11/14/2018

Naquela noite... (Conto Natalino)


Naquela noite...

Todos os dias, meu avó e eu, ficávamos próximos do pórtico de São Cosme. Meu avô era alto e seco de carnes; acima do emaranhado das barbas, o nariz vermelho assemelhava-se a uma grande gota de sangue, prestes a resvalar do rosto para o peito; os seus olhos, sem luz, estavam sempre abertos. Quando entravam os fiéis na igreja, as meninas olhavam-no temerosas e apertavam-se de encontro às mães. Por vezes, ainda sonho com ele, e o vejo, tal qual como era, curvado já pela idade, envolto sobretudo num coçado, batendo no solo com a grossa bengala com que ia tateando o terreno nas sua frente. Sinto ainda a pressão da sua enorme mão calosa em meu ombro frágil. Quando me amarga alguma angústia, aquela pressão parece fazer-se amistosa e dizer-me: —É Estevão, lembra-te daqueles tempos idos! Não te parece que, por maus que fossem, eras feliz?

Vivíamos na balbúrdia de todos os centros de mendigos. Conhecia-os bem para que vos fale eu, ainda uma vez, das portas mal ajustadas pelas quais o vento gelado penetra, e do colchão estripado estendido sobre as tábuas do soalho e da estreita janela, onde jamais um vidro quebrado fora substituído. Os meus irmãos arrastavam-se como vermes pelo aposento, com as pernas arroxeadas pelo ar frio. Nas noites de chuva, uma goteira simulava no ambiente o apagado ruído de um relógio: "Tac-tac, tac, tac". Digo-vos, em verdade, que era uma vida miserável. O costume chega a atenuar os sofrimentos; mas, ainda assim, quando foi possível içar-me pela corrente de um vapor e esconder-me no porão; e quando senti a trepidação das máquinas que nos impeliam para a América, tive a maior alegria da minha vida.

Naqueles tempos eu já tinha o vício de sonhar. Nas nossas longas esperas junto ao pórtico, pensava em tantas coisas boas! Assim, quando a mão do avô me tirava da minha abstração, sentia um surdo rancor contra o ancião. Pensava... Oh!... Os meus sonhos de então, são como as cartas dos primeiros amores, que não esquecem jamais, que têm para a gente o secreto e sutil encanto da ingenuidade, inapreciável para as demais pessoas. Tenho esse triste tesouro de recordações guardado bem dentro de mim. Algumas vezes, nas noites das minhas meditações, levanta-se na minha memória e vai abrir a arca das remotas recordações com a cautela de um avarento, melhor ainda com o sigilo de uma mulher que tirasse do esconderijo as relíquias de um amor desgraçado.

Não contarei esses sonhos: havíeis de rir... Oh, aquela minha primeira inclinação! Vivia ela numa casa perto da nossa. Via-a frequentemente da minha mansarda, brincar no terraço ou assomar às suas janelas e olhar a rua durante largo tempo, com uma gravidade de mulher. Tinha a minha idade: uns dez anos. Agora, quando já há cãs em a nossa cabeça, esquecemos os nossos sentimentos da meninice e acreditamos, que aos dez anos não se pode querer. Adorava-a! Mais de uma vez baixei por brincadeira a escada para vê-la sair. Chegava diante do portal, guardava debaixo do gorro a mecha rebelde que quase me tapava os olhos e escondia-me um pouco, amparado no meu portal. E ela passava, espigadita, séria, com aquela sua estranha seriedade, ocultas as mãos na branca manguinha da blusa, aumentando o brilho dos olhos enormes na sombra feita pela aba do chapéu. A professora, alta, grave, e que encobria o rosto debaixo de um véu espesso, ia a seu lado. Via-as parar; batia-me o coração com mais pressa... Em seguida ficava longo tempo olhando sem ver, sonhando, sonhando... Quando na humilde escola, à qual eu ia uma vez por outra, nos faziam ler o conto em que o menino pobre e bom, salva a moça que lhe negou um pedaço de pão, eu sentia uma emoção recolhida e doce. Depois entre os farrapos do meu leito, glosava o relato com novas imaginações. Prontamente, pensava, que um resplendor vermelho entrava pela claraboia do nosso quarto: a casa fronteira em chamas, a casa da sua residência! E eu corro e salvo-a também, como o bom menino desprezado... 

É grotesco, não é verdade? Via-me afastando as pessoas, com a cabeça descoberta, a caminho da casa incendiada. O público gritava:

— Não o deixem passar! Tudo está queimando!

E eu passava por entre o fogo e o fumo, tal como eu lera nas primeiras páginas de uma novela achada na rua. Então um uníssono clamor partia da multidão. No meio do fogo eu reaparecia com o doce corpinho entre os braços.

Devo dizer que desmaiei depois?... Quando voltei a mim, ela me olhava com os seus grandes olhos escuros, cheios de amor. E vinha o pai, gordo, forte, com a enorme cadeia de ouro cruzada sobre o ventre, e me dizia como no conto lido na escola:

 — Tens uma alma de ouro, filho meu, e as riquezas do espírito valem mais do que as terrenas, porque são gratas a Deus.

Como no conto; do mesmo modo que no conto. Mas a mim — sacrilégio — importava-me mais a gratidão da pequena amada.

***

Naquele dia — era o de Natal devotas passavam apressadas. Caía uma chuva torrencial; os canos de descarga das igrejas vomitavam água em jorros. Haviam acorrido ao portal da igreja muitos mendigos. A caridade tem os seus ambientes adequados. Em dias como aquele, era mais fácil achar um coração junto à porta de uma igreja do que perto das brilhantes montras das lojas da cidade. Em presença da imagem de Cristo, os fiéis acreditam-se admirados por Ele e inclinam-se para o exercício das suas práticas.

Nesse dia lamuriávamos com as vozes pedinchonas, acossando os que entravam e saíam do templo. Éramos tantos!... Nós, os pobres que tínhamos sítio habitual no átrio, protestávamos contra aquela intromissão. Meu avô grunhia:

— Ladrões! Veem tirar-nos o pão...

Era muito tarde já. Das profundidades da igreja saíam algumas senhoras. Chegava o seu ruído até à porta e caminhavam silenciosas, movendo os lábios como se acabassem a reza. Passavam sem olhar-nos. Meu avô, sombrio, silenciara. Aproximava-se a noite. Ouviam-se vozes infantis que cantavam no coro do templo. Bem que eu desejava abandonar o posto. Antes de partirmos
— dizia comigo mesmo — irei ver os três Magos e a vaca que tem os chifres de ouro...

Entre as sombras do pórtico surgiram duas pessoas. Avançaram. Fiquei imóvel como os santos nos nichos. "Ela" aproximava-se de nós, ao lado da professora, grave e séria. Ao sentir as pisadas, o clamor dos mendigos levantou-se de novo. Detiveram-se ambas. A minha pequena amada deu vários passos até nós; procurou a sua bolsinha... Luzia a brancura do seu punho na obscuridade crescente... Acercou-se mais. Ofereceu-me uma moeda de prata com as suas mãos. Retrocedi um pouco, enrubescido, ocultas as mãos nas costas, com uma dor sutil no coração, com um desmaio de todos os meus amores ingênuos. Olhou-me. Balbuciei então:

— Obrigado.... não pedimos esmola... nós não...

***

E naquela noite de Natal não houve pão em nossa casa!



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Revista “Vida Doméstica”,
Dezembro de 1929.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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