11/12/2018

Fatia de vida (Conto), de Monteiro Lobato



Fatia de vida

Não era homem querido, o doutor Bonifácio Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para ser querido é força pensar como toda gente.

“Toda gente!”

Moloch social cujos mandamentos havemos de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir na pecha de esquisitice.

“É um esquisitão.”

Inútil dizer mais. O homem marcado vê-se logo posto de través e à margem, como o leproso. Torna-se um indesejável. É um suspeito. Haja meio e eliminam-no do grêmio como a um corpo estranho, de malsão convívio.

Assombramo-nos ao recordar os crimes de grupo que enchem a história — Santo Ofício, guerras, matanças religiosas. Transportados à época vemos que o progredir humano não passa da consolidação das vitórias do “esquisitão” sobre “Toda gente”.

“Toda gente” não tolerava dúvidas sobre a fixidez da Terra. Vem um esquisitão e diz: A Terra move-se em redor do Sol. “Toda gente”, por intermédio de seus representantes legais, agarra o velho pelo gasnete e força-o a retratar-se.

— Renega a heresia, infame, ou asso-te já na fogueira!

Galileu baixou a cabeça encanecida e abjurou. E a Terra, que começara a girar em torno ao Sol, teve que mudar de política e imobilizar-se por muito tempo ainda. Hoje roda livremente. O monstro deu-lhe essa liberdade...

Como se vê, apesar da guerra que “Toda gente” move aos esquisitões as ideias destes influenciam e aos poucos transformam a mentalidade do Moloch. No começo o monstro encarcera, esquarteja, empala, sufoca. Depois volta atrás, medita e murmura: “Ele tinha razão!”, e adere com a maior inocência.

“Toda gente” tem hoje a caridade como dogma infalível, e por esse motivo encarou com assombro o doutor Bonifácio quando o esquisitão sorriu a uma frase nédia e lisa do cônego Eusébio. O cônego Eusébio, conspícuo representante legal do Moloch, dissera no tom solene dos que monopolizam a verdade sobre o orbe:

— Não há virtude mais sublime. Só ela tem forças para resolver a questão social. Aquele movimento belíssimo durante a epidemia da gripe em São Paulo — que réplica de escachar o espírito que nega! Todos à urna, governos, matronas, meninas, associações, todos empenhados em lenir o sofrimento dos pobres, como que a derramar Deus nos corações!...

O doutor Bonifácio sorrira e o padre olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do bem-aventurado tempo em que sorrisos assim recebiam a réplica do fogo pio.

— Sorri-se o herege? — interpelou o padre. — Nega até a caridade?

— Não nego — respondeu mansamente o filósofo —, porque não nego nem afirmo coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores, os que se agitam no palco da vida. Eu tenho meu lugar na plateia e, como não represento, observo. E como observo, sorrio — sorrio para não chorar...

— Seja mais claro.

— Serei. Quando o reverendo se abriu em louvores à caridade, não desfiz nessa cristianíssima virtude. Apenas me lembrei de certo drama a que assisti — e, repito, sorri para não chorar...

Depois de breve pausa de interrogativa expectação o doutor Bonifácio principiou.

— Isaura, a minha lavadeira...

As anedotas têm força de ímã. Vários curiosos aproximaram-se e ficaram a ouvir.

— Minha lavadeira, como todas as lavadeiras, era uma pobre mulher de incomparável heroísmo, desse que os épicos não cantam, o Estado não recompensa e ninguém sequer observa. Para mim, entretanto, é a forma nobre por excelência do heroísmo — a luta silenciosa contra a miséria.

— Que esquisitice!

— Porque é heroísmo ininterrupto, sem tréguas — continuou o doutor Bonifácio —, sem momento de repouso e, além disso, sem nenhuma esperança de qualquer espécie de paga.

— Vamos ao caso...

— Viúva com quatro filhos, a heroica Isaura matava-se no trabalho incessante. Aquelas mãos vermelhas e curtidas... Aqueles braços requeimados...

Que máquinas! Era do movimento deles que vinha o sustento da casa. Parassem, repousassem — e a Fome, esquálida megera que ronda os bairros pobres, meter-se-ia portas adentro...

— Romantismo... “Esquálida megera”...

— No primeiro sábado da Grande Gripe, Isaura, minha pontualíssima lavadeira, não me apareceu como de costume com a sua bandeja de roupa lavada. Em lugar dela veio uma vizinha.

“— A Isaura? — perguntei-lhe.

“— Anda às voltas com os filhos. Deu lá a ‘espanhola’ e a pobre está que está numa roda-viva.

“— Hei de ir vê-la, coitada...

“— É caridade, senhor. A pobre é bem capaz de endoidecer...

“Não fui. Impediu-mo a própria gripe, cujos primeiros sintomas nesse mesmo dia comecei a sentir. Passei de molho três semanas e quando me levantei, e me preparava para ir ver Isaura, eis que ela me reaparece em pessoa.

“Em que estado, porém! Envelhecera vinte anos, tinha os cabelos brancos, os olhos no fundo, o ar de uma coisa vencida pelo destino. E tossia.

“— Sente-se e conte-me tudo.

“Sentou-se e, sem derramar uma só lágrima, pois já as chorara todas, narrou-me a sua tragédia.

“Tinha em casa uma filha de dezoito anos, que trabalhava na costura; outra de dezesseis, que a ajudava na lavagem; um filho de quinze, entregador de roupa, e mais uma netinha de seis anos, órfã.

“A gripe apanhou-os a todos e a ela também. Mas a pobre criatura não soube disso, não o notou. Como perceber que estava doente se suas faculdades eram poucas para atentar nos filhos? E lá sarou de pé, sem um remédio. E como ela também sarariam os filhos todos se...”

O doutor Bonifácio voltou-se para o cônego.

—... se a caridade não interviesse...

— Já sei onde quer bater — exclamou o cônego. — Mas cumpre notar que quando falo de caridade não me refiro à assistência pública, nem sequer à filantropia. Falo da caridade sentimento, da caridade virtude cristã — concluiu baforando o cigarro, alegre, com ar de quem cortou vazas.

O doutor Bonifácio prosseguiu:

—... se a caridade sentimento não sobreviesse por intermédio do coração bondoso de uma vizinha. Esta vizinha, compadecida daquele angustioso transe, telefonou a um posto médico narrando o caso e pedindo assistência. A ambulância veio justamente durante a ausência da Isaura, que saíra a compras, e levou-lhe todos os filhos para o Hospital da Imigração.

“Corriam boatos apavorantes a respeito deste hospital improvisado, onde — murmuravam — só se recebiam os pobres bem pobres e o tratamento era o que devia ser, porque pobre bem pobre não é bem gente. De modo que nada apavorava tanto o povinho miúdo como ir para a Imigração.

“Assim, ao voltar da rua e saber do acontecido Isaura estarreceu. Foi como se o próprio inferno houvesse aberto as goelas e engolido os adorados doentes. Quem zelaria por eles? Sozinhas no meio de desconhecidos, de enfermeiros mercenários, que seria das pobres crianças?

“Correu para aqueles lados, inquirindo às tontas: ‘A Imigração? Onde fica a Imigração?’. ‘É por aqui.’ ‘Dobre à direita.’ ‘É lá naquela casa grande’, informavam-na pelo caminho.

“Chegou. Bateu. Esperou à porta um tempo enorme. Entravam e saíam pessoas apressadas, médicos, ajudantes, homens de avental. ‘Não é comigo’, diziam. ‘Espere.’ ‘Bata outra vez.’

“Afinal, uma alma caridosa...”

— Ca-ri-do-sa — repetiu o cônego, sorrindo.

—... uma alma caridosa apareceu e deu-lhe a informação pedida. Os filhos estavam lá, mais a netinha. A de dezesseis anos, porém, atacada de tifo.

“— Tifo?! — exclamou, alanceada, a pobre mãe. “A alma caridosa enterrou mais fundo o punhal: “— Sim, tifo, e do bravo.

“A mulher já não ouvia. De olhos esbugalhados, como fora de si, repetia a esmo a palavra tremenda — ‘Tifo!’ Conhecia-o muito bem. Fora a doença malvada que lhe arrebatara o marido.

“— Quero vê-la, quero ver minha filha!...

“— Impossível! “Isaura lutou, insistiu. “Inútil.

“A porta fechou-se com chave e a pobre mulher se viu despejada na rua. “Andou muito tempo à toa, como ébria, sem destino. ‘Olha a louca!’, gritavam os moleques. E parecia mesmo, se não louca, pelo menos aluada. “Súbito Isaura resolveu-se. Havia de ver os filhos. Era mãe. ‘São meus, o mundo nada tem com eles. Eu os tive, eu os criei, só eu os quero no mundo. São tudo para mim. Como gentes estranhas me roubam assim os filhos, me impedem que eu, mãe, os veja? Nem ver, apenas ver? Oh, isso é demais.’

“Havia de vê-los.

“Galvanizada pela resolução, Isaura correu a implorar socorro de um homem influente cuja roupa lavava.

“O influente deu-lhe uma carta. ‘Vá com isto que as portas se abrem.’ “Nova corrida ao hospital. Nova espera angustiosa. Por fim a mesma alma caridosa...”

O doutor Bonifácio entreparou, olhando para o sacerdote. E, como desta vez ele silenciasse, prosseguiu:

— Por fim a alma caridosa reapareceu e disse à desolada mãe:

“— Posso ir lá dentro saber de seus filhos, mas deixá-la entrar, não! “— E a carta?

“— Inútil. É expressamente proibido.

“— Pois dê-me notícias de meus filhos, então.

“A alma caridosa foi saber dos doentinhos e a triste mãe, embrulhada em seu xale humilde, ficou a um canto, esperando. Minutos depois reaparecia a alma caridosa.

“— Olhe, sua filha morreu.

“— Morr...

“E os olhos da miseranda mãe exorbitaram, seus dedos se crisparam...

“— Morreu!... Mas qual delas?

“— Uma delas.

“— Mas qual? Qual?...

“Já eram gritos lancinantes que lhe saíam da boca. A alma caridosa fechou a porta e sumiu-se...

“O infinito desespero de Isaura nessa noite em casa, a revolver-se na cama, a remorder o travesseiro... ‘Qual? Qual das minhas filhas morreu?...’ A dor requintava-se ante a incerteza. ‘Seria a Inesinha? Seria a Marietinha?’ E o cérebro lhe estalava na ânsia de adivinhar. ‘Qual delas, meu Deus?’

“São dores que a palavra não diz. Imagina-as a imaginação de cada um.

Adiante.

“No outro dia a mulher correu de novo ao hospital. Repete-se a mesma cena — a ansiosa espera de sempre, os pedidos com lágrimas a saltarem dos olhos. O ambiente é o mesmo — de indiferença geral. Só não há indiferença na alma caridosa, que reaparece e pergunta:

“— Que quer de novo, santinha?

“— Meus filhos... saber...

“— Seus filhos? Não estão mais aqui. Foram removidos para o hospital do Isolamento, os dois.

“— Os dois?!...

“— Os dois, sim, porque a mais pequena também morreu.

“— A minha netinha morreu?!...

“— Coragem, minha velha, a vida é isto mesmo.

“E a porta fechou-se pela última vez.”

As três ou quatro pessoas reunidas em torno do doutor Bonifácio ansiavam pelo final da história. “E depois?”, era a sugestão de todos os olhos.

O doutor Bonifácio prosseguiu:

— Depois? Depois a gripe declinou, a normalidade foi se restabelecendo e os dois filhos restantes voltaram à casa materna. Em que estado! O menino, semimorto, cadavérico, e a Inês (só ao vê-la chegar soube Isaura qual das duas morrera) e a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram, destroços de horrível naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a assistência da negra enfermeira — a Fome. Continuaram a viver, sem saber como, por instinto — num desvario, numa alucinação...

“Da última vez que vi a pobre Isaura, disse-me ela, entre dois acessos de tosse:

“— Tudo porque me levaram de casa os filhos. Se ficassem nada lhes teria acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada, quis fazer o bem e fez a nossa desgraça. É um perigo ser muito bom...”

O doutor Bonifácio calou-se. O cônego não achou que fosse caso de comentar. A roda dissolveu-se em silêncio.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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