Folha de Álbum
Era,
verdadeiramente, um personagem impossível. Tímido demais, sem nada para dizer,
absolutamente. E que peso! Uma vez instalado em vosso atelier, não sabia mais
como sair, até que vos fizesse quase gritar; tínheis vontade, assim que ele se
retirava afinal, encabulado, de atirar em cima dele qualquer coisa enorme — o
fogão, por exemplo. Mas, o curioso é que, à primeira vista, ele parecia muito
interessante. Todo mundo estava de acordo. Indo ao café, à tarde, podereis descobrir
um jovem magro e moreno, vestido de uma camisa azul debaixo de um paletó cinzento
abotoado, sentado num canto, em frente a uma xícara de café. De qualquer
maneira, essa camisa azul e esse paletó cinzento de mangas curtas lhe dava ar
de rapaz resolvido a suicidar-se mar e que, na realidade, se suicidaria. Daqui
a pouco ele se vai levantar, dependurar na ponta da bengala o lenço amarrado
contendo a camisola de dormir e o retrato de sua mãe, sair a afogar-se. Ele
cairá mesmo da beira do cais dirigindo-se para o seu navio... Tinha os cabelos pretos
cortados rente, olhos cinzentos de pestanas longas, faces pálidas e uma boca que
fazia beicinho, decidida a não chorar... Haveria a possibilidade de resistir, pergunto
eu? A sua presença apertava o coração e, como se isso não bastasse, havia ainda
aquela mania de enrubescer... Todas as vezes que o rapaz se acercava de alguém,
tornava-se escarlate.
—
Que é isso, querida? Sabeis qualquer coisa?
—
Sim, ele se chama Ian French. Dizem que é um pintor de muito talento.
E
logo uma daquelas senhoras começou por lhe dispensar os enternecidos cuidados
de uma mãe. Perguntou-lhe quantas vezes recebia notícias de sua casa, se tinha
bastantes cobertas para a cama e quanto de leite tomava por dia. Mas, quando
ela foi ao seu atelier examinar as meias, cansou-se de tocar a campainha: ninguém
abriu a porta, apesar de que ela juraria ouvir alguém respirar no interior...
Desesperador!
Uma
outra decidiu que seria bom que ele se apaixonasse. Puxou-o para junto de si,
chamou-o "meu pequeno", apoiou-se sobre ele, para fazê-lo respirar o
perfume embriagador dos seus cabelos, pegou-lhe o braço e disse-lhe quanto a
vida seria maravilhosa se tivessem coragem; afinal, resolveu passar no seu
atelier uma noite. Cansou-se de tocar a campainha... Desesperador!
—
Esse pobre rapaz tem sobretudo necessidade de ser estimulado — declarou uma
terceira. — Foram juntos aos cafés e aos cabarés, nos lugares onde se bebe qualquer
coisa com o gosto de sumo de abricó de conserva, mas que custa vinte e sete xelins
a garrafa e que se chama champanhe. Depois, em outros lugares tão excitantes
que nem se pode dizer. A gente se senta numa escuridão horrível: justamente no
lugar onde alguém foi assassinado na noite da véspera. Nem um cabelo de Ian se
mexeu. Somente uma vez ele se embebedou bastante, mas em vez de se animar, conservou-se
sentado, imóvel como um poste, duas manchas vermelhas nas faces, uma verdadeira
imagem do "ragtime" que se
tocava, a "Boneca Quebrada". Mas quando a sua companheira o acompanhou
ao atelier, de volta, ele já recobrara os sentidos e despediu-se em baixo, na
rua, com um "boa-noite" indiferente como se voltassem juntos da igreja...
Desesperador!
Só
depois de uma infinidade de tentativas — porque o espírito de bondade morre
dificilmente nas mulheres — renunciaram a ele. Naturalmente elas eram ainda perfeitamente
encantadoras, convidavam-no para as suas exposições, brincavam nos cafés, mas
não passava disso. Quando se é artista não se tem tempo a perder com as pessoas
que não correspondem às tentativas da gente, não é mesmo?
—
E depois, creio sinceramente que existe nisso tudo qualquer coisa de suspeito...
Você não acha? Isso não pode ser tão inocente quanto parece. Para que vir a
Paris se ele quer conservar-se como um lírio nos campos? Não, eu não sou desconfiada,
mas...
Ele
morava num desses grandes edifícios que parecem tão românticos nas noites de
chuva ou de luar, quando estão fechadas as janelas e a pesada porta e que a tabuleta
“pequeno apartamento para alugar" se lê com uma inexprimível melancolia.
Um desses edifícios cujo cheiro se conserva tão prosaico de um começo de ano a
outro! A encarregada habita uma caixa de vidro no rés-do-chão; envolvida em um
xale sórdido, remexe com a colher qualquer coisa em uma caçarola, uma espécie
de erva, que ela dá ao velho cão inchado, estendido numa almofada de pérolas...
Do atelier, dependurado no ar, tem-se uma vista maravilhosa. As duas grandes
janelas se abrem para o rio. Ian pode ver os navios balançando-se e olhar a extremidade
de uma ilhota plantada de árvores, como um buquê redondo. A janela do lado dá
para outra casa ainda menor e embaixo se acha um mercado de flores. Podereis
examinar as barracas em que se vendem plantas em caixas e palmas úmidas,
luzentas, em potes de terra cota. Mulheres velhas andam de um lado para o
outro, como tartarugas, entre flores. Certamente não havia necessidade de sair;
ele poderia ficar lá, em sua janela, anos e anos, o tempo necessário para que
sua barba branca caísse sobre o peitoril, e achando ainda qualquer coisa para
desenhar...
Que
espanto para essas ternas mulheres se elas chegassem a forçar a porta! Porque
Ian French tinha o seu atelier limpo como um níquel novo. Todo ele era arranjado
como para formar um desenho, uma pequena natureza morta, se preferem; as
caçarolas arrumadas atrás do forno de gás, com suas tampas; a terrina de ovos,
o pote de leite e o bule de chá sobre a prateleira; os livros e a lâmpada, com
seu abajur de papel ondulado, em cima da mesa. Uma cortina de tecido da Índia,
sobre a qual corriam leopardos vermelhos, cobria o leito de dia, e, na parede,
ao lado, ao nível dos olhos quando se estava deitado, pendia um letreiro cuidadosamente
impresso: “Levanta-te logo".
Quase
todos os dias se pareciam uns com os outros. Enquanto a luz estava boa, ele
pintava. Depois, cozinhava sua comida e punha tudo em ordem. À noite ia ao café
ou então ficava em casa lendo ou fazendo orçamentos de despesas complicadas com
o seguinte título: "Dinheiro com que eu devia contentar-me" e esta
promessa: "Juro não gastar este total no próximo mês". Assinado: Ian
French.
Nada
de comprometedor nisto tudo, mas aquelas mulheres astuciosas tinham razão: havia
outra coisa.
Uma
tarde, sentado perto da janela lateral, ele comia ameixas, jogando os caroços
sobre os enormes guarda-chuvas do mercado das flores deserto. Tinha chovido. A
primeira chuva verdadeira da primavera acabava de desabar. Tudo estava salpicado
de lantejoulas: o ar cheirava a brotos verdes de terra úmida. Vozes calmas,
satisfeitas, ressoavam no crepúsculo. As pessoas que vinham fechar as venezianas
trocavam ideias e se debruçavam para fora. Embaixo, no mercado, tudo se coloria
de verde-novo. O acendedor de lampiões se aproximava. Ian reparou na casa em
frente, pequena, em ruínas. De repente, como resposta ao seu olhar, duas folhas
da janela se abriram e uma moça, carregando um vaso de narcisos, apareceu na minúscula
sacada. Extremamente magra, vestia um avental escuro; um lenço cor de rosa
envolvia-lhe a cabeça e as mangas, arregaçadas até perto dos ombros, deixavam-lhe
à mostra os braços franzinos, contrastando com o pano escuro.
—
Sim, está fazendo muito calor, isso vai fazer-lhes bem! E, depositando o vaso de
flores, voltou-se para alguém que estava no interior, levantando as mãos para prender
os cabelos no lenço. O seu olhar correu pelo mercado embaixo, depois pelo céu,
sem reparar na casa da frente. Poderia não existir o lugar onde Ian French estava
sentado. Depois, ela desapareceu.
O
coração de Ian despencou da janela do atelier para a sacada e mergulhou no vaso
de narcisos no meio de botões entreabertos e as hastes verdes. O quarto com a
sacada era a sala de estar e o outro ao lado era a cozinha. Ele ouvia o barulho
da louça que se lavava depois do jantar. Depois a moça se aproximava da janela,
sacudiu o esfregão da louça e o dependurava num prego para secar. Nunca foi
vista soltando os cabelos, cantando ou estendendo os braços para a lua, como fazem
sempre as donzelas. Vestia sempre o mesmo avental escuro, o mesmo lenço cor de
rosa na cabeça. Com quem vivia? Ninguém, senão ela, aparecia naquelas duas
janelas. E, no entanto, ouvia-se que falava continuamente com alguém. Ele imaginou
que a mãe dela estava doente, que as mulheres faziam costura, que o pai tinha
morrido... Tinha sido jornalista, muito pálido, com longos bigodes; uma placa
de cabelos pretos caía-lhe sobre a testa.
Trabalhando
todos os dias, elas tinham continuamente com que viver, mas nunca saíam e não
tinham amigos. Ultimamente, quando Ian se sentava à mesa, tomava nota de uma
longa série de promessas; "Não ir à janela do lado antes de uma certa hora”.
Assinado: Ian French. "Não pensar nela antes de guardar os seus pincéis no
fim do dia". Assinado: Ian French.
Era
bem simples: essa pessoa era a única que ele desejava conhecer, o único ser vivo
do mundo, decerto que tivesse exatamente a sua idade. Não suportava as moças caçoístas
e não sabia o que fazer com as mulheres feitas... ela tinha a sua idade... ela
era... exatamente como ele. Sentado no seu atelier escuro, cansado, um braço caído
sobre o espaldar da cadeira, olhava fixamente para a janela debaixo e se sentia
junto dela. Às vezes brigavam seriamente, pois ela tinha caráter violento, uma
maneira de bater os pés e de torcer as mãos no avental... furiosa! O seu riso,
muito raro, só se ouvia quando contava histórias do seu absurdo gatinho que se
zangava pretendendo ser um leão, quando se lhe dava carne para comer — ou
outras histórias desse gênero... Mas habitualmente estavam juntos, bem
sossegados, ele, sentado como está agora, e a moça, as mãos cruzadas no colo e os
pés para trás. Conversavam baixinho, silenciosos e cansados, depois trabalho diário.
Certamente nunca se cogitava dos seus quadros e ela detestava os seus maravilhosos
retratos feitos por ele, achando que estava muito magra e muito escura... Mas
como chegaria a conhecê-la? Isso poderia durar anos do mesmo jeito...
Ian
descobriu então que uma, vez por semana, à tarde, ela saía para fazer suas compras.
Duas quintas-feiras viu-a à janela, com uma capa fora da moda, carregando um
cesto. Do lugar onde estava, era impossível ver a porta, mas, quinta-feira
seguinte, à mesma hora, tomou o boné e desceu as escadas correndo. Uma luz rósea
envolveu tudo, o rio estava cor de brasa e a gente, que caminhava em sentido
contrário, tinha caras e mãos róseas.
Esperou-a
encostado à parede da casa onde morava sem a menor ideia do que faria ou diria.
"Ela vem vindo!” murmurou-lhe uma voz interior. Ela andava depressa, com
passos curtos, leves; com uma das mãos carregava os cestos, com a outra
segurava a capa... Não havia outra coisa senão segui-la. Ela começou por entrar
no armazém e ali ficou muito tempo, depois no açougue, onde fez cauda esperando
a sua vez. Ficou uma eternidade numa loja, depois comprou um limão num fruteiro.
Quanto mais Ian examinava a moça, mais necessidade tinha de conhecê-la imediatamente.
O seu sangue frio, o seu ar sério, a sua solidão, e até o seu de jeito de
andar, como se tivesse pressa ir para longe daquela gente, tudo parecia a Ian muito
natural, inevitável.
—
Sim, ela é assim, pensou com orgulho. Nós nada temos de comum com essa gente.
A
moça voltava agora para casa e Ian continuava sempre tão longe... Ela voltou-se
bruscamente e entrou na leiteria. Através da vitrina, Ian viu-a comprar um ovo,
escolhê-lo na cesta com tanto cuidado! —
um ovo avermelhado, admiravelmente formado, exatamente o mesmo que ele teria
escolhido. Assim que ela saiu, ele entrou. Um instante depois, continuava a segui-la.
Passaram a casa de Ian, atravessaram o mercado de flores, evitando os enormes
guarda-chuvas, pisando as flores caídas e as marcas redondas deixadas pelos
vasos... Ele foi seguindo de perto,
passou o umbral da porta, subiu pela escada, dando os passos ao mesmo tempo que
a rapariga para não chamar a da atenção. Enfim, ela parou no patamar da escada
e tirou a chave da bolsa. No momento em que a colocava na fechadura, ele saltou
e postou-se diante dela. Corando, mais escalarte do que nunca, disse-lhe com um
olhar duro, quase num tom de raiva:
"Desculpe-me,
mas a senhorita deixou cair isto".
E
apresentou-lhe um ovo.
---
Tradutor desconhecido, in: Revista Vamos Ler!, 29/12/1938 (Desenho
de Jerônymo)Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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