11/21/2018

Milagres do Natal (Conto natalino), por Selma Lagerlof



Milagres do Natal


Era no dia de Natal: todo o mundo partira para a igreja, menos minha avó e eu. Creio que estávamos sós em casa; não pudéramos acompanhar os outros porque eu era muito criança, e ela muito velha, e ambas estávamos muito tristes por não nos terem levado às matinas, por não nos ser possível ver os círios do Natal.

E continuando nós na mesma solidão, sentadas bem juntinho uma da outra, a avozinha começou:

...Era uma vez um homem que caminhava pela noite sombria, à procura de lenha. Ia de porta em porta, e em todas batia: “Amigos, dizia ele, ajudai-me! A minha mulher acaba de dar à luz uma criança, e preciso fogo para aquecê-las, a ela e à criança."

Mas a noite era profunda; todo o mundo dormia; ninguém lhe respondeu. O homem prosseguiu o seu caminho. De repente, percebeu uma luz que brilhava ao longe. Dirigiu-se para lá e viu que era uma fogueira acesa em pleno campo. Brancas ovelhas dormiam em torno dela, e um velho pastor acocorado guardava o rebanho.

Quando o homem que procurava lenha se aproximou das ovelhas, viu três enormes cães adormecidos aos pés do pastor. Os três despertaram ao mesmo tempo, e abriram as largas faces como para ladrar; mas nenhum som saiu delas. O homem notou que o pelo se lhes eriçava, brilhando as presas, muito brancas, à luz da fogueira. E todos três se lançaram ao homem. Um agarrou-o pela perna, o outro pela mão, e o terceiro pela garganta; mas as mandíbulas e os dentes recusaram-se a servir, e o homem não sofreu o menor dano.

Tentou, então, aproximar-se do fogo, e tomar o que lhe era necessário. Mas as ovelhas eram tão numerosas, e estavam tão apertadas umas contra as outras, que ele não conseguia abrir caminho. E foi obrigado a avançar por cima daqueles animais. E nenhum deles acordou, nem se mexeu.

Até esse ponto, eu ouvira a minha avó sem interrompê-la; mas não pude mais:

— E por que isso, avozinha? — perguntei.

— Sabê-lo-ás em breve, disse-me ela, prosseguindo.

Quando o homem alcançou a fogueira, o pastor ergueu a cabeça. Era um velho sombrio, mau, insensível para todo o mundo. Logo que viu o estranho, tomou do seu longo cajado e atirou-o contra ele. O cajado voou em linha reta sobre o homem, mas, no momento em que ia atingi-lo, desviou-se e foi aprofundar-se na terra.

Interrompi de novo a minha avozinha.

— Avozinha, por que o bastão não quis bater no homem?

Mas a querida avozinha nem sequer cuidou de responder-me, e prosseguiu:


Então o homem se aproximou do pastor e lhe disse:

— Meu amigo, ajude- me e deixe-me levar algumas lenhas. Minha mulher acaba de dar à luz um menino, e é preciso que eu a aqueça, assim como ao pequeno.

O pastor sentiu vontade de recusar, mas lembrou-se dos cães, que não tinham ladrado; das ovelhas, que não tinham fugido; do cajado, que não ousara bater, e teve um vago receio.

— Toma o que necessitares, disse ao estranho.

A fogueira ia morrendo aos poucos. Já não havia nenhuma lenha, nenhum ramo aceso. Aquilo não era mais do que um montículo de brasas, e o homem não trazia pá nem nada com que levar os carvões ardentes.

E, vendo isto, o pastor prosseguiu:

— Podes levar quanto quiseres.

E alegrava-se, pensando que o homem nada poderia levar. Mas o homem inclinou-se, separou as cinzas e levantou com as mãos nuas algumas brasas rubras, que colocou numa das pontas do seu manto. E as brasas não lhe queimaram nem as mãos, nem a roupa, e o homem levou-as, como se fossem maçãs ou nozes.

Pela terceira vez foi a contadora interrompida:

— Avozinha, por que os carvões não queriam queimar o homem?

— Vais ver, disse-me ela. E continuou:

Quando o pastor, que era um homem sombrio e insensível, viu estas coisas, entrou a meditar: Mas que noite é esta, em que os cães não mordem, as ovelhas não se assustam, o cajado se recusa a bater, o fogo não queima? Chamou o estranho e perguntou-lhe:

— Que extraordinária noite é esta, em que as próprias coisas mostram-se cheias de piedade!

O homem respondeu:

— Não posso dizer-te, se o não vês.

E pôs-se a caminho, apressado, para ir aquecer a mulher e o filho. O pastor seguiu-o, e viu que o homem não tinha nem sequer uma cabana: a mulher e o filho estavam deitados no fundo de uma gruta, cujos muros de pedra eram frios e rústicos. Teve compaixão do pequeno, e estendeu ao homem a sua pele de carneiro, para que com ela cobrisse o inocente. No mesmo instante em que dava esta prova de bondade e de caridade, abriram-se-lhe os olhos; e viu o que dantes não pudera ver, e ouviu o que não pudera ouvir. Viu a cercá-lo por todos os lados, bandos de anjos de asas prateadas. Cada um deles tinha à mão um instrumento de corda, e todos, com uma voz alta e clara, cantavam que aquela noite nascera o Redentor, vindo para salvar os homens dos seus pecados. E então o pastor compreendeu por que nem as coisas queriam fazer mal naquela noite.

Chegando ao fim da sua história, a avozinha suspirou e disse:

— Mas o que o pastor via, também nós podemos ver. Os anjos voam sob o céu todas as noites de Natal, e, vê-los, só depende de nós. Não é preciso Sol nem Lua, mas somente olhos que saibam abrir-se ao esplendor do amor!



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Autoria: Selma Lagerlof
O Malho, dezembro de 1923.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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