Euforia
Embora
Berta Young tivesse trinta anos, tinha ainda desses momentos em que se quer
correr em vez de andar, sair dançando pelas calçadas, atirar um arco, jogar
qualquer coisa no ar e tornar a pegá-la, ou ficar quieta e rir — de nada — de
nada, simplesmente.
Que
se pode fazer quando se tem trinta anos e, ao dobrar a esquina da rua, se é
vencida, subitamente, por um sentimento de euforia — euforia absoluta! — como
se se tivesse engolido de repente um brilhante pedaço do sol da tarde e ele
ardesse dentro do peito da gente, mandando para fora um pequeno chuveiro de faíscas
em cada partícula, em cada dedo dos pés ou das mãos?
Oh,
haverá um meio de exprimir essa sensação, fora do "bêbado e
desordenado"? Como é idiota a civilização! Para que dar-nos um corpo se
temos que conservá-lo fechado num estojo como um violino muito raro?
—
Não, violino não é bem o que eu quero dizer, pensou ela, subindo os degraus e
remexendo na bolsa à procura da chave — esquecera-a, como sempre — e batendo na
caixa do correio. — Não é o que eu quero dizer, porque... — Obrigado, Maria —
entrou no vestíbulo. A ama já voltou?
—
Sim, senhora.
—
E as frutas vieram?
—
Sim, senhora. Veio tudo.
—
Traga as frutas para a sala de jantar, está bem?
—
Vou arrumá-la antes de subir.
Estava
escuro na sala de jantar e um tanto frio. Mesmo assim, Berta tirou o capote;
não podia suportá-lo, pois apertava-a, e o ar frio caiu-lhe nos braços.
Mas
conservava ainda no peito aquele ponto brilhante — e o chuveiro de faiscazinhas
que dele saíam. Era quase insuportável; quase nem ousava respirar com receio de,
abanando-o, aumentá-lo; no entanto, respirou fundo, fundo. Quase nem ousava
olhar-se no espelho frio — mas olhou, e ele lhe devolveu a imagem de mulher
radiante, de lábios trêmulos e sorridentes, olhos grandes e escuros e um ar de
quem escuta, à espera de alguma coisa... uma coisa divina que vai acontecer...
que se sabe que deve acontecer... infalivelmente.
Maria
trouxe as frutas numa bandeja, uma tigela de vidro e um prato azul, lindo, com
estranho brilho, como se tivesse sido mergulhado no leite.
—
Devo acender a luz, Madame?
—
Não, obrigada. Vejo muito bem.
Havia
tangerinas e maçãs com molho cor-de-rosa, de morangos. Algumas peras amarelas,
macias como seda, algumas uvas cobertas de florescências prateadas e um grande
cacho de uvas vermelhas. Estas últimas ela comprara a fim de combinar com o
novo tapete vermelho da sala. Sim, isso até parecia absurdo, mas fora por esse
motivo que as comprara. Pensara, na quitanda: — Preciso de umas bem vermelhas
para fazer com que o tapete suba até a mesa. — E, naquele momento isso lhe pareceu
bastante razoável.
Após
ter feito duas pirâmides dessas fulgentes formas redondas, afastou-se da mesa
para aquilatar o efeito — e na verdade era dos mais curiosos. Pois que a mesa escura
parecia derreter-se na luz penumbrosa e o prato de vidro e tigela azul pareciam
vogar no espaço. Isso, no seu estado de espírito, é claro, era tão incrivelmente
belo... Começou a rir.
—
Não, não. Estou ficando histérica. — E tomou da bolsa e do capote e subiu as
escadas depressa, para o quarto da filha.
A
ama escaca sentada a uma mesinha pequenina dando à Bezinha o seu jantar, depois
do banho. A criancinha trazia um vestido branco de flanela e um casaquinho de
lá azul, e o seu belo cabelo escuro estava preso no alto da cabeça. Ergueu os olhos
à entrada da mãe e pôs-se a dar saltinhos.
—
Vamos, queridinha, coma como uma mocinha, — disse a Ama, movimentando os lábios
de um modo que Berta bem conhecia, e que significava que ela entrara no quarto
da menina em má hora.
—
Ela se comportou bem, Babá?
—
Foi um amor a tarde inteira, murmurou Babá. Fomos ao parque e eu fiquei sentada
numa cadeira, tirei-a do carrinho, veio um cachorro enorme e pôs a cabeça no
meu joelho; e eia segurou nas orelhas dele e acariciou-o. Oh, a senhora
precisava ver.
Berta
quis perguntar se não era perigoso deixar a menina acariciar um cachorro
desconhecido. Mas não ousou. Ficou-se a olhá-las, com as mãos caídas, como a
meninazinha pobre diante da meninazinha rica que tem a boneca.
A
criancinha tornou a olhar para ela e sorriu de modo tão encantador que Berta não
pôde deixar de exclamar:
—
Oh, Babá, deixe que eu acabo de dar o jantar a ela enquanto você vai recolher
as coisas do banho.
—
Bem, Madame, não se deva trocar de mão enquanto ela está comendo, disse Babá,
ainda em murmúrio. — Isso a põe nervosa; tenho a certeza. — Que absurdo! Por
que ter uma filha se ela tem que ser conservada não num estojo como um violino
muito raro — mas nos braços de outra mulher?
—Oh,
não: disse ela.
Muito
ofendida, Babá entregou- lhe a menina.
—
Agora, não vá excitá-la depois da refeição. A senhora sabe que a excita,
Madame. E depois eu é que tenho o trabalho de acalmá-la!
—
Graças a Deus! Babá saiu do quarto com as toalhas de banho. — Agora tenho você
só para mim, minha preciosidadezinha, — disse Berta, e a criança atirou-se para
ela.
Comeu
com delícias, estendendo os labiozinhos para a colher e agitando as mãozinhas.
Algumas vezes não deixava a colher sair; e, de outras, quando Berta tinha acabado
de enchê-la, jogava-lhe o conteúdo longe, aos quatro ventos. Quando a sopa
terminou, Berta foi para a lareira.
—
Você é um encanto, um verdadeiro encanto disse, beijando a meiga filhinha. Eu
adoro você.
E,
na verdade, adorava tanto a sua Bezinha — o pescocinho dela, quando ela o
esticava para a frente, os dedinhos do pé, tão delicados, parecendo
transparentes à luz do fogo — que toda aquela sua sensação de euforia lhe
voltou, e novamente não soube como exprimi-la — e que fazer dela.
—
Estão chamando a senhora ao telefone, disse Babá, voltando triunfante e agarrando
a "sua" Bezinha.
Correu
para baixo. Era Harry. — Oh, é você, Ber? Olha aqui, vou chegar atrasado.
Tomarei um táxi e correrei o mais que puder, mas atrase o jantar de uns dez
minutos, está bem? Combinado?
—
Está bem, sim, oh Harry!
—
Que é que há?
Que
tinha a dizer? Nada. Queria apenas entrar em contato com ele, por um momento.
Não podia gritar absurdamente: — Não achou divino o dia de hoje?
—
Mas que é que há? insistiu a voz do marido.
—
Nada. Está combinado, disse Berta, e desligou o aparelho, pensando no quanto a
civilização era mais que simplesmente estúpida.
***
Tinham
visitas para jantar. Os Norman Knights — um casal muito simpático — ele ia
abrir um teatro, e ela entendia muito de decoração de casas, — um rapaz, Eddie
Warren, que acabara de publicar um livro de versos e que todo mundo convidava
para jantar, e uma "descoberta" de Berta, chamada Pérola Fulton. O
que Miss Fulton fazia, a própria Berta não sabia. Tinham-se conhecido no clube
e Berta apaixonara-se por ela, como sempre o fazia com as mulheres bonitas que
tinham qualquer coisa de estranho.
O
ponto mais provocante do caso é que, embora tivessem estado juntas e se
tivessem encontrado inúmeras vezes e conversado muito, Berta ainda não sabia
bem como classificá-la. Até certo ponto, Miss Fulton era extraordinária e
maravilhosamente franca, mas a questão era esse ponto, para além do qual ela
não oferecia acesso.
Haveria
alguma coisa para além desse ponto? dissera Harry. — Não. Ele achara-a pesadona
e fria "como todas as mulheres loires, talvez ligeiramente atacada de
anemia cerebral." Mas Berta não concordara com ele; de modo nenhum.
—
Não, aquele modo que ela tem de se sentar com a cabeça um pouco de lado e
sorrir, há qualquer coisa por detrás daquilo, Harry, e eu preciso descobrir o
que é.
—
O mais provável é que seja um bom estômago, respondeu Harry.
Ele
insistia em responder aos comentários de Berta assim... "passa mal do fígado,
meu bem..." ou "deverá ser gases" ou “está com o fígado
podre" e daí ror diante. Por algum motivo estranho, Berta gostava destas observações,
e quase o admirava mais por isso.
Foi
até a sala de visitas e acendeu o fogo; depois, recolhendo as almofadas uma a
uma, que Maria dispusera com tanto cuidado, atirou-as de novo nas cadeiras e nos
sofás. Que diferença! a sala pareceu viva, depois disso. Ao atirar a última
surpreendeu-se acariciando-a de repente, apaixonadamente, apaixonadamente. Mas
isso não esmoreceu o fogo que trazia no peito. Oh, ao contrário!
As
janelas da sala de visitas davam para um terraço que dominava o jardim. Na
extremidade, afastada, junto ao muro, havia uma pereira alta toda cheia de
flores; ali estava, perfeita, serena de encontro ao céu verde-jade. Berta não
pôde deixar de observar, mesmo à distância, que ela não tinha um único broto ou
pétala murcha. Mais para baixo, nos canteiros do jardim, as tulipas vermelhas e
amarelas, carregadas de flores, pareciam curvar-se ao crepúsculo. Um gato
cinzento, arrastando a barriga, passou pelo gramado, e um outro, preto, como
sombra acompanhou-o. A visão de ambos, tão intensa e rápida, deu a Berta um
curioso arrepio.
—
Como os gatos rastejam: observou ela, e saiu da janela e pôs-se a andar dum
lado para o outro.
Como
os junquilhos perfumavam a sala quente! Demais? Oh, não! E então, como
subjugada, atirou-se a um sofá e apertou os olhos com as mãos.
—
Estou feliz demais... demais! murmurou.
E
pareceu-lhe ainda ver a adorável pereira com as suas largas flores abertas como
um símbolo de sua própria vida.
Na
verdade... na verdade... ela tinha tudo. Era moça. Harry e ela continuavam
amando-se como sempre, viviam esplendidamente e eram ótimos companheiros. Tinham
uma filhinha adorável. Não precisavam preocupar-se em matéria de finanças. Possuíam
aquela casa e aquele jardim inteiramente satisfatórios. E amigos — modernos,
empolgantes, escritores, pintores, poetas, gente entendida em questões sociais —
o tipo dos amigos de que eles gostavam. E havia livros, e música, e ela
descobrira uma costureirazinha maravilhosa, e iam para fora no verão, e a sua
nova cozinheira fazia as omeletes mais formidáveis...
—
Estou absurda. Absurda! Levantou-se; mas sentiu-se estonteada, inteiramente
bêbada. Devia ser a primavera.
Sim,
era a primavera. Agora sentia-se tão cansada que não aguentava arrastar-se
pelas escadas para ir vestir-se.
Um
vestido branco, um colar de contas de jade, sapatos verdes e meias. Não era de
propósito. Pensara nesse conjunto horas antes de ficar parada no terraço da sala
de visitas.
As
pétalas do seu vestido roçavam maciamente o chão pelo vestíbulo, ela beijou a Sra.
Norman Knight, que chegara com o mais divertido dos casacos cor de laranja, com
uma procissão de macaquinhos pretos em volta da barra e na frente.
Por
quê? por quê? por que será que a classe média é tão Indigesta — tão — altamente
desprovida de senso de humor? Meu bem, estou aqui mesmo por milagre — milagre
de Norman! Pois os meus macaquinhos agitaram o pessoal do trem e um homem
chegou quase a me comer com os olhos. Não ria, não estava achando graça; se ele
achasse eu não importaria. Não, ficava só olhando, e isso me aborreceu horrivelmente.
—
Mas o melhor de tudo, — disse Norman, ajustando um grande monóculo de aro de
tartaruga no olho, — você não se importa que eu diga, hein. Face? (Em casa e
entre os chamavam-se um ao outro Face e Mug). O melhor de tudo foi quando ela,
sem aguentar mais, voltou-se para a mulher que ia ao lado e disse: Nunca viram
um macaco antes?
—
É, sim, — e a Sra. Norman Knight juntou-se à risada geral. — Não foi mesmo
formidável?
Porém
ainda mais formidável era o fato de que, agora que ela tirara o casaco, parecia
igualzinha a um macaco muito inteligente — como se aquele vestido de seda
amarela fosse feito de cascas de bananas. E os seus brincos de âmbar pareciam
nozes penduradas.
A
campainha tocou. Era o magro e pálido Eddie Warren (como de hábito), em estado
de agudo desespero.
—
É aqui, mesmo a sua casa, certo?
—
Oh, acho que sim, espero que seja, disse Berta sorrindo.
Tive
uma experiência tão pavorosa com um chofer de táxi! Ele era o tipo sinistro!
Não conseguia fazê-lo parar. Quanto mais eu batia e chamava, mais ele corria. E
aquela bizarra figura de cabeça chata abaixada sobre o volante...
Estremeceu,
tirando uma imensa “echarpe” de seda branca. Berta observou que as suas meias também
eram brancas, encantadoras, aliás.
—
Mas que horror! exclamou ela.
—
Foi mesmo, um horror! disse Eddie, acompanhando-a à sala de visitas. Vi-me
viajando para a Eternidade num táxi fora do tempo.
Ele
conhecia os Norman Knight. Ia até escrever uma comédia para N. K., na ocasião em
que se tratou da aberto teatro.
—
Então, Warren, que é da peça? disse Norman Knight, deixando cair o monóculo.
E
a Sra. Norman Knight: — Oh, Mr. Warren! que melas lindas!
—
Que bom que a senhora gostou delas! disse ele, olhando os próprios pés. — Estão
parecendo muito mais brancas, depois que a lua apareceu! — E voltou o rosto
magro, triste e jovem para Berta. — A senhora sabe, hoje temos lua.
Ela
desejou exclamar: — Estou certa de que temos, sim, sempre, sempre!
Ele
era mesmo um homem encantador. Mas Face também era encantadora, curvada sobre o
fogo com o vestido cor de banana, e Mug também era, fumando um cigarro e dizendo,
enquanto batia a cinza com o dedo: — Por que será que o noivo está demorando?
—
Ei-lo que chega.
Bum,
e a porta da frente abriu-se e fechou-se. Harry gritou: — Alô, pessoal! Desço
em cinco minutos. — E ouviram-no subindo as escadas. Berta não pôde deixar de
sorrir: sabia quanto ele gostava de fazer as coisas a toda velocidade. Que
importava, afinal, uma diferença de cinco minutos a mais? Mas ele afirmaria que
aquilo tinha uma importância enorme. E faria questão de entrar na sala de
visitas, extravagantemente frio e calmo.
Harry
tinha tanto gosto pela vida! Oh, como ela apreciava isso nele! E a sua paixão
pela luta — procurando sempre em tudo que lhe acontecia de adverso outro teste
de seu poder e de sua coragem — aquilo ela também compreendia. Mesmo quando
isso o tornava, aos olhos de quem não o conhecia bem, um tanto ridículo. talvez...
Pois que havia momentos em que ele entrava em luta onde não havia luta de
todo... Ela conversou e riu, e positivamente esqueceu-se, até o momento em que ele
entrou, que Pérola Fulton não tinha ainda aparecido.
—
Quem sabe se Miss Fulton se esqueceu?
—
Espero que tenha esquecido, disse Harry. Não telefonou?
—
Ah! está chegando um táxi agora. — E Berta sorriu com aquele arzinho de
proprietária que assumia enquanto as suas "descobertas femininas"
eram novas e misteriosas. — Ela vive em táxis.
—
Ficará muito gorda se continuar, — disse Harry friamente, tocando a sineta para
o jantar. — Isso é um perigo para mulheres loiras.
—
Harry, não faça isso... avisou Berta, rindo.
Outro
momento pequenino, em que eles esperaram, rindo e conversando, à vontade demais,
desprevenidos demais... E então Miss Fulton, toda de prata, com uma rede de
prata prendendo-lhe os cabelos de um loiro pálido, entrou sorrindo, com a cabeça
um pouco de lado.
—
Estou atrasada?
—
Não, absolutamente, — disse Berta. Venha! — Tomou-lhe do braço e foram para a
sala de jantar.
Que
havia naquele contato daquele braço fresco que parecia abanar, abanar, e
aumentar o calor, aumentar o calor, daquele fogo de euforia com o qual Berta
não sabia o que fazer?
Miss
Fulton não olhava para ela; mas é verdade que ela raramente olhava para as
pessoas diretamente. As pesadas pálpebras caíam-lhe sobre os olhos, e o
estranho meio-sorriso vinha e ia de seus lábios, como se ela vivesse ouvindo
mais do que vendo. Mas Berta sentiu, de repente como se o mais longo e mais
íntimo dos olhares tivesse sido trocado entre elas, como se uma tivesse dito à
outra: Você também? que Pérola Fulton enquanto agitava a bela sopa vermelha no
prato cinzento, estava sentindo exatamente o mesmo que ela.
E
os outros? Face e Mug, Eddie e Harry, as colheres subindo e descendo, encostando
de leve os guardanapos nos lábios, fracionando o pão, tocando de leve nos
garfos e copos e conversando.
—
Encontrei-a no show Alfa, aquele diabinho! Ela não só cortou o cabelo, como
também parece ter cortado uma boa parte das pernas, dos braços, do pescoço e do
pobre narizinho também.
—
Ela não está muito ligada a Miguel Oat?
—
O homem que escreveu "Amor com dentes postiços"?
—
Ele quer escrever uma peça para mim. Um ato. Um homem. Resolve cometer
suicídio. Explica todas as razões porque devia e porque não devia suicidar-se.
E bem no momento em que ele resolve se deve ou não — cai o pano. A ideia não é
má.
—
Como vai chamar a peça: Perturbação de estômago?
—
Acho que encontrei ideia semelhante a essa numa revistazinha francesa,
desconhecida na Inglaterra.
Não,
eles não compartilhavam com ela. Eram uns amores, uns amores, e ela adorava tê-los
ali, na mesa, dando-lhes comida e vinho deliciosos. Ansiava por poder
dizer-lhes o quanto eram adoráveis, e que grupo decorativo compunham, como
combinavam bem uns com os outros e como lhe lembravam uma peça de Tchekhov!
Harry
estava gostando do jantar. Era bem dele, aquilo de falar sobre comida e exaltar
a sua "paixão sem-vergonha pela carne branca da lagos ta" e "pelo
verde dos sorvetes de pistache, — verdes e frios como as pálpebras das
dançarinas egípcias".
Quando
olhou para ela e disse: Berta, este suflê está admirável! ela quase chorou de
prazer como uma criança.
Oh,
porque se sentia nessa noite tão terna para com todo mundo? Tudo era bom e
estava certo. Tudo o que acontecia parecia encher ainda mais a sua taça
transbordante de felicidade.
E
no fundo do pensamento estava-lhe aquela pereira. Estaria agora prateada, sob a
luz da lua daquele querido Eddie, prateada como Miss Fulton, que ali estava
sentada girando uma tangerina nos dedos compridos, tão pálidos que pareciam
emanar claridade.
O
que ela não conseguia compreender — e que era milagroso — era como podia
adivinhar o estado de espírito de Miss Fulton tão exata e instantaneamente.
Pois nem por um momento duvidou de que estivesse certa a esse respeito, e em
que se baseava? Um menos que nada.
—
Acredito que isso aconteça muito, muito raramente entre mulheres. Nunca entre
homens, — pensou Berta. — Enquanto estiver fazendo o café na sala de visitas,
talvez ela "dê a sinal”.
O
que queria dizer com isso ela mesma não sabia, e o que podia acontecer depois
disso não podia imaginar.
Enquanto
pensava assim viu-se conversando e rindo. Precisava falar porque estava louca
de vontade de rir.
—
Preciso ou rir ou morrer.
Mas
quando notou o curioso habitozinho de Face, de puxar o vestido na frente, no
corpete, como se guardasse ali uma secreta provisão de nozes, Berta teve que
enterrar as unhas nas mãos para não ri demais.
Tinha
acabado, afinal. — Venham ver agora a minha nova máquina de fazer café, disse
Berta.
—
Nós só temos uma nova máquina de fazer café uma vez em quinze dias, disse
Harry. Face tomou do braço de Berta, dessa vez; Miss Fulton curvou a cabeça e
acompanhou-as.
O fogo abatera-se na sala de visitas, até o ponto de tornar-se "um ninho de pequeninos fênix”, vermelho e brilhante, como disse Face.
—
Não acenda a luz já. Está tão bom assim. — E abaixou-se novamente sobre o fogo.
Estava sempre fria... sem o seu casaquinho de flanela vermelha, é claro, pensou
Berta.
Nesse
momento Miss Fulton "deu o sinal”.
—
Você tem Jardim? disse a voz fria e sonolenta.
Era
dito de uma maneira tão fina que tudo o que Berta podia fazer era obedecer-lhe.
Atravessou a sala, afastou as cortinas, e abriu as compridas janelas.
—
Veja! murmurou.
E
as duas mulheres ficaram em pé uma junto da outra, olhando para a árvore delgada
e florida, que, embora permanecesse tão tranquila, parecia, como a chama de uma
vela, estirar-se para o alto, apontar, estremecer no ar brilhante, crescer cada
vez mais enquanto elas a olhavam — quase a tocar o bordo da lua redonda e
prateada.
Quanto
tempo ficaram ali? Ambas presas naquele círculo de luz sobrenatural,
entendendo-se perfeitamente, criaturas de um outro mundo, imaginando o que
deviam fazer neste com todo esse tesouro eufórico que lhes queimava o peito e
lhes caía, em flores douradas, de seus cabelos e de suas mãos?
Para
sempre — por momento? E Miss Fulton murmurou: — Sim. É bem "isso".
Ou
será que Berta sonhou?
Então
acenderam a luz e Face fez o café, e Harry disse:
—
Minha cara Mrs. Knight, não me faça perguntas acerca da minha filha. Nunca a
vejo. Não me interesso nem um pouco por ela, até o momento em que ela tenha um
amante. — E Mug retirou por um momento os olhos da estufa para plantas,
repondo-os sob os óculos, e Eddie Warren tomou o café e depôs a xícara com uma
expressão de angústia.
—
O que eu quero é dar ao rapaz um espetáculo. Londres está cheia de peças
novinhas em folha, ainda não escritas. O que eu quero dizer a eles é: Isto é
teatro. Teatro à vista!
—
Você sabe, meu caro, vou decorar uma sala para Jacob Nathans. Oh, estou tão
tentada a fazer um esquema tipo peixe-frito, com os espaldares das cadeiras em
forma de frigideiras e adoráveis batatas, muito chiques, bordadas nas cortinas.
—
O mal dos nossos jovens escritores é que eles ainda são muito românticos. Não se
pode viajar por mar sem sentir enjoo e precisar de uma bacia. Por que é que eles
não têm a coragem dessas bacias?
—
Um poema terrível, de uma moça violada por um mendigo sem nariz, num
bosquezinho...
Miss
Fulton afundou na poltrona mais baixa e mais funda e Harry ofereceu cigarros a
todos. Pela maneira com que ele parou em frente dela sacudindo a caixinha de prata
e dizendo asperamente: "Egípcios? turcos? da Virgínia? Estão todos
misturados". Berta compreendeu que Miss Fulton hão só o aborrecia, mas que
ele não gostava positivamente dela. E pelo modo com que Miss Fulton disse:
"Não, Obrigada, não fumo", decidiu que ela compreendeu isso e ficou
ofendida.
—
Oh, Harry, por que não gosta dela? Você não tem razão. Ela é uma maravilha, uma
maravilha. Além disso, como é que você pode deixar de gostar de uma pessoa que
para mim significa tanta coisa? Vou tentar, logo mais, quando estivermos
deitados, explicar-lhe o que está acontecendo. Aquilo de que ela e eu
compartilhamos.
A
essas últimas palavras algo de estranho e quase aterrorizador surgiu no cérebro
de Berta. E essa coisa cega e sorridente murmurou-lhe: Dentro em pouco toda
essa gente vai embora. A casa ficará quieta, quieta. As luzes estarão apagadas.
E você e ele ficarão sozinhos, juntos, no quarto às escuras, a cama quente...
Ergueu-se
da poltrona e correu para o piano.
—
Que pena que ninguém toque! exclamou. Que pena que ninguém toque!
Pela
primeira vez de sua vida Berta Young desejou seu marido.
Oh,
amava-o, tinha-o amado, sem dúvida, de todas as outras maneiras, mas daquele
modo não. Sempre compreendera que ele era diferente. Discutiram isso tantas vezes.
A princípio ela ficara apavorada verificando que era tão fria, mas depois
aquilo pareceu não ter importância. Eram tão francos um com o outro, tão bons
companheiros. E isso é que havia de bom em ser um casal moderno.
Mas
agora, ardentemente! ardentemente! A palavra doía-lhe no corpo ardente! Era a
isso o que aquela sensação de euforia a tinha levado? Mas então...
—
Minha querida, disse Mrs. Norman Knight, você sabe bem qual é a nossa vergonha.
Somos as vítimas do tempo e do trem. Moramos em Hampstead. A noite foi ótima.
—
Vou acompanhá-los até o vestíbulo, disse Berta. Foi ótimo vocês terem vindo.
Mas não devem perder o último trem. Que horror, não é mesmo?
—
Quer mais um uísque, Knight, antes de ir? perguntou Harry.
—
Não, obrigado, meu velho.
Berta
apertou-lhe um pouco a mão, por isso, ao despedir-se dele.
—
Boa noite, adeus — gritou do degrau de cima, sentindo que esse ser que ela
estava vendo despedia-se deles para sempre.
Quando
voltou à sala de visitas, já todos estavam de pé para se retirarem.
—
... Então você pode ir no mesmo táxi conosco.
—
Ficarei muito grato, porque assim não terei que andar de automóvel sozinho,
depois da minha terrível experiência de hoje.
—
Há um ponto de táxis no fim da rua. Vocês não terão que andar muito.
—
Ainda bem. Vou vestir meu casaco.
Miss
Fulton dirigiu-se para o vestíbulo e Berta ia segui-la quando Harry passou-lhe
à frente.
—
Deixe-me ajudá-la, Miss Fulton.
Berta
sabia que ele devia estar arrependido pela sua rispidez, e deixou-o ir. Era um
verdadeiro menino, tão impulsivo, tão simples...
Eddie
e ela ficaram junto ao fogo.
—
Você já leu o novo poema de Bilks, chamado "Mesa de hóspede"? disse
Eddie com o seu tom macio. É formidável! Está na última Antologia. Você tem? Gostaria tanto de mostrar-lhe! Começa com um
verso incrivelmente belo: "Por que há de ser sempre sopa de tomate"?
—
Sim, disse Berta. E caminhou silenciosamente para uma mesa junto à porta da
sala de visitas e Eddie deslizou também silenciosamente atrás dela. Tomou do
livro e deu-Iho: tudo sem dizerem uma palavra.
Enquanto
ele erguia o livro nas mãos, ela virou a cabeça para o vestíbulo. E viu... Harry
com o casaco de Miss Fulton nos braços e Miss Fulton de costas voltadas para ele
e com a cabeça curvada. Ele empurrou o casaco, pôs as mãos nos ombros dela e
fê-la voltar-se violentamente. "Adoro-a", diziam seus lábios, e Miss
Fulton passou-lhe os dedos de luar nas faces e sorriu-lhe aquele seu sorriso
sonolento. As narinas de Harry tremeram; seus lábios encresparam-se em detestável
sorriso, enquanto murmuravam: "Amanhã", e com as pálpebras Miss
Fulton disse: "Está bem."
—
Aqui está, disse Eddie. "Por que há de ser sempre sopa de tomate?" É
uma coisa tão profunda, não acha? Sopa de tomate é tão terrivelmente eterna!
Se
preferir, disse a voz de Harry, muito alto, do vestíbulo, posso chamar um táxi
pelo telefone.
—
Oh, não. Não é preciso, disse Miss Fulton, e veio para Berta e estendeu-lhe os
dedos finos.
—
Adeus. Muito obrigada, hein?
—
Adeus, disse Berta.
Miss
Fulton reteve-lhe a mão por um momento mais longo.
—
A sua encantadora pereira! murmurou.
E
saiu, seguida por Eddie, como o gato preto seguido pelo gato cinzento.
—
Está na hora de fechar o estabelecimento disse Harry, extravagantemente frio e
calmo.
—
A sua encantadora pereira, pereira, pereira!
Berta
correu simplesmente para as janelas compridas.
—
Oh, que será que vai acontecer agora? exclamou.
Mas
a pereira estava encantadora e cheia de flores e tranquila como sempre.
---
Tradução de Lasinha
Revista Fon-Fon, edição de 29/12/1951.
Pesquisa, transcrição e adaptação
ortográfica: Iba Mendes (2018)
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