O ACUSADO
Estava jantando, quando ouviu uma voz chamar lá fora. Saiu irritado e deu de
cara com um homem desconhecido, alto, um pouco magro, vestido de preto, cabelos
em desordem e um olhar severo e perscrutador.
—
Que me quer? — perguntou-lhe um tanto impaciente.
—
O senhor é o Acácio Justiniano da Silva?
—
Sim, que me quer?
—
Sou oficial de justiça do Ministério Público do Governo Federal e trago-lhe uma
intimação. Adianto-lhe, porém, que não tenho autorização para fornecer qualquer
tipo de informação sobre este processo.
Assine aqui e aqui.
O
homem estremeceu e olhou para o agente do Governo, espantado e desconfiado,
mirando bem o seu crachá ao peito e indagando-lhe se ao menos poderia
esclarecer sobre o teor do tal processo, pois desconhecia qualquer acusação
contra si; ademais, dizia com voz alterada, um representante do governo tem a
obrigação de fornecer os esclarecimentos necessários aos cidadãos pagadores de
impostos. O oficial, no entanto, repetiu apenas que não estava autorizado a prestar
qualquer esclarecimento acerca do assunto, e que tudo constava nos autos.
—
Nos autos!... nos autos!... — repetiu nervoso o emissário, enquanto anotava
alguma coisa numa agenda grande e de capa vermelha.
Nem
sentara e foi logo abrindo o envelope pardo, com timbres e carimbos que
indicavam tratar-se de fato de um despacho público.
“O Ministério Público do Governo
Federal, no desempenho de suas atribuições institucionais, com fundamento no
artigo 135, inciso IV, da Lei nº 3966/6, do Código de Condutas e Procedimentos,
INTIMA Vossa Senhoria a comparecer na Secretaria de Condutas e Procedimentos,
conforme endereço e data em epígrafe, a fim de participar, como réu, de uma
audiência relativa ao Processo nº 19566/6, em tramitação neste Ministério Público
Federal.”
Sentou-se com o envelope nas mãos, todo trêmulo
e desesperado. Com os olhos fixos no papel
tentava evocar o passado, buscando reproduzir na memória algum acontecimento ou
alguma conduta que porventura pudessem ter sido os geradores de tal processo. Sua
consciência, porém, não o acusava de nenhum ato indigno. Nenhum.
Acerca
dele, sabe-se que era um cidadão pacato e ordeiro, um rígido cumpridor das
leis, e que, não raro, ostentava um certo orgulho de nunca ter se envolvido em
negócios sujos, nem ter seu nome arrolado em falcatruas de quaisquer espécies.
Aquela intimação, pois, não apenas lhe afligia o espírito, como, mais que isso,
aviltava-lhe os seus brios de homem íntegro e respeitador da ordem pública.
Naquele
dia mais do que nunca, pareceu-lhe a vida insuportável e injusta. À noite não pôde
dormir mais de duas horas, aos pedaços, e antes das cinco já estava em pé.
Aprontou-se
mal, engoliu o café e saiu rapidamente para o centro da cidade, onde tencionava
encontrar um bom advogado que pudesse defender a sua causa. Entrou no primeiro
escritório que viu. O bacharel examinou detidamente os papéis, consultou a
última edição do Vade mecum, recorreu ainda a outras obras da
esfera do seu saber e confessou, surpreso, que desconhecia a tal Lei nº 3966/6,
embora certificasse com absoluta convicção que o documento apresentado fosse de
fato emitido por um órgão do Governo, não apresentando qualquer indício de
falsificação.
Não
satisfeito, dirigiu-se ainda a outros advogados, os quais, unânimes, também declararam
desconhecer a tal Lei nº 3966/6, aconselhando-o a buscar informações na própria
Secretaria de Condutas e Procedimentos, pois poderia tratar-se de um preceito
recente, que ainda não tinha sido publicado no Diário Oficial, nem divulgado na imprensa.
Na
Secretaria, contudo, foi alertado de que não havia informações disponíveis, e
que deveria aguardar a audiência do julgamento, quando só então ficaria a par
do conteúdo dos autos.
—
Então é assim? e os meus direitos, como ficam? — indagou enfurecido ao
escriturário público, que parecia importar-se tanto com o desespero dele, como
se importaria com a cor dos olhos dos juízes da Corte.
—
Aconselho-o a contratar com urgência um bom advogado, pois para atuar nesse
tipo de questão faz-se necessário alguém com vasta experiência jurídica —
respondeu o outro voltando-lhe as costas.
Furioso
deixou ele a Secretaria e meteu-se mais uma vez para o centro da cidade, num
novo e desdobrado esforço a fim de tentar localizar algum profissional que
fosse especializado na matéria.
Todavia,
não obstante peregrinar por todos os gabinetes, nenhum dos bacharéis
consultados mostrou-se interessado em defender sua causa, cada qual com suas
evasivas e todos demonstrando total ignorância a respeito da Lei nº 3966/6, bem
como de seus respectivos artigos e parágrafos.
Sem
mais ânimo e sentindo-se completamente desamparado, dirigiu-se para casa onde
rezou de joelhos e chorou copiosas lágrimas de desespero. Por alguns instantes
imaginou que tudo aquilo não passava de um grande equívoco, talvez um engano
relacionado a uma outra pessoa, que poderia ser um homônimo seu, inclusive no
sobrenome. Logo, porém, traçou mentalmente outras conjecturas... Talvez algum
vizinho com despeita de seu sucesso, o denunciasse falsamente à Justiça. Neste
caso, poderia mover uma ação contra ele por danos morais e por injúria. Porém
tudo isso ficava no âmbito da mera hipótese e não trazia qualquer alívio prático
para seu prolongado sofrimento, nem dirimia sua terrível ansiedade.
Restava-lhe, pois, apenas esperar, afinal quem não deve não teme, concluía
mentalmente invocando o jargão popular.
Chegou
uma hora antes da tão ansiada audiência. Seu aspecto era de quem não dormiu
nada à noite, revelando ainda traços de angústia e desespero. Sim, era um homem
honesto, não deveria está passando por aquele vexame, não havia nenhuma razão
para que fosse acusado de alguma coisa. Assim divagava ele fixando o olhar nos
ponteiros de um grande relógio de parede, cujas pancadas pareciam mais lentas que as do
seu coração.
Anunciaram
seu nome. Ele entrou cabisbaixo e silencioso. Sentou-se defronte ao púlpito sem
tirar os olhos de um homem vestido de túnica talar preta, que mexia numa pasta
como que procurando alguma coisa perdida, ao mesmo tempo em que fazia anotações
numa agenda grande e de capa vermelha.
Instado
se não tinha um defensor, respondeu que nenhum deles se interessou por sua
causa, mas que não tinha o que temer, afinal, dizia nervoso e gesticulando com
as mãos, era um homem honesto, não devia nada a ninguém, muito menos ao governo...
O
magistrado, após alguns instantes pensativo, abanou a cabeça, ergueu os ombros,
levantou os olhos para o réu e anunciou secamente:
—
Acácio Justiniano da Silva, o senhor foi acusado por este órgão do Governo
Federal de um gravíssimo crime de Conduta. Pela extrema gravidade de seu
delito, este Tribunal decidiu protelar o julgamento para uma data ainda não
definida, de modo que o senhor terá o tempo necessário para se amparar com um
bom defensor, que lhe será de muita valia quando for novamente intimado a comparecer
perante esta Corte.
Ele
ia falar, mas reprimiu-se. Estava mentalmente exausto e sentia-se sufocado. Era
como se estivesse num eterno pesadelo, descendo a um abismo infinito e
desconhecido. Tomado de uma confusão constrangedora, retirou-se.
Em
casa atirou-se exausto sobre a cama, refletindo em tudo que até ali lhe
acontecera. Que crime gravíssimo teria cometido?
Então
mais uma vez voltou sua mente ao passado, buscando descobrir algo, um ato por
menor que fosse, o qual pudesse servir para justificar tudo aquilo. Em vão,
porém, não se lembrou de nada. Seu passado fora tão tranquilo quanto fora toda
sua existência. Até o momento em que recebera aquela maldita intimação, que
transformou sua vida num verdadeiro inferno, imputando-lhe uma culpa para a
qual sequer conhecia as razões, até ali vivera uma tranquilidade que só poderia
ser excedida pela paz eterna da bem-aventurança. Sim, era um cidadão honesto, e
por isso não devia estar passando por todo esse purgatório.
Aos
poucos sua vida transformou-se num verdadeiro inferno; os poucos parentes que
tinham, abandonaram-no; os amigos distanciaram-se todos; os vizinhos passavam
ao largo e constrangiam-se só por vê-lo...
Em
profunda tristeza e sentindo-se sozinho no mundo, recolheu-se no quarto da
casa.
Dias
depois acharam-no morto sobre a cama. Bem ao lado de seu putrefato cadáver
encontrou-se uma agenda grande e de capa vermelha, na qual constavam todos os
delitos de que tinha sido acusado.
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