Bom tempo houve em que o romance era
coisa de aviar com receitas à vista, qual faz o honesto boticário com os seus xaropes.
Quer trabuco histórico? Tome tanto
de Herculano, tanto de Walter Scott, um pajem, um escudeiro e o que baste de Briolanjas,
Urracas e Guterres.
Quer indianismo? Ponha duas arrobas
de Alencar, uns laivos de Fenimore, pitadas de Chateaubriand, graúnas quantum satis, misture e mande.
Receitas para tudo. Para começo (fórmula
Herculano): “Era por uma dessas tardes de verão em que o astro-rei etc., etc.”.
E para fim (fórmula Alencar): “E a
palmeira desapareceu no horizonte...”. Arrumado o cenário da natureza, surgia, lá
em Portugal, um lidador com o seu espadagão, todo carapaçado de ferro e ereto no
lombo de árdego morzelo; ou, aqui no Brasil, um cacique de feroz catadura, todo
arco, flechas e inúbias.
E vinha, ou uma castelã de olhos com
cercadura de violetas, ou uma morena virgem nua, de pulseira na canela e mel nos
lábios.
E não tardava um donzel trovadoresco
que “cantava” a castelã, ou um guerreiro branco que fugia com a Iracema à garupa.
Depois, a escada de corda, o luar,
os beijos — multiplicação da espécie à moda medieval; ou um sussurro na moita —
multiplicação da espécie à moda natural.
A tantas o pai feroz descobria tudo
e, à frente dos seus peões, voava à caça do sedutor em desabalada corrida, rebentando
dúzias de corcéis; ou o cacique de rabos de arara na cabeça erguia as mãos para
o céu de Tupã implorando vingança.
E dom Bermudo, apanhando o trovador
pirata, o objurgava em estilo de catedral, com a toledana erguida sobre sua cabeça:
— Mentes pela gorja, perro infame!
Ou o cacique, filando o guerreiro
branco, o trazia para a taba ao som da inúbia e lá o assava em fogueira de pau-brasil;
vingança tremenda, porém não maior que a de dom Bermudo a fender o crânio do pajem
e a arrancar-lhe o coração fumegante para depô-lo no regaço da castelã manchada.
E a moça desmaiava, e o leitor chorava
e a obra recebia etiqueta de histórica, se passada unicamente entre Dons e Donas,
ou de indianista, se na manipulação entravam ingredientes do empório Gonçalves Dias,
Alencar & Cia.
Veio depois Zola com o seu naturalismo,
e veio a psicologia e a preocupação da verdade, tudo por contágio da ciência que
Darwin, Spencer e outros demônios derramaram no espírito humano.
Verdade, Verdade!... Que musa tirânica!
Como fez mal aos romancistas — e como os força
a ter talento!
Foram-se as receitas, os figurinos.
Cada qual faça como entender, contanto que não discrepe do veritas super omnia, latim que em arte significa mentir com verossimilhança.
— Tudo isso para quê? — perguntará
o leitor atônito.
É que trago nos miolos uma novela
tão ao sabor antigo, tão fora da moda, que não me animo a impingi-la sem preâmbulo.
E não é feia, não. Vem de Alencar, esse filho de alguma Sherazade aimoré, que a
todos nós, na juventude, nos povoou a imaginação de lindas coisas inesquecíveis.
E compõe-se de um guerreiro branco, duas virgens das selvas, caciques, danças guerreiras,
fuga heroica etc.
Chama-se “Marabá” e principia assim:
Era por uma dessas noites enluaradas
de verão, em que a natureza parece chovida de cinzas brancas.
Dorme a taba, e dorme a floresta circundante,
sem sussurros de brisas, nem regorjeio de aves.
Só o urutau pia longe, e uma ou outra
suindara perpassa, descrevendo voos de veludo ao som dum clu, clu, clu... que ora se aproxima, ora se perde distante.
No centro do terreiro, atado a um
poste da canjerana rija, o prisioneiro branco vela. Foi vencido em combate cruento,
teve todos os seus homens trucidados e vai agora pagar com a vida o louco ousio
de pisar terra aimoré. Será sacrificado pela manhã ao romper do sol, cabendo ao
potente Anhembira, cacique invicto, a honra de fender-lhe o crânio com a ivirapema
de pau-ferro. Seu corpo será destroçado pelas horrendas megeras da tribo, sua carne
devorada pelos ferozes canibais.
O guerreiro branco rememora com melancolia
o viver tão breve — sua meninice de ontem, o engajamento numa nau, a viagem por
mar, as aventuras nas terras novas de Santa Cruz, norteadas pela desmedida ambição
do ouro.
É louro e tem olhos azuis. Em suas
veias corre o melhor sangue do reino. Seu avô caiu nas Índias, varado duma zagaia
cingalesa; seu pai, nos sertões inóspitos dos Brasis, acabou na paralisia do curare
que seta fatal lhe inoculou.
Chegara a vez do mal-aventurado rebento
último dessa estirpe de heróis...
Em redor, guerreiros cor de bronze,
exaustos da dança e bêbados de cauim, jazem estirados, as mãos soltas dos tacapes
terríveis. Também dormita o velho pajé, de cócoras rente à ocara, com o maracá em
silêncio ao lado.
Que mais? Sim, a lua... A lua que
no alto passeia o seu crescente.
Súbito, um vulto se destaca de moita
vizinha e aproxima-se cauteloso, com pés sutis de corça arisca.
É Iná, a mais formosa virgem das selvas,
oriunda do sangue cacical de Anhembira, o Morde-corações.
A virgem caminha em direção ao prisioneiro.
Para-lhe defronte e por instantes o contempla, como presa de indecisas ideias.
Por fim decide-se e, ligeira como
a irara, desfaz os nós da muçurana fatal e dá de beber ao guerreiro branco o trago
de cauim desentorpecedor dos músculos adormentados. Em seguida mira-o a furto nos
olhos, perturbada, e num gesto indica-lhe a mata, sussurrando em língua da terra:
— Foge!
O guerreiro branco vacila. Não conhece
a mata, que é imensa, e teme encontrar em seu seio morte mais cruel que a pelo tacape
de Anhembira.
Iná compreende o seu enleio e, tomando-lhe
a mão, leva-o consigo; conhece a mata a palmo e sabe o caminho de pô-lo a seguro
em sítio até onde não ousa alongar-se a gente aimoré.
A noite inteira caminham, e só quando
um grande rio de águas negras lhes tranca o passo é que a virgem morena se detém.
Aponta o rio ao moço guerreiro e nesse gesto diz que está finda a sua missão, pois
que o rio leva ao mar e o mar é o caminho dos guerreiros brancos.
O moço tem o peito a estourar de gratidão
e amor, e como não pode significá-los com palavras lusas, recorre ao esperanto da
natureza: abraça a virgem morena, beija-a e, a céu aberto, ao som múrmuro das águas
eternas, louco de paixão, a possui.
Reticências.
Ao romper da madrugada:
— É a cotovia que canta!... — diz
ela.
— Não; é o rouxinol — retruca Romeu.
— É a cotovia...
— É o rouxinol...
Vence a cotovia. O moço beija-a pela
última vez e parte. Não esquece, porém, de enfiar no dedo de Julieta um anel — joia
indispensável ao desfecho da nossa tragédia.
PRIMEIRO ATO
A tribo está apreensiva. As velhas
murmuram e o pajé inquieta-se.
— Marabá! — sussurram todos.
Castigo de Tupã? Sinal do céu que
marca o termo da glória de Anhembira, o chefe da tribo?
Uma criança nascera ali, de olhos
azuis e loura, evidentemente marabá. E nascera de Iná, a virgem bronzeada em cujas
veias corre o sangue do grande morubixaba.
Traição!
A mãe mentira à raça, e do contato
com o estrangeiro invasor, cruel inimigo que do seio do mar surgiu para desgraça
do povo americano, teve aquela filha. O louro dos cabelos, o azul dos olhos, a alvura
da pele denunciavam claramente o imperdoável crime.
— Marabá! — sussurram todos.
E um vago terror espalha-se pela tribo.
O pajé reúne em concílio os velhos
para decidirem sobre o gravíssimo caso. E após longas ponderações a assembleia resolve
o sacrifício da pequena marabá, em holocausto aos manes irritados da tribo.
Levam a sentença ao cacique, que é
pai, mas que antes de pai é o chefe, o inexorável guardião da Lei velha como o tempo.
Anhembira cerra o sobrecenho, baixa
a cabeça e queda-se imóvel como a própria estátua da dor.
Entre parêntesis.
Uma coisa me espanta: que haja inda
hoje, nestes nossos atropelados dias modernos, quem escreva romances! E quem os leia!...
Conduzir por trezentas páginas a fio
um enredo, que estafa!
Nada disso. Sejamos da época. A época
é apressada, automobilística, aviatória, cinematográfica, e esta minha “Marabá”,
no andamento em que começou, não chegaria nunca ao epílogo.
Abreviemo-la, pois, transformando-a
em entrecho de filme. Vantagem tríplice: não maçará o pobre do leitor, não comerá
o escasso tempo do autor e ainda pode ser que acabe filmada, quando tivermos por
cá miolo e ânimo para concorrer com a Fox ou a Paramount.
Vá daqui para diante a cem quilômetros
por hora, dividida em quadros e letreiros.
QUADRO
Enquanto Anhembira, de cabeça derrubada
sobre o peito, medita sobre a sentença que condenou a criança loura, uma índia velha
corre a avisar Iná.
Iná é mãe e as mães não vacilam. Toma
a filhinha nos braços e foge para as selvas...
QUADRO
Lindo cenário. Trecho de mata virgem
trancado de cipoeira, trançado de taquaruçus. Vê-se à direita um velho tronco de
enorme jequitibá ocado. É nesse oco que mora a menina loura de olhos azuis. A mãe
ajeitou-o para esconderijo seguro; tapetou-o de musgos macios; fez dele um ninho
de meter inveja às aves.
Ali dorme o lindo anjo, filho do amor
a céu aberto. Ali recebe a mãe inquieta, que de fuga lhe traz o seio nutriz. De
fuga, pois a tribo ignora o estratagema e está certa de que a filha de Anhembira
arrojou ao abismo das águas o fruto maldito do seu ventre.
LETREIRO
Marabá cresceu no sombrio da mata, como a ninfa mimosa do ermo. Iná ensinou-lhe
a vida e deu-lhe armas com que abatesse as aves que piam no subosque, e a caça ligeira
que entoca, e os peixes faiscantes que se alapam nas pedras.
QUADRO
Marabá despede-se de sua mãe.
Já pode viver por si e quer seguir
para ermos distantes onde não chegue o som das inúbias de Anhembira — lá onde o
rio é como um deus irrequieto que ora escabuja nas fragas, ora brinca com as pétalas
mortas remoinhantes em seus remansos.
Iná despede-se da filha e, repetindo
o gesto do guerreiro branco, põe-lhe no dedo o anel de núpcias.
QUADRO
A vida solitária de Marabá. Seu namoro
com o rio. Nele banha-se e mergulha e nada, com a linda coma loura flutuante, e
nele mira seus olhos feitos de pedaços do céu.
É seu amante, é seu deus o rio eterno. É o ser vivo em cuja companhia refoge à depressão do ermo absoluto.
LETREIRO
Em Marabá confluem duas psíquicas — a da terra, herdada de sua mãe, e a
do moço louro vindo de além-mar, duma plaga distante que em sonhos indecisos sua
alma em botão adivinha.
QUADRO
Mas pouco cisma, a linda Marabá. O
tempo lhe é escasso para a delirante vida de ninfa que é o seu viver ali.
Ora perde a manhã inteira na perseguição
do gamo que veio beber ao rio; ora galga a pedranceira em prodígios de arrojo para
colher uma flor que se abriu no mais alto da penha.
Persegue borboletas — e que quadro
é vê-la no campo, veloz como a gazela, a loura cabeleira solta ao vento!
Sua nudez de virgem esplende em fulgor
de escultura divina. Deus a esculpiu — e escultor nenhum jamais concebeu corpo assim,
de linhas mais puras, seios mais firmes, ancas mais esgalgas, braços de torneio
mais fino.
Tem a nudez divina, Marabá — porque
existe a nudez humana: das criaturas que convivem entre humanos e sofrem todos os
vincos da humanidade.
Marabá não viciou sua nudez no contato
humano; é nua como é nu o lírio — sem saber que o é.
Mas é mulher. Adivinha de instinto
que as flores fê-las Deus para a mulher, e colhe-as, e tece-as em guirlandas, e
com elas enfeita os cabelos e o colo e a cintura. E assim, toda flores, mira-se
no espelho das águas e sorri. E porque sorri, logo salta, alegre, e dança. E porque
dança, anima as selvas da luz maravilhosa que os helenos ensinaram ao mundo.
Súbito, um rumor fá-la estacar. A
filha de Dionísio se apaga e surge Diana.
Ei-la de arco em punho, em louca desabalada,
na pista do cervo incauto que lhe interrompeu a bela improvisação coreográfica.
Quem lhe ensinou a dançar?
Tudo. O sangue estuante em suas veias,
o vento que agita a fronde das jiçaras, o remoinho das águas, as aves. Viu dançarem
os tangarás, um dia, e desde esse momento sua vida é uma contínua e maravilhosa
criação em que a alma da terra americana se exsolve em movimentos rítmicos.
Sempre mulher, Marabá amansou uma
veadinha de leite e tem-na consigo como inseparável companheira, dócil às suas expansões
de carinho. Com a pequena corça brinca horas a fio, e abraça-a, e beija-a no mimoso
focinho róseo.
Que festa a vida de Marabá!
Ninguém a vence em riquezas. Ouro,
dá-lhe o sol às catadupas, e todo só para ela. Perfume, não em frascos microscópicos
o tem, mas ambiente, perenal; as flores só exalam para ela, e todas as brisas se
ocupam em trazê-lo de longe, tomado da corola das orquídeas mais raras.
E as abelhas ofertam-lhe o mel puríssimo;
e os ingazeiros de beira-rio dão-lhe a nívea polpa dos seus frutos invaginados;
e cem árvores da floresta parecem precipitar a maturescência de suas bagas rubras,
roxas, verdoengas, para que mais cedo os alvos dentes da ninfa as mordam com delícia.
E os dias de Marabá são assim um delírio
de luz, de perfumes, de movimentos sadios e livres, capaz de enlouquecer a imaginação
dos pobres seres chamados homens, que vivem em prisões chamadas cidades, dentro
de gaiolas chamadas casas, com poeira para os pulmões em vez de ar, catinga de gasolina
em vez de vida...
NOTA A MR. CECIL B. DE
MILLE
Este papel de Marabá tem que ser feito
por Annette Kellermann. Como, porém, Annette já está madura e Marabá é o que existe
de mais botão, torna-se preciso inventar um processo que rejuvenesça de trinta anos
a intérprete.
QUADRO
Um dia, um caçador tresmalhado surpreende
a ninfa no banho.
É Ipojuca, o filho dileto de Anhembira
e seu sucessor no cacicado. Três dias e três noites correu ele em perseguição de
um jaguar; mas no momento em que dobrava o arco para desferir a flecha certeira,
descaiu-lhe das mãos a arma e seus olhos se dilataram de assombro.
O corpo nu da virgem loura emergira
das águas à sua frente.
— Iara?
No primeiro momento o medo sobressaltou-o
— mas o sangue de Anhembira reagiu em suas veias, e não seria o filho do guerreiro
que jamais conheceu o medo quem tremesse diante de mulher, Iara que fosse.
E Ipojuca imobilizou-se à margem do
rio, em muda contemplação, até que a ninfa, percebendo-o, fugisse para o lado oposto,
mais arisca do que a tabarana.
Ipojuca atravessou o rio e logo mergulhou
na floresta, em sua perseguição. Jamais as ninfas venceram a faunos na corrida.
Foi assim na Grécia; seria assim sob o céu de Colombo. O filho do cacique alcançou-a.
Seu braço de ferro enlaçou-a; suas mãos potentes quebraram-lhe a resistência e dobraram-lhe
a cabeça loura para o beijo de núpcias.
Mas a virgem vencida abriu para o
macho vitorioso os grandes olhos azuis e, encarando-o a fito, murmurou a tremenda
palavra que afasta:
— Sou Marabá!
Ipojuca estarrece, como fulminado
pelo raio, e deixa que a presa loura fuja para o recesso das selvas.
QUADRO
Ipojuca, o vencedor vencido, caminha
de cabeça baixa, absorto em sonhos. Vai de regresso à taba. O jaguar que tinha perseguido
cruza-se-lhe à frente. Ipojuca não o vê. A seta que lhe destinara cravou-lha Eros
no coração.
QUADRO
Na taba, Ipojuca, desde que regressou,
vive arredio. Pensa.
A cabeça lhe estala. Travam-se de
razões seu cérebro e seu coração — o dever de solidariedade para com a tribo e o
amor. Um impõe-lhe o desprezo da criatura maldita; outro pede-a para o beijo.
LETREIRO
Vence Amor — o eterno vencedor, e Ipojuca volta ao ermo em procura de Marabá.
QUADRO
A virgem loura, desde o encontro fatal,
perdida tem a sua serenidade de lírio.
Cisma.
Horas e horas passa imóvel, com o
olhar absorto. Sua veadinha ao lado inutilmente espera as carícias de sempre. Marabá
não a vê. Marabá esqueceu-a. Como esqueceu as borboletas amarelas que douram o úmido
em redor da laje onde jaz reclinada. Como não vê o casal de martins-pescadores que
a três passos a espiam curiosos.
Marabá só vê o guerreiro de pele bronzeada
que a subjugou com o braço potente, que lhe premiu com violência a carne virgem,
que lhe derramou na alma um veneno mortal.
Marabá só vê o seu guerreiro.
Vê-lhe o vulto ereto, firme e forte
como os penedos. Vê-lhe a musculatura mais rija que o tronco da peroba. Vê o fogo
que seus olhos chispam.
E com tamanha nitidez o vê que para
ele estende os braços, amorosamente. E Ipojuca, pois era Ipojuca em pessoa e não
sua sombra o que ela via, cai-lhe nos braços e esmaga-lhe nos lábios o primeiro
beijo.
QUADRO
Idílio. Marabá espera o seu guerreiro
no alto de uma canjerana.
Ipojuca chega, procura-a, chama-a,
aflito.
A resposta é um punhado de bagas rubras
que a virgem lhe lança da fronde. Ágil como o gorila, Ipojuca abarca o tronco da
canjerana e marinha galhos acima.
Ao ser alcançada, Marabá despenha-se
no rio e mergulha.
Susto do índio, logo seguido de alegria
ao vê-la emergir além. Lança-se à água, persegue-a — e são dois peixes de pasmosa
agilidade que brincam.
Agarra-a — e a luta finda-se na doce
quebreira dos beijos.
QUADRO
Moema, a formosa virgem por Anhembira
destinada para esposa de Ipojuca, desconfia dos modos de seu noivo. Aquelas contínuas
ausências, aquele incessante cismar, seu alheamento a tudo, dizem-lhe com clareza
que uma rival se interpõe entre ambos.
E, como desconfia, segue-o cautelosa.
E tudo descobre, pois alcança o rio onde, o coração varado de crudelíssima flecha,
assiste, oculta em propícia moita, às expansões amorosas dos ternos amantes. Adivinha
quem é a rival, pois que ainda tem vivo na memória o caso da marabazinha misteriosamente
desaparecida.
QUADRO
Moema regressa à tribo e, sequiosa
de vingança, denuncia ao pajé o esconderijo da virgem maldita.
é velho reúne os guerreiros, arenga-os,
incita-os à vingança antes que volte Anhembira, alongado numa expedição de vindita
contra os brancos invasores. Receia que o cacique perdoe à neta, movido pelas lágrimas
da velha Iná.
QUADRO
Os guerreiros em marcha para a vingança.
QUADRO
Surpreendidos pelos índios, os amantes
fogem rio abaixo numa piroga. (É difícil explicar o aparecimento desta providencial
piroga, mas não impossível. Derivou rio abaixo, por exemplo, e ali ficou enredada
numa tranqueira. Não esquecer de introduzir num dos quadros anteriores um close-up da piroga.)
Os índios metem-se em outras pirogas.
(Mais pirogas! É que não derivou uma só, sim várias...) E remam com fúria na esteira
dos fugitivos.
QUADRO
Continua a perseguição. Não há flechaços,
para evitar-se o perigo de ferir-se Ipojuca. Perseguição silenciosa, à força de
remos que estalam.
QUADRO
A noite vem e a regata continua ao
luar.
QUADRO
E descem os fugitivos até que, de
súbito, dão de cara com um fortim português.
LETREIRO
Entre dois fogos!
QUADRO
Os remos caem das mãos de Ipojuca.
Marabá aninha-se-lhe ao peito rijo, indiferente à morte — que nada há mais suave
do que acabar assim, a dois, em pleno apogeu do delírio do amor.
QUADRO
Os índios perseguidores ganham terreno.
São avistados pelos portugueses, que logo acodem com os seus trabucos de boca de
sino e abrem fuzilaria.
QUADRO
Os perseguidores fogem desordenadamente.
Ipojuca, ferido no peito, é aprisionado juntamente com Marabá.
QUADRO
Na praia, ao lado do seu arco, Ipojuca
estorce-se nas dores da agonia, enquanto Marabá é levada à presença do capitão do
forte, que demora um minuto para apresentar-se.
QUADRO
Rodeiam-na os lusos e admiram-lhe
a beleza do tipo europeu.
Nisto o capitão do fortim aparece.
Interroga-a; examina-a cheio de pasmo,
como que tomado de vagos pressentimentos.
Marabá tem o anel que Iná lhe deu.
O capitão examina-o e, assombrado,
o reconhece.
— Minha filha! — exclama.
E numa delirante explosão de amor
paterno abraça-a e beija-a com frenesi.
QUADRO
Ipojuca, a distância, estorce-se na
agonia. Vê a cena e, sem compreender o que se passa, julga que o capitão, como um
sátiro, rouba-lhe a amante querida. Reúne as últimas forças, toma do arco, ajusta
uma flecha e despede-a contra Marabá.
QUADRO
A flecha crava-se no peito da virgem
loura, que desfalece e morre nos braços do pai atônito, enquanto na praia o heroico
Ipojuca exala o derradeiro suspiro, murmurando:
LETREIRO
— Minha ou de ninguém!
(Acendem-se as luzes e enxugam-se
as lágrimas.)
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2018)
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