Conto de Natal
Sua Alteza Real o Príncipe
herdeiro andava radiante. Naquele ano, Sua Majestade a Rainha em virtude dos
progressos nos estudos e do bom comportamento do pequeno príncipe (dantes tão
preguiçoso e bulhento) havia-lhe concedido, como favor especial, assistir oito
dias antes do Natal e da tribuna real da Capela do Palácio, aos mil
preparativos que se faziam para a grande festa do nascimento do menino.
O que mais chamava a atenção
da real criança era o preparo do Nascimento pois até então ele julgava que na
noite de Natal, a Sagrada Família, os Reis Magos, os anjos e pastores, desciam
do céu à capela real e que eram os anjos quem iluminavam o Nascimento seguindo
depois de alguns dias para o paraíso.
Porém, naquele ano era
diferente: o Príncipe fazia os seus sete
anos e nessa idade quase, quase se é um homenzinho, e o seu preceptor teve de
lhe explicar que o Nascimento não era deveras, mas simulado, não metendo
figuras de carne e osso, visto que eram de barro, gesso, cera ou porcelana.
E teve de acrescentar que
todos os anos pelo Natal, se fazia isto em todas as igrejas e capelas publicas
bem como nas das várias famílias se tinham capela, ou em suas casas, a fim de
recordar o que aconteceu havia muitos centos de anos: o aniversário do Deus-Menino.
Assim, pois, já um pouco
esclarecido, embora isso fosse para a sua inteligência, algo confuso, o
principezinho todos os dias, acompanhado de seu preceptor, ia à capela,
contemplando, admirado, o arranjo do portentoso Nascimento, que ele até ali julgava
ser real.
Que bonito que era tudo aquilo!
Todas as figuras novas e de tamanho natural.
O menino Jesus era um encanto.
Os seus olhos pareciam dois bocados de céu de profundos e azuis que eram. Os
riçados cabelinhos loiros, assemelhavam-se a raios de sol. Os seus lábios um
botão de cravo vermelho e o seu rosto?
E o seu corpinho? Que lindos:
pareciam ter sido amaçados com lírios e rosas as divinas maças das suas
rubicundas faces e as suas mãozinhas gorduchas, como que ofereciam aos que o
olhavam um doce refúgio a todos os beijos da humanidade...
Na véspera da noite de Natal,
o Príncipe andou muito preocupado: desejava com toda a sua alma que chegasse
depressa a noite seguinte para assistir, pela primeira vez (em honra dos seus
sete anos) à missa da meia noite, a que todos chamavam a do galo.
Ao mesmo tempo lembrava-se com
enorme pesar que aquele menino tão bonito, dormia sobre umas palhas, sem cama
de ouro, sem sedas nem rendas.
Pobre Jesus! dizia.
Nem sequer tem um
travesseirinho para a sua cabeça, e é ele, como me diz o meu preceptor, o Rei
dos Reis, o senhor dos senhores!... Ah
que se eu pudesse...
***
Sua Alteza o Príncipe anda
vagando por um bosque situado distante do palácio.
Cai do céu copiosa neve. O Príncipe
sente muito frio, pois caminha quase nu,
levando no seu corpinho apenas a camisinha, cobrindo-se com uma fria
colcha de seda da sua caminha.
Os seus pés despidos de meias,
calçam umas chinelas de seda bordada.
Nas suas mãos leva a sua
pequena almofada. Desejoso de descer à capela para por um travesseirinho
debaixo da loura cabecinha do Menino Jesus, perdeu-se na escuridão da noite
pelos corredores do palácio e, sem saber como, encontrou-se no parque real e
logo após no bosque.
A real criança chora e grita;
tem medo de tudo que o cerca e para junto de um carvalho gigantesco, rendido de
cansaço.
De repente ouve um ruído e
distingue pela luz do lampeão de uma carruagem que passa, um homem que vai
nela. O homem aproxima-se do Príncipe e pergunta-lhe o que faz ali.
O menino diz-lhe que é o filho
do Rei e que quer voltar para o palácio.
— Está bem, diz o homem: sobe.
— Ouça, senhor, replica o
perdido príncipe, a mim diz-se: "Sua Alteza pôde subir" e dizendo
isto subiu para a carruagem, com altivo gesto.
Depois de percorrer largo
caminho param e o homem, sem dizer palavra nem mais cumprimentos, toma o menino
nos braços e introdu-lo numa miserável choça.
O príncipe esforça-se por
fugir, mas o homem retém-no. Dá-lhe um pedaço de pão e recomenda-lhe que durma.
O menino treme de medo e de
frio. Olha à sua volta e vê uma velha muito feia dormindo a um canto. Aos seus
pés está um gato preto, muito sujo e nas costas de uma cadeira, empoleirado, dormita um mocho.
O homem, indiferente a tudo,
depois de beber uns copos de vinho, ficou a
dormir, debruçado sobre a mesa.
Todo este quadro, inédito e
terrível para o principezinho, estava iluminado por uma lâmpada de azeite que
pouco a pouco se ia apagando.
Muitos ratos povoavam aquela
casa, disputando-se o pedaço de pão duro que o menino não quis comer.
Uma rajada forte de vento
abriu a porta da terrível choça e o menino, cobrando ânimo, na ponta dos pés,
saiu por ela.
Uma vez fora, desatou a correr
com tão pouca sorte que logo tropeçou e caiu.
Ao mesmo tempo, umas mãos o
levantaram com carinho e, à luz da lua que assomava, tranquila, no céu
estrelado, viu que o seu salvador era um menino extremamente lindo, como jamais
vira nenhum.
E o menino disse ao príncipe:
"Tropeçaste nuns pedaços de pau que eu tenho para fazer uma cruz e por
minha culpa caíste; eu, que conheço todos os caminhos, vou conduzir-te ao teu
palácio."
E, como se o príncipe fosse
uma pena, levantou-o nos seus braços e o levou até ao pé da escada real.
O Príncipe agradecido, abraçou
o seu salvador, dizendo-lhe que se lembraria sempre dele.
E disse, ainda, que o seu
rosto lhe não era estranho. Já vira a sua fisionomia em qualquer parte que
agora lhe não lembrava... Espera aí, acrescentou, que eu vou buscar-te uma
prenda em recompensa da tua boa ação.
Momentos depois descia e punha
na loira cabecinha do menino seu salvador, a sua coroa de príncipe. O menino
ergueu os seus olhos azuis ao céu, ouviu-se uma música longínqua e o menino
desapareceu.
***
O príncipe acordou.
Tudo havia sido um sonho. E,
entre beijos e abraços, contou tudo a Sua Majestade a Rainha. Passou depois
todo o dia sem se lembrar mais do que sonhou.
Às onze horas e meia da noite,
toda a família real, com seu séquito, vai à capela. A cabana do Nascimento está
oculta por uma cortina de rendas e flores. Toda a capela foi ornamentada com as
suas mais ricas e preciosas galas, resplandecendo de luzes. À primeira badalada
da meia noite, e, ao mesmo tempo que o coro entoa o Venite adoremus, Dominum, abre-se a cortina e aparece a cabana do
Nascimento do Jesus, verdadeira obra de arte. Porém, coisa rara e estranha: em
vez do menino ter o círculo de ouro que lhe foi posto na cabeça, todos veem que
ele tem cingida uma coroazinha de príncipe.
Da tribuna real parte um
grito: — “O menino Jesus foi o meu salvador" e o príncipe reconhece o
menino do seu sonho, põe-se de pé e manda-lhe um beijo com os dedos.
Depois de um momento de
espanto, a Rainha, um pouco pálida pela emoção, faz um ligeiro sinal para que
continue a cerimônia religiosa.
...E, desde aquela noite
memorável o menino Jesus do Natal do palácio ostenta na sua cabecinha de
pequenos raios de ouro, a esplêndida coroa de Príncipe Real...
Baronesa Castell del Mae
Revista "Vida Doméstica", dezembro de 1923.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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