Um grande amigo dos livros, o estudante
Batista de Ribeiro Couto.
Na sua dolorosa miséria de rapaz pobre,
solto sem padrinhos na voragem carioca, desses bons amigos se socorria para desafogo
da alma crestada ao vento das decepções. Falhava-lhe o sonhado emprego? Abria Dom Casmurro e logo a malícia de Capitu empolgava,
levando-o para casos bem distantes do seu dorido caso pessoal. Traía-o algum amigo?
O moço embarcava para Florença no Lys Rouge, hospedava-se com Miss Bell e, de visita
às igrejas com Dechartre, ei-lo embriagado no ardente amor da condessa.
O estômago, porém, é Sancho. Não digere
contemplações. Exige pão. E a fome, um dia, apresentou ao estudante o seu inexorável
ultimatum: Mata-me ou mato-te.
Um só recurso lhe restava: reduzir
a pão duro os seus amados livros.
Fê-lo, mas com que mágoa! Como vacilou
na escolha da primeira vítima! E como lhe doeu o sórdido negocismo do belchior,
miserável depreciador da “mercadoria” com o fito de obtê-la pelo mínimo!
Era este belchior certo judeu mulato
com um sebo à rua do Catete. Mulato de barbicha irônica, própria para coçadelas
nos momentos de engatilhar o preço. Tinha um jeito irritante de tomar os livros
e ler o título por baixo dos óculos, como se os cheirasse. Tipo desagradável de
múmia ressurreta, em perfeita harmonia com a sordidez da casa.
Que vitrina! Já ali se lhe anunciava
a alma. Livros encardidos, brochuras de cantos surrados, canetas de vintém, lápis
“quebra a ponta”, tinteiros de refugo — tudo desbotado pelo sol e tamisado pela
horrível poeira negra da rua. Dentro, um cheiro de velhice, misto de mofo e ranço
— bafo proveniente metade da múmia, metade das estantes prenhes de brochuras infectas.
Pois foi nas garras de tal aranha
barbada que o pobre contemplativo caiu, e um a um lhe sorvia ela todos os volumes
da amada biblioteca, sempre a ratinhar, a rosnar, a espichar níqueis para o que
valia notas.
Uma vez recebeu o moço más notícias
de casa e instante pedido de uma linda irmãzinha que deixara em Catalão. Era forçoso
servi-la, inda que houvesse de vender a alma ao diabo.
O jeito era um só: negociar em bloco
os livros restantes. Que vá, que vá!
Uma grande dor única é de preferir-se
a mil dorezinhas parceladas. Que vá tudo!
Contou-os. Trezentos. Pelo preço médio
que o judeu lhe pagava por unidade, obteria com aquele sacrifício os duzentos mil-réis
necessários e mais uns bicos. Que vá.
Batista retesou-se de alma, amordaçou
o coração, meteu na carroça os velhos amigos e, como vai para a guilhotina o condenado,
foi com eles para a rua do Catete.
O judeu examinou os volumes um por
um, cheirou-os, sopesou-os e depois de longas manobras, engasgos, meias palavras
e coçadelas da barbicha, abriu a oferta.
— Dou-lhe quarenta mil-réis, moço,
por ser para o senhor. E lamba as unhas, hein?
Tomado de súbita onda de cólera homicida,
o estudante não lambeu as unhas: lambeu-lhe a vida. Estrangulou-o...
Havia eu lido esse formoso conto e
ficara com os tipos gravados em relevo na memória, tanta nitidez dera à pintura
o autor. O judeu mulato, sobretudo, passara a viver dentro de mim em lugar de honra
na “sala de Harpagão”.
Somos todos nós uns museus de tipos
apanhados na rua ou colhidos na literatura. Museus classificados, com salas disto
e daquilo. A minha sala dos usurários encerrava bom número de Shy lockzinhos modernos,
fisgados à porta de cartórios ou diretamente nos antros onde costumam empoleirar-se
como harpias pacientes à espera dos náufragos da vida. Ombro a ombro conviviam eles
com os patriarcas do clã — mestre Harpagão, tio Grandet e o João Antunes, de Camilo
Castelo Branco.
Lida a novela de Couto, entrou para
a sala mais um — o judeu mulato do Catete, tipo de tal vida que uma suspeita breve
me tomou: “Este diabo existe. Não pode ser ficção. Há nele traços que se não inventam.
E se existe, hei de vê-lo”.
E pus-me a procurá-lo em certo dia
de folga.
Fui feliz. Logo adiante do palácio
do Catete certa vitrina atraiu-me a atenção. Acerquei-me dela com cara de Colombo.
Aqueles livros desbotados, aquelas canetas... Tudo exato!
Mas... e aquele coelhinho?...
Sim, havia a mais, na sórdida vitrina,
um coelhinho de lã do tamanho de um punho fechado. Encardido, os olhos de louça
já bambos, as longas orelhas roídas, visivelmente brinquedo já muito brincado.
Aquele coelhinho!
Uma criança existe de quem o usurário
comprou o coelhinho...
Meu Deus! Poderá haver em corpo humano
almas assim?
Shakespeare, Balzac: que fraca imaginação
a vossa! Criastes Shy lock,
Grandet, mas a potência do vosso gênio
não previu este caso extremo. O judeu mulato reabilita os vossos heróis e atinge
a suprema expressão do sórdido.
Furtou o coelhinho à criança...
Furtou-o com a gazua dum níquel...
Privou a pobrezinha do seu único brinquedo,
do seu único amigo, talvez...
Abra-se um parêntesis.
Aqui intervém a imaginação.
Bastou que meus olhos vissem na sórdida
vitrina o coelhinho de lã para que a irrequieta rainha Mab me viesse cabriolar na
cachola.
E todo um drama infantil se me antolhou,
nitidamente.
Era um menino de poucos anos, filho
de pais miseráveis.
O homem bebia e a mãe definhava nas
unhas “da pertinaz moléstia”. Minto: da tísica. “Pertinaz moléstia” é a tísica dos
ricos...
O clássico operário bêbado, em suma,
e a clássica mãe tuberculosa. É sempre assim nos romances e é sempre assim na vida,
essa impiedosa plagiária dos romances.
Reina a miséria na cafua úmida em
que vivem, ele a delirar o seu eterno delírio alcoólico, ela a tossir os pulmões
cavernosos — e a triste criança, sempre de olhos assustados, a criar-se um mundinho
de sonhos para refúgio da almazinha que teima em ser alma.
Só tem um amigo essa criança: o coelhinho
de lã que a mãe lhe deu em certo dia de doença grave.
Excelente quinino! A febre cedeu incontinenti
e dois dias depois o enfermo se punha de pé.
Desde aí ficou sendo o coelhinho o
amigo único da criança triste, seu confidente de todas as horas, seu irmãozinho
mais novo.
Conversavam o dia inteiro, brincavam,
contavam-se mutuamente lindas histórias; e à noite, muito abraçados, dormiam o sono
dos anjos e dos coelhos.
Aquele coelhinho de lã...
É preciso ser Dickens para compreender
o papel dos brinquedos únicos na vida das crianças miseráveis.
O comum dos homens não vê nisso coisa
nenhuma. Triste coisa, o comum dos homens...
Um dia, o pai desapareceu.
Inutilmente a tísica o esperou até
altas horas, e o esperou no dia seguinte, e o esperou a semana inteira.
Desapareceu, e está dito tudo.
Na vida os miseráveis desaparecem,
tal qual nos romances.
Vida, romance; romance, vida: será
tudo um?
A tísica piorou, e certa manhã não
pôde erguer-se da cama.
E a fome veio.
E foi mister vender, hoje isto, amanhã
aquilo, todos os trapos e cacos da mansarda em crise.
A mansarda! Que lindo efeito faz em romance esta palavra lúgubre! A man-sar-da!...
Vendeu-se tudo.
Luizinho era o leva e traz.
Levava o trapo, o caco, e trazia os
níqueis do pão. E assim até que as reservas se esgotaram e a mansarda ficou nua
como Jó.
— E agora?
A tísica lançou os olhos cansados
pelas paredes nuas, pelos cantos nus.
Nada. Só viu o coelhinho. Mas era
um crime sacrificar o coelhinho de lã...
Resistiu ainda algum tempo.
Por fim, disse:
— Vai, meu filho, vai vender o coelhinho
de lã...
A criança relutou, mas cedeu ao cabo
de muitas lágrimas. A fome impunha-lhe aquele sacrifício: trocar o seu tesouro por
um pão.
O que chorou nessa manhã!
Como apertava contra o peito o amiguinho,
sem ânimo de notificá-lo da tragédia iminente!
Resolveu mentir.
— Sabe? — disse ao coelho. — Vou pôr
você numa casa que tem vitrina para a rua. Fica lá sentadinho a ver quem passa,
os bondes, os automóveis tão bonitos! E eu vou todos os dias espiar você através
do vidro. Quer?
O coelhinho não compreendeu aquilo
e desconfiou.
— Mas por quê? Estou tão bem aqui...
Não era fácil iludi-lo; a fome, porém,
é capciosa e Luizinho continuou a mentir:
— É cá uma coisa que sei. Uma pândega!
Por enquanto é segredo. Fica você lá quietinho uns tempos, depois volta para cá
de novo e eu conto a história.
O coelhinho de lã piscou para o menino,
cavorteiramente. Gostava desses mistérios...
Luizinho levou-o ao belchior. Mostrou-o
ao judeu; ofereceu-lho. O aranho tomou o coelhinho entre os dedos rapinantes, examinou-o,
apalpou-o, cheirou-o e abrindo a gaveta suja tirou de dentro o menor níquel.
— Toma!
Luizinho ressentiu-se. Já conhecia
o valor do dinheiro; achou aquilo “pouco demais”. Vendo, porém, pela cara do judeu
que era inútil insistir, pegou do níquel, beijou o coelhinho e disparou a correr.
No dia seguinte reapareceu no Catete.
Parou diante da vitrina e longo tempo esteve a namorar o amigo, trocando com ele
sinais de inteligência. O coelhinho piscava-lhe com uma vontade doida de rir e ele
piscava para o coelhinho com uma vontade doida de chorar. E assim todos os dias,
a semana inteira.
— A semana inteira, senhor novelista?
Não estou compreendendo nada. Vosmecê disse que o último recurso dos famintos fora
o coelhinho de lã, que trocaram por um pão. Ora, comido o pão, e nada mais havendo
para vender, manda a lógica que mãe e filho tenham morrido de fome.
— Obrigado, senhor lógico! Vejo que
leu Stuart Mill e Bain, mas que nunca leu Dickens, nem Escrich, nem Montepin. Devia
ser como dizes, se a vida fosse feita pelos lógicos. Mas Deus não era lógico, era
apenas romancista. Não morreram, não, nem mãe nem filho. E não morreram porque justamente
naquele dia o pai bêbado reapareceu...
— Oh!...
— Sim, meu Bain, reapareceu. E sabe
que mais? Reapareceu regenerado...
— Oh! Oh!...
—... e com dinheiro no bolso. Quer
mais? E rico! Quer mais? E milionário, com a sorte grande da Espanha no papo. Quer
mais? Quer mais? Nos romances há o epílogo e não sabe que o epílogo é o esparadrapo
que une os bordos da ferida? o dedo de Deus que recompensa? o suspiro de consolo
que nos reconcilia com a vida?
— Mas isto, afinal de contas, é vida
ou romance?
— Grande tolo... É a vida com a lição
da arte. A arte corrige a vida, dizendo-lhe: se não és assim, megera, devias sê-lo;
se não procedeste assim, harpia, devias ter procedido; se não fizeste o bêbado reaparecer
no momento oportuno, carcaça, devias tê-lo feito. A arte ensina à vida o seu dever.
Imagina tu, amigo lógico, que quando
Deus criou o mundo...”
Feche-se o parêntesis.
Mas acordei. A rainha Mab fugiu-me
do cérebro a galope em sua carruagenzinha made
by the joiner squirrel, e entrei no belchior.
Lá estava no balcão o judeu mulato
com sua barbicha de bode, os óculos de latão, o gorro sebento.
Não morrera, o aranho; apesar de estrangulado
na novela de Ribeiro Couto, passava muito bem de saúde, o infame.
Era ele mesmo!
Naquele momento cheirava o lombo de
um livro que um novo estudante Batista lhe oferecera.
Enquanto negociavam, pus-me à espreita
disfarçadamente.
Exatinho! Couto fotografara-o com
objetiva Zeiss. Até a voz...
— Hum! Hum! — fungou ele depois de lido o título. — Oscar Wilde... Isto
não se vende, já passou da moda. Tenho carradas de Dorian Gray... A pior coisa que ele escreveu...
— Mas quanto oferece? — indagou o
estudante, aborrecido de tantas micagens.
— Por ser freguês, pago sete tostões.
E lamba as unhas, que hoje me pegou de veia!
O meu estudante Batista não fez como
o de Ribeiro Couto. Não lhe lambeu a vida. Lambeu-lhe os sete níqueis oferecidos
e saiu a pegar o bonde, displicentemente.
— E o senhor, que deseja? — disse-me
então o pirata, depois de encafuar o livro na estante.
Eu não desejava coisa nenhuma, além
de vê-lo, apalpá-lo, cheirá-lo, talvez estrangulá-lo de verdade. Não obstante, fiz-me
de tolo.
— Ando à procura de um livro. Um livro
de Wilde. Tem aí qualquer coisa deste escritor?
A fisionomia do estrangulado iluminou-se.
— Tenho a melhor coisa que Wilde escreveu,
O retrato de Dorian Gray, conhece? — disse,
puxando fora da estante o volume adquirido momentos antes.
— Coisa papa-fina!
Tomei o livro, folheei-o. Edição francesa
vulgar. Valeria, novo, quatro mil-réis.
— Quanto pede?
— Seis mil-réis, por ser para o amiguinho.
Sorri-me por dentro e por fora. Larguei
o volume e acendi o cigarro.
— Não me interessa. É caro.
— Caro? Um livro destes, nesta encadernação,
deste editor, deste autor? Nem me diga isso! E o senhor deve saber que Dorian Gray
é a obra-prima de Oscar Wilde.
Meus dedos se crisparam. Que prazer
estrangular aquela harpia! Contive-me, porém.
— E aquele coelhinho? — perguntei-lhe.
— Quanto?
— Que coelhinho? — exclamou o aranho,
mudando de cara.
— Um que está na vitrina.
— Ah, sim... Aquele coelhinho não
vendo.
— Por que o expõe, então?
— Expu-lo ao sol. Mora aqui na minha
mesa, mas como a casa é úmida ponho-o às vezes lá para evitar o bolor.
Diabo! O homem principiava a desnortear-me.
Tinha em casa um objeto que não vendia. Era lá possível que um judeu daqueles não
vendesse até a alma?
Insisti:
— Dou-lhe cinco mil-réis pelo coelhinho.
— Já lhe disse que não é de venda.
Cinco mil-réis! Nem cinco contos, sabe? Revoltei-me. Veio-me à imaginação toda a
tragédia do Luizinho e tive ímpetos de insultá-lo.
Contive-me e disse apenas:
— No entanto, furtou-o a uma pobre
criança miserável...
O meu Shy lock abriu a mais expressiva
cara de espanto que já topei na vida. Depois encarou-me a fito e seus olhos lacrimejaram.
Sentou-se, como aniquilado de súbita dor e explicou-me, em voz entrecortada:
— Não sou casado, não tenho filhos,
não tenho ninguém no mundo. Mas tive uma criança. Enjeitaram-na aqui à minha porta
e recolhi-a. Criei-a. Durante sete anos constituiu a minha única alegria. O Antoninho...
Um dia veio a gripe e levou-o para o céu. Seu último brinquedo foi esse coelhinho
de lã. Conservo-o aqui na minha mesa como joia preciosa, pois me fala do Antoninho
melhor que um livro aberto. Como quer que o venda? Não há no mundo o que para mim
valha esse coelhinho...
Foi à vitrina e recolheu o brinquedo.
Pô-lo sobre a mesa ao lado do tinteiro. E depois de uma pausa exclamou, olhando-o
com um sorriso que me pareceu divino:
— Tinha um nome. O Antoninho só dizia
“o Labi”...
— ?
— Sim, Rabi... Quer dizer rabicó,
sem cauda. O Antoninho trocava o r pelo
l.
Saí da casa do judeu completamente
desorientado. Fui ao telégrafo e expedi ao autor de O crime do estudante Batista o seguinte despacho: “Couto, somos duas
cavalgaduras!”.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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