Lenda de Natal
Certo homem, já velho, viu
chegar o Natal, e pôs-se a pensar na melancolia, no desamparo da sua vida. Dos
filhos, uns tinham-lhe morrido, outros tinham-no abandonado... Estava só no
mundo, com os pés para a cova, e cheio de desilusões, de ingratidões e de
pobreza. Entretanto não havia ambições vis nem rancores no seu coração. Tinha
saudades. Por esse lento caminho da vida, hoje ermo de afetos, algumas
consolações tivera a sua alma. Recordava-se, às vezes com os olhos orvalhados,
postos no horizonte esfumado do dia triste. Agora era um farrapo, que tinham de
levar os redemoinhos da morte.
À noite (era a nostálgica
noite de Consoada) sentiu duas longas lágrimas a molharem-lhe o rosto. Ele
mesmo foi fazer um caldo para a ceia. Os piornos ardiam na lareira do casebre
esburacado. O velho encolheu-se ao lume, com os olhos muito fitos na labareda
avermelhada.
Todos estavam, àquela hora,
nos lares amoráveis. Ele alembrava-se do riso das crianças, desse amoroso e
cândido florir de venturas; avivava-se-lhe o passado, claro e benéfico, cuja
árvore do Natal era cheia de estrelas, cantada de esperanças, e agora, há
quantos anos, um negro e frio cipreste! Para ali estava, sem uma fala amiga,
sem um rosto amado, ouvindo a ventania nos soutos. E pensava que era como esses
troncos velhos e partidos, por cima dos quais o enxurro espumava, e onde nunca
mais nasceria flor, ou cantaria ave...
Fez um exame de consciência:
fora bom, fora simples. A mulher morrera-lhe ainda na flor da vida; a filha
fugira-lhe para a mãe, quando estava noiva. Antes assim, pensava. A filha era
uma santa, e o mundo era ruim... Mais tarde, já trôpego, dois filhos
roubaram-no, e nunca mais apareceram. Como ele se lembrava! Fora numa noite
como aquela, negra e ventosa. Os dois, quando ele dormia, arrombaram-lhe a
arca, e levaram-lhe a meia dúzia de peças que tinha guardadas no escaninho,
para algum ano sáfaro, de mais negra fome. Afinal tudo era para os filhos,
dizia consigo; os filhos lho levaram... Mas nem roupa lhe deixaram, no Inverno
impiedoso, para o cobrir. Tinham sido perversos, os filhos que ele tanto amara!
Depois começou de entrevecer; os braços não podiam; e onde o trabalho mingua,
vai crescendo a miséria. Ficou com uma horta, donde comia o caldo, onde colhia
uma cesta de fruta. Pouco lhe bastava, afinal. O compadre, a quem ele tanto
ajudara, por quem tantos sacrifícios fizera, fora para o Brasil. Por lá
acabara, certamente...
Estava escorraçado como um
cão, pobre como Jó. Apesar disso, na consciência não se apagara a claridade que
sempre lha iluminara. Ela era semelhante a um suave rio bucólico, cuja
transparência deixa ver na areia loira a sombra de um cardume prateado. Ele
sentia-se bem naquela miséria, naquele abandono — com essa leveza e essa graça
dos que olhando para a vida inteira não têm nunca a desviar os olhos de uma
torpeza ou de uma mentira.
Curvado sobre as brasas
crepitantes, o velho lançou os olhos para o banco chamuscado, que lhe ficava em
frente. E de repente ficou extático. O queixo tremia-lhe fortemente. Santo
Deus! Que via ele?! Era inacreditável! A filha e a mulher, a fiarem nas suas
rocas, com um sorriso tão suave, uma serenidade tão bela! Jesus, Jesus, eram
elas! Que alegria a sua! O velho estremeceu, o coração bateu-lhe como quando
era jovem, balbuciou:
— Ó Maria, ó Luísa, vocês
vieram?!
Elas sorriram-se mais
docemente, sempre a fiar nas suas rocas. E o velho, com os olhos pregados
nelas, sentia as pálpebras umedecidas de uma felicidade extra-humana.
— Ó Maria, ó Luísa!...
Assim correram alguns
instantes celestes. Ele olhava-as embevecido. Elas resplandeciam, como envoltas
num vago luar. Nunca as vira tão lindas, com mais lindo sorriso. E como não
falavam, o velho calou-se também num êxtase.
Elas continuavam a sorrir,
continuavam a fiar. O vento, fora, soprava rijo nos sobros, assobiava. A noite
ia passando a uivar, feia e longa; mas as horas voavam para aquele velho
embelezado nas visões.
As duas já tinham espiado as
rocas. A porta ouviram-se três pancadas.
Truz, truz, truz!
— Quem me procura?! —
tartamudeou o velho, como despertando de um sonho imenso.
Truz, truz, truz!
Arrastou-se trôpego, abriu a
porta. As duas tinham desaparecido. Na treva espessa e lúgubre, distinguiu a
figura doutro velho de grandes barbas, com uma sacola ao ombro.
— Sou eu, compadre, sou eu!
— Será possível! Que
felicidade!
E abraçaram-se, num antigo e
comovente abraço.
O viandante pousou a sacola,
sacudiu a neve do capote, e foi-se aquentar ao lume.
— Hás de vir gelado, Manuel!
Vinha, na verdade. Tinha
andado muito, a noite estava má, nevava. Mas há quantos anos ele tinha querido
vir passar ali o Natal! E contou, ao estalar das raízes secas no lume, naquela
paz religiosa e bíblica, a sua crua sorte.
Os velhos sentaram-se um em
frente do outro. Enquanto o caminheiro espalmava as mãos sobre o brasido, ia
narrando a sua vida dura, por terras longínquas e ásperas, à busca de fortuna.
Trabalhara muito, sofrera muito. E sempre, através de tormentos, a saudade do
seu velho amigo lhe aparecia... A vida tinha-lhe ensinado muitas coisas; mas
sobretudo que a felicidade está dentro de nós, vive conosco, e que todo aquele
que semeia o bem, há de colher o bem...
O outro escutava-o silencioso,
com a vista úmida.
— Acredita que toda a minha
pena, compadre, era não poder abraçar-te!
— E eu julgava que tu, por tão
longe, nunca mais te lembrarias...
— Pode lá esquecer quem é
santo, compadre!
E contou que na volta, mar
alto, começou, em pleno dia, a escurecer o céu. A maruja adivinhara a tormenta.
Amainaram as velas, fecharam escotilhas, preveniram tudo. Minutos depois o
vento rugia, o mar bramia. O navio dançava nos abismos revoltos, fulgentes de
relâmpagos. Andaram perdidos, com o leme despedaçado, na água brava. Tiveram
fome e sede — e a tempestade a jogar com eles, como com um grão de areia. Nos
lábios das crianças, das mulheres, de todos, abrira a flor divina de uma
oração. E a dele pedia a Deus que o deixasse vir à sua terra, para ver ainda o
seu velho companheiro sem arrimo.
— E Deus ouviu-me. Aqui estou.
O velho atiçou o braseiro,
deitou mais lenha ao fogo. O viajante ergueu-se, abriu a sacola, e foi tirando,
para cima da masseira velha e carunchosa, as vitualhas que trazia, as ameixas,
as passas, uma garrafa de vinho loiro.
— Não me esqueci da ceia,
compadre.
— Assim vejo, Manuel. Deus to
pague!
E cearam, como tantos anos
antes, quando na aldeia havia alegria e fartura. Foram conversando, pela noite
dentro, com a alma abrindo numa inflorescência misteriosa. Depois o viandante
perguntou por todos, por tudo. E vieram as tristezas, as recordações pungentes:
os filhos maus, a filha amada, a mulher morta!...
De novo o velho olhou para o
banco da lareira, e manteve-se extático, com os olhos iluminados.
— Que tens, compadre?
— Olha, estão ali!
— Ah!... — disse o outro, sem
surpresa, olhando em torno.
— Também vieram, Manuel,
também vieram!...
De feito, o velho lá via de
novo as duas, sorrindo-lhe angelicamente, cheias de graça. Uma trança de lírios
luminosos toucava-as, o mesmo luar de há pouco as envolvia, como se emergissem,
pálidas, de um grande sonho místico.
— A Maria, a Luísa, tão
lindas!... — balbuciou o velho. O viandante respondeu simplesmente:
— Os que se amam nunca nos
abandonam. Estão dentro de nós, vivem conosco.
O velho nem comia, enlevado
nas aparições suaves. Via os cabelos loiros da filha, o seu ar virgem e
esbelto; a mulher, como no dia em que partira, com os fundos olhos tristes, a
boca airosa, onde jamais houvera o veneno da mentira.
— Vê tu que de mais longe
vieram elas fazer-te companhia; não fui eu só, compadre.
A cara do viandante estava
aureolada agora de uma irradiação magnética.
Seguiu-se um diálogo de velhos
que padeceram, que nobremente souberam amar, e que em certa hora suprema dizem,
num murmúrio de almas, as suas confissões. Parábolas que lembram o mar, lembram
estrelas... Belas e tristes como sepulcros, onde puseram flores, à lua cheia. É
a lenda dos homens — sombras vagas, que uma luz vaga para sempre desfaz...
— Agora, compadre, vamos
descansar. Venho quebrado de fadiga. Dormiremos juntos.
— Pois sim, eu não tenho outra
enxerga.
As visões tinham fugido. E os
dois adormeceram, noite alta, quando um galo cantava, como arauto da luz.
***
Mas de madrugada, quando pelas
frestas entrava um fulgor dourado, o velho perguntou:
— Onde estás, compadre?
Ninguém respondeu. Uma grande
paz enchia a casa. O velho procurou com os olhos, sentou-se na cama. Ninguém!
Apenas na enxerga e no travesseiro de estopa ficara resplandecendo docemente a
figura do compadre, como se fosse um brilho de nebulosas...
O velho ergueu-se, rezou de
mãos postas. O dia de festa alvoreceu sem nuvens. Um sol pálido e terno enchia
toda a terra de ouro. Da horta emperlada de orvalho reluzente, o velho veio
ainda contemplar longamente a concha azul do céu misterioso e plácido...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...