Um dos conventos pitorescos d’Évora,
é sem dúvida alguma o Paraíso. O aspecto externo simula o duma destas casas de Tânger,
misteriosas, de altas paredes encostadas umas às outras, sustadas a cunhais,
caiadas, esfoladas, sem o menor sinal de vida de relação, nem portas, nem
fachadas, nem mirantes, e só com umas gaiolas de ferro ressaindo em muscarabieh junto do teto, a cobrir,
como máscaras de esgrima, minúsculas Incarnas que provavelmente dão luz para
dentro daquele cárcere inquietante.
Vai o mosteiro entre as ruas
de Mendo Estevens e de Machede, que o delimitam, convergindo, até lá diante se
fundirem numa só, cujo título não sei; de sorte que observando a edificação do
alto desta, tem-se a sensação dum poliedro tortuoso de três faces, truncado no
vértice, e coberto de decrépitos telhados, que alteiam e amosendam de traves
podres, a cada passo. Sob um céu de verão alentejano, azul candente, radiando oftalmias
em cada corda solar zimbrada de alto, este sinistro casarão vedado ao burburinho
da rua por muralhas, descendo a rua aos tropo-galhopos, em socalcos internos,
expansões, retraimentos, avoca efetivamente estampas de cidades marroquinas, se
não fora a ausência de certos detalhes clássicos daquelas... uma palmeira no
fundo e um minarete, camelos por debaixo de um arco, e o inevitável árabe no
primeiro plano, rebuçado fleumaticamente um albornoz.
Com o camelo e o árabe, seria
uma paisagem tangerina. Substituindo porém o dromedário por um cônego, e o
árabe por um aguadeiro vestido de saragoça, gritando quem merca a água! adiante dum burro com cântaros de cobre, numas
cangalhas d'azinho, inesperadamente a feição muda, e não há Alentejo mais típico,
nem gravura eborense mais avant la lettre.
Entanto o Paraíso d’Évora é principalmente notável por três coisas: pelo seu
aspecto exterior, pelo seu refeitório, e pelos doces.
O refeitório é um espécimen de
salão Renascença, único em Évora, único por ventura no país, e suntuoso em toda
a parte. É vasto, oblongo, o teto de carvalho esculpido, com pilastras de
mármore branco, sustentando-o. Estas pilastras são um modelo de graça arquitetural,
aladas, leves, com uma base relevada de medalhões e figurinhas, e meias canas
abertas no corpo, para irem morrer alfim num elegantíssimo capitel.
Os doces do Paraíso são no Alentejo
tão célebres, como entre Douro e Beiras, os de Celas; tão célebres como as
rezas das suas freiras e milagres dos seus santos; tão celebres como a tradição
dos seus bordados. Há-os de todas as frutas, massas, combinações, formas e
espécies. Grandes, enchendo prato, feitos duma
espécie de pão de ló de amêndoa e ovos, ligeiro como esponja, olorante ao olfato,
e vaporoso e fresco ao paladar — cobertos de pasta de açúcar, com granulações
vermelhas e rosadas, e chama-se bolo real, centro de mesa de todas as bodas
ricas e pobres da província. Há-os pequenos,
de amêndoa e açúcar, com um filão de compota, ou uma surpresa de licor
escondida no bojo, e que imitam queijos (queijinhos
do céu), presuntos, conchas, frutas, emblemas, ferramentas e edifícios.
Com estas três drogas simples
do açúcar, farinha, e ovo, picadas dum ou outro extra de especiaria, ninguém sinfoniza
o paladar mais finamente, ou sabe tirar desta efêmera sensação maior prodígio
de delícias imortais.
Por que singular segredo a
clausura, que proibia à mulher o convívio de todas as lubricidades, só esta do
doce lhe deixou aberta, como válvula de segurança contra mais tinhosas práticas,
e contaminadoras distrações?
Porque não é necessário ser adivinho
arguto, para em certos doces diagnosticar receitas do demônio. No ano de 1470,
relata o obituário da Misericórdia d'Évora nada menos do que quatro cônegos
mortos de indigestão por trouxas de ovos. No mosteiro de Santa Mônica havia,
pelos fins do século XVI, uma freira possessa, cujos bolos podres lançavam chamas
de noite, vendo-se-lhe demoniozinhos a bailar por cima do tostado. As fatias de parida de São Bento, deram à abadessa
D. Joana Peres Ferreirim, quatro anos antes da sua afrontosa morte, às mãos do
povo, visões reveladoras quanto ao sinistro fim que havia de ter. E como diz um
livro de milagres “a todos sirva isto de lição e ensinamento.”
A indústria da doçaria é nos
claustros de freiras portuguesas, remotíssima, mas depurou-se e refilou de guloseima
com as primeiras especiarias e receitas do oriente, até atingir nos reinados de
D. João V e D. José, sutilezas e apuros que lhe valeram foros universais. Em
Janeiro de 1729, passando D. João V em Évora, na ida e na volta da sua jornada
ao Caia, para receber a infanta D. Maria Ana Vitória de Bourbon, filha dos reis
de Espanha, como esposada do seu primogênito D. José, e entregar a infanta D.
Maria Bárbara de Portugal, para consorte do príncipe das Astúrias, D. Fernando,
mandou o senado eborense de presente aos monarcas, um rebanho de 24 vitelas com
fitas nos cornos, 24 cargas de perus, galinhas, capões, pombos, leitões,
perdizes e outras caças ; e assim um rancho de 24 meninas, levando caixas de excelentes
doces “fabricados de tal forma, que pareciam as mesmas frutas de que se
fizeram.” Estes doces foram fabricados
todos nos conventos, e há razões para supor que viesse do Paraíso a maior
parte, atento o arremedarem frutas, e se conservar florente ainda naquele claustro
a tradição da doçaria artística, reproduzindo toda a casta de pomos e fruteados.
Quem ainda não viu as caixas
de doce do Paraíso, que ainda agora vão de volante às feiras e povoações do Alentejo,
renegue a pretensiosa confeitaria francesa, insípida, mesquinha, sem variantes,
e absorva-se devotamente nas gulodices geniais daquela santa casa!
Não é só a excelência das
caldas, pastas, e cristalizações sacarinas dos doces mosteirais de Portugal,
que cumpre lisonjear, mas a gracilidade mimosa de cada bom bocado e cada peça,
a arte de exposição que leva os olhos, a quantidade de talento inventivo, de fantasia,
de observação humorística e de ternura, que todas aquelas pequenas coisas
ressumbram, restituindo ao mundo em escrituras de ameixas, uvas, maçãs,
bananas, pomos, feitas de amêndoa e açúcar, ovo e baunilha, farinha e cheirosos
sumos, a porção d'alma amorosa, de feminilidade compadecida, que as boas
freiras não puderam gestar cá fora, no santo mister de mães e esposas.
Cá fora na rua, apontando uma
casinha térrea onde trabalhava um sapateiro, o meu cicerone objetou-me: repare
neste velhote!
Uma figureta japônica,
gorducha, já um pouco alquebrada pelos anos, mas com seu olho azul muito
expressivo, e uma boca humorística, onde alguns dentes riam satisfeitos.
Vendo-se notado, convidou-nos a entrar cordialmente, acrescentando:
— Já agora, até morrer, hei de
ser sempre uma das curiosidades do convento. Queiram-se cobrir e estar a seu
gosto. O que me pesa, é recebê-los em casa tão pobre e desguarnecida. Ali, naquele
cadeirão, esteve o Sr. Herculano sentado duas vezes, e o Sr. José Estevam além,
com o Sr. Joaquim Filipe, em janeiro de 1838.
Fez uma pausa, e sorrindo:
— Pois é verdade, sou eu
mesmo, Joaquim Constâncio, o menino Jesus do Paraíso. O caso foi soado, e até
D. Pedro V e D. Luís quiseram ver um menino Jesus que se aposentou em
sapateiro. Mas nem um nem outro parece que me acharam mores diferenças, e a
prova é que nem menino Jesus da casa real fui nomeado. E a propósito: querem
vossas senhorias uma pingoleta de aguardente?
Veio a pingoleta, talharam-se
os cigarros, e sem dar tempo a perguntas, o velhote, adivinhando o fim da nossa
estada, começou logo a fazer a história do seu título.
— Aqui no convento há um
presepe, que até há quatro anos era o enlevo d'Évora, e armava-se no claustro
em todas as vésperas de Natal. As figuras são todas de barro, maiores que
humanas, mas expressivas que se alguma delas falasse, estou que ninguém levaria
isso à conta de milagre, tanto parece estarem vivas, e respirando como qualquer
criatura de Nos'Senhor. As freiras já não querem mostrar aos visitantes o
presepe, desde que um barrote fez em bocados o rei preto, e deitou meia faceira
abaixo a São José; mas acho que nem assim deviam ocultar obra tão rica, privando
os entendidos dum gozo que me parece não tem igual cá na cidade.
Em 1826, veio de Monte-mor
para o Paraíso uma freira, desterrada diziam que por se entregar mais aos
amores dos homens, do que a Deus, e o certo foi que com a reputação de beleza
trazia ela uma outra de estroinice, de tal maneira grave, que a abadessa mandou
reforçar as gelosias das janelas, interdizer a grade à recém-vinda, e acautelar
com ferrolhos novos todas as portas da cerca e mais serventias do mosteiro.
Como a freira nova era riquíssima, e oriunda duma das melhores famílias da
comarca, foi-lhe admitido um trem de cela por demasia ostentoso para a regra penitente
da casa, e nesse trem vinha uma aia, açafata, ou confidente, que logo começou a
ser notada por suas prendas de mãos, e engenhos de compor e armar toda a sorte
de altares e painéis religiosos.
Ao contrário do que se
esperava, a freira nova, apenas entrada no mosteiro, pretextando doença, nunca
mais abandonou a sua cela; comia pouco, teimava em não ver a luz do dia, de
sorte que vivia às escuras, levando horas a dar gemidos que enterneciam a comunidade,
e pouco a pouco lhe foram criando lendas de martírio.
Véspera de Natal, ao cair da
noite, em quanto as monjas se afadigavam a engalanar a igreja, a cobrir os
altares de flores e carinhas, e a dispor no claustro as grandes figuras de roda
do presepe, os gritos e gemidos da desterrada exprimiam, lá do fundo da cela um
sofrimento excruciante, entre palavras de lástima que as mais beatas diziam repassadas
de intensidade mística e contrição.
A poder dos grandes rogos da
criada, deixaram-lhe ir o menino do presepe, para que sua ama o vestisse,
conforme promessa feita a Nossa Senhora, — e o presepe já pronto, velas acesas,
missa tocada, gente no adro, e o menino Jesus nada vir da cela de madre Ana!
Já o caso ia parecendo
desusado à comunidade, várias noviças tinham chineleado nos corredores, com
recados da prioresa, quando finalmente a reclusa se resolve a deixar ver o
bambino, vestido e deitado por ela no bercinho doirado que havia de figurar ao
centro do presepe. Era o que se chama uma obra de preceito! Ele travesseiras de
cetim com fronhas de bobinete, lençóis de Holanda guarnecidos de rendas de
Veneza, guarda-cama bordado, com entremeios e abertos da finura duma teia d’aranhiço,
e quanto a coberta, era um antigo brocado doiro e violeta, recamado a matiz,
com toda a sorte de pássaros e arvoredos... A respeito das anáguas e mantilhas
do inocente, não deixou a açafata ver o que lá ia por baixo das roupas, e
pressurosa, como a senhora abadessa já começava a zangar-se da demora, "ei-la
depondo a preciosa camilha ao centro do presepe, entre Nossa Senhora, São José,
o rei preto ofertante, e os animais do estabulo de Belém.
Abriu-se a igreja para o
sacrifício da meia noite, velas aos centos nos altares, nas serpentinas douradas
das paredes, em lustres caindo a par dos lampadários das capelas, e era povo de
morrer naquela nave, e os coros das freiras acompanhavam-se ao órgão, que era
ouvi-los e viver num céu aberto!
Ditas as missas, abriu-se a
gradaria que dava para o claustro, o povo invadiu à bruta o caminho do presepe,
ao tempo em que já o capelão, de capa d'asperges, véu de ombros, tomara o
menino do berço, para o dar a beijar aos circunstantes. Mas caiu de joelhos,
fulminado: o menino Jesus mexia os braços, e desatara a berrar como um cabrito!
Foi uma balbúrdia no claustro, indescritível, de todas as bandas gritavam por
milagre, as mulheres desmaiavam, enquanto outros nas pias d'água-benta iam
banhar as regiões do corpo, mais aflitas — do que houveram prodigiosas
catarreiras. Embalde o capelão, velho sabido, mui pouco atreito a acreditar prodígios
que metessem enjeitadinho, embalde ele procurava furtar o crianço às arremetidas
beatas da gentana: a turba crescia cada vez mais de roda do presepe, atulhando
as arcadas e o jardim da quadra perto ululando, na rua, e insistindo num
fanatismo furioso, em arrancar relíquias ao “Deus vivo.” A nova correra por
toda a cidade, atordoara os palácios, e entrando aos paços do arcebispo, pusera
em cheque a austeridade do prelado, irresoluto do escândalo, e não sabendo se
transigir com o fanatismo estúpido da canalha, se com a provável indignação da
classe culta, que era natural exigisse uma devassa impiedosa à moralidade das
monjas do Paraíso.
Logo pela manhãzinha foi o
chantre, Diogo Paim Cisneiros de Villugas, por ordem do prelado, pedir à senhora
abadessa uma entrevista. A dona veio, ainda com os olhos inchados dum mau
sonho, amparada à bengala, receber sua ilustríssima com todos os tics da mais cerimoniosa deferência. Falou
de diversas coisas, muito de leve aludiu aos tabuleiros de ovos tostados que
tinha enviado na véspera ao arcebispo, e quando D. Diogo pousou no milagre,
redarguiu-lhe que ainda o achara pequeno, dada a qualidade de ovelhas com que
todos os dias a autoridade eclesiástica lhe estava gafando o seu rebanho.
Varado daquele aprumo, o cônego
pediu então secamente a história do milagre, e ela sem lhe atenuar as arestas,
disse-a toda, concluindo que atenta a penumbra de que a criminosa se cercava,
nunca poderá suspeitar do seu estado, e filiara os gritos do parto enfim, nalguma
dessas crises dolorosas frequentes em mulheres tolhidas de histeria. A troca do
menino Jesus pelo crianço fora um rompante de escândalo, que se por um lado merecia
castigo, por outro estava a pedir um exame sério as faculdades de razão da inculpada.
Quanto ao efeito moral do milagre, lastimava-o com todo o pudor da sua alma;
forçoso era que a comunidade sofresse a abominação que ele continha, e soubesse
resistir virtuosamente aos chascos e desdéns das línguas viperinas, que já
tinham começado a apontar o mosteiro com um lugar de luxúria e danação.
— E é freira ou noviça, a
criminosa?
— Freira professa, Sr.
chantre.
— Professa deste claustro.
— Se assim fosse, responderia
por ela, como por mim. A criminosa veio
de Montemor o Novo há quatro meses.
— Jesus, que vai dizer!?
— É tarde pr'a lho ocultar. A
autora do abominável sacrilégio, é efetivamente a irmã de vossa senhoria.
— Tio do menino Jesus, eu!
nesta idade! dizia D. Diogo, largando do Paraíso esbaforido.
Ao cabo de grandes discussões
e manejos diplomáticos, temperaram-se as coisas por maneiras de se fazer uma
procissão congratulatória, da catedral para o mosteiro, e se cantarem Te-Deuns — nunca ninguém soube dizer por
gratidão de quais favores celestiais. Para evitar piores escândalos, deixou -
se o menino Jesus do Paraíso entregue aos cuidados da mulher do hortelão, que
todos os dias o levava a madre Ana de Villugas, sua madrinha e generosa protetora,
acostumando-se o pequeno a viver entre as saias das madres, como vergôntea da
casa, e a ir medrando na suasão de o fazerem algum dia cônego regrante ou arcebispo.
Infelizmente, madre Ana de Villugas veio a morrer muito cedo, e não acautelou a
sorte do pequeno; e quanto ao chantre, tinha em casa sobrinhos mais chegados, por quem espargir os
consideráveis haveres do seu remanescente. De sorte que nascido em berço dourado,
tive as homenagens do povo, como os filhos dos reis, mas tanto pôde o capricho
da fortuna, que vim a cair de menino Deus, em sapateiro. Não me lastimo! Foi
quanto meus pães adotivos, hortelões no convento, puderam fazer de melhor em
meu favor, e por aí tenho vindo a remontar sapatos e a beber pingoletas, vendo
o meu trabalho medrar, e com ele sete rapagões como umas torres, que renunciaram
aos seus direitos na sagrada família, já se vê, visto saberem cá neste mundo o
nome todo de seus pais.
---
Fialho de Almeida, em “O País das Uvas” (1893)
Desenho de Euclides (Revista Vamos Ler!, 18/12/1941)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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