Solteiro, jovem e bonito,
sentia-se indestrutível e transportado a todos os céus possíveis e impossíveis.
Encontrava-se, pois, naquele instante da vida em que se deseja que os ponteiros
do tempo cessem e que se congelem para sempre os belos dias de juventude.
Faustino
era o seu nome. Nascera em Capim Grosso, pequena cidade do interior da Bahia,
filho único de um próspero comerciante e proprietário de uma grande rede de
lojas no ramo de materiais de construção.
Ao
completar dezoito anos de idade, os pais o mandaram para Salvador, a fim de
concluir ali os seus estudos, e cinco anos depois, já bacharel em Direito, retornou
à sua cidade natal, onde passou a trabalhar nas empresas da própria família.
Ali
chegou cheio de planos, sonhos e ambições.
É
preciso salientar, porém, que não se incluía aí o plano matrimonial. Ao
contrário, ensoberbecia-se no fato de nunca ter se apaixonado e esnobava
daqueles que diziam sonhar com um grande amor, com família e com filhos.
—
Amor? Ah, não! não nasci para essas besteiras — dizia em tom de galhofa à roda
de amigos.
Não
obstante manifestasse imensa satisfação com o tipo de vida que levava, nutria
ele — secretamente dentro de si — de uma angústia vulcânica e avassaladora, a
única coisa que de fato o perturbava e que com frequência o fazia sentir-se amargurado
e infeliz: era o medo mórbido de envelhecer. Daria tudo, inclusive toda a fortuna
que viesse a herdar, a fim de manter-se jovem para sempre. Apesar da idade e
dos estudos, ainda não havia amadurecido o suficiente para lidar com as
naturais leis da natureza, e se alimentava às ocultas da mística de uma eterna
juventude.
Com
andar do tempo, a preocupação com a idade dominou-o completamente, e de tal
modo que passou a se envolver com o ocultismo, algo que ele mesmo denominou de
“a ciência da arte e do mistério”, embrenhando-se nos conhecimentos secretos da
maçonaria, da cabala, da teosofia, da astrologia, da alquimia e das religiões
politeístas, como aquelas outrora praticadas no antigo Egito e em outras
civilizações da antiguidade. Dedicou-se ainda de corpo e alma aos estudos
acerca dos mistérios da vida, aprofundando-se no conhecimento da Bíblia, dos
livros apócrifos e demais obras consideradas sagradas, especialmente do famoso
“Livro de São Cipriano”, acreditando que encontraria nele, se não uma candeia,
ao menos uma pontinha de luz para a perpetuação eterna de sua mocidade.
***
Era
o dia de procissão de São Cristóvão, o santo padroeiro de Capim Grosso. Durante
toda uma semana, a cidade enchia-se de visitantes, oriundos de localidades
próximas, muitos dos quais ali compareciam apenas para usufruírem dos atrativos
a que muito excediam à simples espiritualidade, tais quais as quermesses, os
bingos, os leilões, as gincanas, as bebidas e as comidas típicas, que os
extasiavam. Dentre esses visitantes, apareceu um por nome de Goethe,
homenzarrão alto, loiro, elegantemente vestido e com acentuado sotaque alemão.
Este logo chamou a atenção das pessoas, não propriamente pelos seus traços
físicos, mas por seu sedutor carisma e pela áurea de mistério que parecia lhe
envolver. Faustino foi um dos que mais se deixou impressionar pelos encantos
deste ilustre visitador.
Essa
afeição inexplicável pelo elegante homem levou-o a convidá-lo para um jantar em
sua rica mansão. O outro acedeu ao convite com tal naturalidade e satisfação, que
até parecia já contar ele.
No
dia aprazado, o misterioso alemão chegou sorrindo e falando muito discretamente.
Pouco a pouco, porém, estabeleceu-se intimidade entre os convivas, e todos riam
como velhos e conhecidos amigos.
Durante
toda a ceia, Goethe mostrou-se de uma cortesia exemplar, que a todos encantou.
Faustino perguntou-lhe muitas coisas: de onde vinha, o que fazia, quem eram
seus pais, se era casado, se tinha filhos, enfim, uma chuva de indagações. Ele,
por sua vez, contou várias histórias e discorreu ainda sobre ciência, religião,
filosofia e outros variados assuntos, os quais fizeram o coração do jovem
transbordar de curiosidade. Desejou então
conhecê-lo mais a fundo, e até aventou para si a ideia de estar diante de um
místico guru, o qual muito poderia ensinar-lhe acerca dos mistérios da vida e,
quem sabe, apontar-lhe um novo horizonte para seu angustiante dilema.
Terminada
a refeição, foram ambos até a biblioteca, que era um elegante recinto anexo à
casa, e que constava de dez grandes estantes. Em três delas estavam os livros
sobre Direito, da história da jurisprudência e suas inúmeras ramificações pelo
mundo; outras duas continham os livros da Literatura Universal, os clássicos da
Literatura Portuguesa e Brasileira, dentre os quais se incluíam as obras de
Augusto dos Anjos e de Fernando Pessoa; nas demais estantes constavam os livros
sobre religião, misticismo, filosofia e sociedades secretas. Goethe examinou-os
bem, retirando entre eles o enigmático “Livro da Capa Preta”, aquele escrito
por São Cipriano, o bispo de Cartago. O rapaz estremeceu ligeiramente, enquanto
o outro, sorrindo, fixava-lhe um olhar penetrante e resplandecente.
—
Queres de fato saber quem eu sou? — perguntou-lhe ele sorrindo, como se já antecipasse
a resposta.
Agitado
e tomado de pavor, Faustino deixa-se cair, sem voz, sobre um velho sofá de
couro. Em seguida, respira fundo e, após breves segundos, responde com a voz
trêmula e os gestos confusos:
—
Sim, sim, és Lucius!
—
Pois aqui estou — replicou-lhe este sorrindo com ar de triunfo e íntima
satisfação.
O
moço permaneceu imóvel por algum tempo. Queria falar, a voz, porém, sumiu-lhe
novamente da boca. Um frio desceu-lhe por toda a espinha, enquanto seus pelos
eriçaram-se-lhe por todo o corpo e o suor cálido caía-lhe em bagas pela testa.
O
misterioso homem acercou-lhe lentamente e balbuciou algumas palavras obscuras e
sedosas no seu ouvido. Estas pareceram revigorar-lhe os ânimos, fazendo com que
o rapaz se erguesse de súbito, como se estivesse preparando voo para as
alturas. Neste instante, as mãos deles apertaram-se com energia: entendiam-se e
riam-se como se fossem íntimos desde longo tempo.
Daí
em diante, por espaço de alguns anos, sucedeu-lhe uma enxurrada de
acontecimentos: o pai e a mãe faleceram num acidente de automóvel; de posse da
herança, foi ele passear pelo velho mundo asiático, retornando meses depois, feliz e tão jovem
quanto antes. Já em sua cidade, assumiu o controle das empresas da família,
expandiu os negócios com a incorporação de outras sociedades e passou a
encabeçar a lista dos homens mais ricos do Brasil.
Quanto
ao seu dilema com a velhice, desde o diálogo da biblioteca, dissiparam-se-lhe
todos os medos e preocupações. Seus cuidados agora se dirigiam exclusivamente a
questões do amor. Casamento era assunto que não se via em sua agenda, apesar da
imensa procissão de pretendentes. Evitava falar disso e se enfadava com os que
insistiam em lembrá-lo.
—
O quê? casar? Não, não nasci para ser enforcado — gracejava entediado aos que teimavam
em querer mandar-lhe ao altar.
Com
o passar do tempo, um fato começou a prender a atenção dos habitantes da pacata
cidade. Não obstante os anos longos e desvairados, Faustino parecia não
envelhecer. Alguns atribuíam esta proeza a fartura de dinheiro que possuía, a
qual lhe dava acesso aos mais sofisticados avanços da medicina no âmbito da
estética. Outros, contudo, levantaram a suspeita de que ele havia feito um pacto
com o diabo, e que por isso não envelhecia.
Ao
completar cinquenta anos de idade, já um pouco mais gordo, porém mantendo a
mesma aparência de trinta, relaxou-se ele em suas preocupações com as coisas do
amor. Foi nessa época que conheceu Margarete, uma linda e fresca viúva de
trinta anos, que lhe cativou o coração e olvidou de sua mente todo o seu
passado tenebroso.
Naquela
noite sentia-se no auge da felicidade. A casa estava tomada por convidados
importantes, gente de todos os lugares, pessoas da alta sociedade
capim-grossense e de toda a redondeza, grandes fazendeiros, comerciantes,
artistas e importantes políticos. Margarete, com seu belo vestido azul, era o
centro de todos os olhares. E ele extasiava-se ébrio de amor ao lado dela.
Terminada
a festa e dispersados os convidados, ele conduziu a amada até a casa dos seus pais,
retornando logo em seguida à sua suntuosa residência. Ali chegando dirigiu-se
até à sala da biblioteca, onde se sentou meditativo no velho e empoeirado sofá
de coro.
De repente,
como se lhe surdisse uma cobra, apareceu num vapor de fumaça, um homem alto,
loiro e com forte sotaque alemão. Era o mesmo e velho Goethe, que esboçava um
riso largo e zombeteiro. Trazia nas mãos um documento todo redigido em tinta
rubra, ao fim do qual se via escrito com o próprio sangue: Faustino Carneiro Rios.
— Vim
trazer-lhe a conta — disse-lhe o visitante soltando uma formidável gargalhada que
se fez ecoar pela casa inteira.
Faustino
ergueu-se sobressaltado do assento. Seus olhos pareciam saltar para fora, como
se estivesse na iminência da própria morte. Neste momento lembrou-se do antigo diálogo
que tivera na biblioteca, do livro da capa preta, do pacto que assinara...
Lembrou-se, enfim, de Margarete.
Goethe
soltou nova gargalhada e se esvaiu pelos ares, deixando para trás lágrimas e
fumaças.
Parabéns adorei o conto .
ResponderExcluirGrato, amigo(a)... Abraços...
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