Não era homem querido, o doutor Bonifácio
Torres. Não era querido pela ponderosa razão de pensar com sua própria cabeça. Para
ser querido é força pensar como toda gente.
“Toda gente!”
Moloch social cujos mandamentos havemos
de seguir de cabecinha baixa, sob pena dos mais engenhosos castigos. Um deles: incidir
na pecha de esquisitice.
“É um esquisitão.”
Inútil dizer mais. O homem marcado
vê-se logo posto de través e à margem, como o leproso. Torna-se um indesejável.
É um suspeito. Haja meio e eliminam-no do grêmio como a um corpo estranho, de malsão
convívio.
Assombramo-nos ao recordar os crimes
de grupo que enchem a história — Santo Ofício, guerras, matanças religiosas. Transportados
à época vemos que o progredir humano não passa da consolidação das vitórias do “esquisitão”
sobre “Toda gente”.
“Toda gente” não tolerava dúvidas
sobre a fixidez da Terra. Vem um esquisitão e diz: A Terra move-se em redor do Sol.
“Toda gente”, por intermédio de seus representantes legais, agarra o velho pelo
gasnete e força-o a retratar-se.
— Renega a heresia, infame, ou asso-te
já na fogueira!
Galileu baixou a cabeça encanecida
e abjurou. E a Terra, que começara a girar em torno ao Sol, teve que mudar de política
e imobilizar-se por muito tempo ainda. Hoje roda livremente. O monstro deu-lhe essa
liberdade...
Como se vê, apesar da guerra que “Toda
gente” move aos esquisitões as ideias destes influenciam e aos poucos transformam
a mentalidade do Moloch. No começo o monstro encarcera, esquarteja, empala, sufoca.
Depois volta atrás, medita e murmura: “Ele tinha razão!”, e adere com a maior inocência.
“Toda gente” tem hoje a caridade como
dogma infalível, e por esse motivo encarou com assombro o doutor Bonifácio quando
o esquisitão sorriu a uma frase nédia e lisa do cônego Eusébio. O cônego Eusébio,
conspícuo representante legal do Moloch, dissera no tom solene dos que monopolizam
a verdade sobre o orbe:
— Não há virtude mais sublime. Só
ela tem forças para resolver a questão social. Aquele movimento belíssimo durante
a epidemia da gripe em São Paulo — que réplica de escachar o espírito que nega!
Todos à urna, governos, matronas, meninas, associações, todos empenhados em lenir
o sofrimento dos pobres, como que a derramar Deus nos corações!...
O doutor Bonifácio sorrira e o padre
olhara-o de revés, com saudades, quem sabe, do bem-aventurado tempo em que sorrisos
assim recebiam a réplica do fogo pio.
— Sorri-se o herege? — interpelou
o padre. — Nega até a caridade?
— Não nego — respondeu mansamente
o filósofo —, porque não nego nem afirmo coisa nenhuma. Negam e afirmam os atores,
os que se agitam no palco da vida. Eu tenho meu lugar na plateia e, como não represento,
observo. E como observo, sorrio — sorrio para não chorar...
— Seja mais claro.
— Serei. Quando o reverendo se abriu
em louvores à caridade, não desfiz nessa cristianíssima virtude. Apenas me lembrei
de certo drama a que assisti — e, repito, sorri para não chorar...
Depois de breve pausa de interrogativa
expectação o doutor Bonifácio principiou.
— Isaura, a minha lavadeira...
As anedotas têm força de ímã. Vários
curiosos aproximaram-se e ficaram a ouvir.
— Minha lavadeira, como todas as lavadeiras,
era uma pobre mulher de incomparável heroísmo, desse que os épicos não cantam, o
Estado não recompensa e ninguém sequer observa. Para mim, entretanto, é a forma
nobre por excelência do heroísmo — a luta silenciosa contra a miséria.
— Que esquisitice!
— Porque é heroísmo ininterrupto,
sem tréguas — continuou o doutor Bonifácio —, sem momento de repouso e, além disso,
sem nenhuma esperança de qualquer espécie de paga.
— Vamos ao caso...
— Viúva com quatro filhos, a heroica
Isaura matava-se no trabalho incessante. Aquelas mãos vermelhas e curtidas... Aqueles
braços requeimados...
Que máquinas! Era do movimento deles
que vinha o sustento da casa. Parassem, repousassem — e a Fome, esquálida megera
que ronda os bairros pobres, meter-se-ia portas adentro...
— Romantismo... “Esquálida megera”...
— No primeiro sábado da Grande Gripe,
Isaura, minha pontualíssima lavadeira, não me apareceu como de costume com a sua
bandeja de roupa lavada. Em lugar dela veio uma vizinha.
“— A Isaura? — perguntei-lhe.
“— Anda às voltas com os filhos. Deu
lá a ‘espanhola’ e a pobre está que está numa roda-viva.
“— Hei de ir vê-la, coitada...
“— É caridade, senhor. A pobre é bem
capaz de endoidecer...
“Não fui. Impediu-mo a própria gripe,
cujos primeiros sintomas nesse mesmo dia comecei a sentir. Passei de molho três
semanas e quando me levantei, e me preparava para ir ver Isaura, eis que ela me
reaparece em pessoa.
“Em que estado, porém! Envelhecera
vinte anos, tinha os cabelos brancos, os olhos no fundo, o ar de uma coisa vencida
pelo destino. E tossia.
“— Sente-se e conte-me tudo.
“Sentou-se e, sem derramar uma só
lágrima, pois já as chorara todas, narrou-me a sua tragédia.
“Tinha em casa uma filha de dezoito
anos, que trabalhava na costura; outra de dezesseis, que a ajudava na lavagem; um
filho de quinze, entregador de roupa, e mais uma netinha de seis anos, órfã.
“A gripe apanhou-os a todos e a ela
também. Mas a pobre criatura não soube disso, não o notou. Como perceber que estava
doente se suas faculdades eram poucas para atentar nos filhos? E lá sarou de pé,
sem um remédio. E como ela também sarariam os filhos todos se...”
O doutor Bonifácio voltou-se para
o cônego.
—... se a caridade não interviesse...
— Já sei onde quer bater — exclamou
o cônego. — Mas cumpre notar que quando falo de caridade não me refiro à assistência
pública, nem sequer à filantropia. Falo da caridade sentimento, da caridade virtude
cristã — concluiu baforando o cigarro, alegre, com ar de quem cortou vazas.
O doutor Bonifácio prosseguiu:
—... se a caridade sentimento não
sobreviesse por intermédio do coração bondoso de uma vizinha. Esta vizinha, compadecida
daquele angustioso transe, telefonou a um posto médico narrando o caso e pedindo
assistência. A ambulância veio justamente durante a ausência da Isaura, que saíra
a compras, e levou-lhe todos os filhos para o Hospital da Imigração.
“Corriam boatos apavorantes a respeito
deste hospital improvisado, onde — murmuravam — só se recebiam os pobres bem pobres
e o tratamento era o que devia ser, porque pobre bem pobre não é bem gente. De modo
que nada apavorava tanto o povinho miúdo como ir para a Imigração.
“Assim, ao voltar da rua e saber do
acontecido Isaura estarreceu. Foi como se o próprio inferno houvesse aberto as goelas
e engolido os adorados doentes. Quem zelaria por eles? Sozinhas no meio de desconhecidos,
de enfermeiros mercenários, que seria das pobres crianças?
“Correu para aqueles lados, inquirindo
às tontas: ‘A Imigração? Onde fica a Imigração?’. ‘É por aqui.’ ‘Dobre à direita.’
‘É lá naquela casa grande’, informavam-na pelo caminho.
“Chegou. Bateu. Esperou à porta um
tempo enorme. Entravam e saíam pessoas apressadas, médicos, ajudantes, homens de
avental. ‘Não é comigo’, diziam. ‘Espere.’ ‘Bata outra vez.’
“Afinal, uma alma caridosa...”
— Ca-ri-do-sa — repetiu o cônego,
sorrindo.
—... uma alma caridosa apareceu e
deu-lhe a informação pedida. Os filhos estavam lá, mais a netinha. A de dezesseis
anos, porém, atacada de tifo.
“— Tifo?! — exclamou, alanceada, a
pobre mãe. “A alma caridosa enterrou mais fundo o punhal: “— Sim, tifo, e do bravo.
“A mulher já não ouvia. De olhos esbugalhados,
como fora de si, repetia a esmo a palavra tremenda — ‘Tifo!’ Conhecia-o muito bem.
Fora a doença malvada que lhe arrebatara o marido.
“— Quero vê-la, quero ver minha filha!...
“— Impossível! “Isaura lutou, insistiu.
“Inútil.
“A porta fechou-se com chave e a pobre
mulher se viu despejada na rua. “Andou muito tempo à toa, como ébria, sem destino.
‘Olha a louca!’, gritavam os moleques. E parecia mesmo, se não louca, pelo menos
aluada. “Súbito Isaura resolveu-se. Havia de ver os filhos. Era mãe. ‘São meus,
o mundo nada tem com eles. Eu os tive, eu os criei, só eu os quero no mundo. São
tudo para mim. Como gentes estranhas me roubam assim os filhos, me impedem que eu,
mãe, os veja? Nem ver, apenas ver? Oh, isso é demais.’
“Havia de vê-los.
“Galvanizada pela resolução, Isaura
correu a implorar socorro de um homem influente cuja roupa lavava.
“O influente deu-lhe uma carta. ‘Vá
com isto que as portas se abrem.’ “Nova corrida ao hospital. Nova espera angustiosa.
Por fim a mesma alma caridosa...”
O doutor Bonifácio entreparou, olhando
para o sacerdote. E, como desta vez ele silenciasse, prosseguiu:
— Por fim a alma caridosa reapareceu
e disse à desolada mãe:
“— Posso ir lá dentro saber de seus
filhos, mas deixá-la entrar, não! “— E a carta?
“— Inútil. É expressamente proibido.
“— Pois dê-me notícias de meus filhos,
então.
“A alma caridosa foi saber dos doentinhos
e a triste mãe, embrulhada em seu xale humilde, ficou a um canto, esperando. Minutos
depois reaparecia a alma caridosa.
“— Olhe, sua filha morreu.
“— Morr...
“E os olhos da miseranda mãe exorbitaram,
seus dedos se crisparam...
“— Morreu!... Mas qual delas?
“— Uma delas.
“— Mas qual? Qual?...
“Já eram gritos lancinantes que lhe
saíam da boca. A alma caridosa fechou a porta e sumiu-se...
“O infinito desespero de Isaura nessa
noite em casa, a revolver-se na cama, a remorder o travesseiro... ‘Qual? Qual das
minhas filhas morreu?...’ A dor requintava-se ante a incerteza. ‘Seria a Inesinha?
Seria a Marietinha?’ E o cérebro lhe estalava na ânsia de adivinhar. ‘Qual delas,
meu Deus?’
“São dores que a palavra não diz.
Imagina-as a imaginação de cada um.
Adiante.
“No outro dia a mulher correu de novo
ao hospital. Repete-se a mesma cena — a ansiosa espera de sempre, os pedidos com
lágrimas a saltarem dos olhos. O ambiente é o mesmo — de indiferença geral. Só não
há indiferença na alma caridosa, que reaparece e pergunta:
“— Que quer de novo, santinha?
“— Meus filhos... saber...
“— Seus filhos? Não estão mais aqui.
Foram removidos para o hospital do Isolamento, os dois.
“— Os dois?!...
“— Os dois, sim, porque a mais pequena
também morreu.
“— A minha netinha morreu?!...
“— Coragem, minha velha, a vida é
isto mesmo.
“E a porta fechou-se pela última vez.”
As três ou quatro pessoas reunidas
em torno do doutor Bonifácio ansiavam pelo final da história. “E depois?”, era a
sugestão de todos os olhos.
O doutor Bonifácio prosseguiu:
— Depois? Depois a gripe declinou,
a normalidade foi se restabelecendo e os dois filhos restantes voltaram à casa materna.
Em que estado! O menino, semimorto, cadavérico, e a Inês (só ao vê-la chegar soube
Isaura qual das duas morrera) e a Inês com uma tosse de tuberculosa. E ali ficaram,
destroços de horrível naufrágio, aqueles três miseráveis molambos de vida, sob a
assistência da negra enfermeira — a Fome. Continuaram a viver, sem saber como, por
instinto — num desvario, numa alucinação...
“Da última vez que vi a pobre Isaura,
disse-me ela, entre dois acessos de tosse:
“— Tudo porque me levaram de casa
os filhos. Se ficassem nada lhes teria acontecido. A nossa vizinha, tão boa, coitada,
quis fazer o bem e fez a nossa desgraça. É um perigo ser muito bom...”
O doutor Bonifácio calou-se. O cônego
não achou que fosse caso de comentar. A roda dissolveu-se em silêncio.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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