11/04/2018

Atrasado (Conto), de Iba Mendes



ATRASADO


Era a primeira vez que chegava atrasado à empresa. Por essa razão, sentia-se transtornado.

O episódio, posto que banal, transformou-se para ele numa terrível mácula, numa nódoa que jamais poderia ser apagada do seu invejável currículo. Julgava-se culpado e demonstrava uma perturbação não habitual, a qual, por seu ineditismo, logo chamou a atenção dos colegas.

Interpelado se havia algum problema, limitou-se a dizer que apenas estava cansado e que não dormira bem àquela noite:

– Um calor insuportável e ainda não chove – tentava assim legitimar seus novos modos excêntricos.

Esteve deste jeito o dia todo, cabisbaixo, quieto e introspectivo; não almoçou nem tomou seus cafezinhos costumeiros.

– Está doente? – perguntou-lhe o gerente, com ares de preocupação.

– Não senhor. Tive uma noite péssima, um calor insuportável – repetia agora ainda com mais ênfase.

Findo o expediente retirou-se apressadamente sem se despedir dos colegas e sem aquela habitual passagem pelo boteco da esquina.

Em casa desabou no sofá, exausto e tomado de um profundo desânimo. Mirava o teto como se estivesse vislumbrando o buraco negro da sua própria alma inconsolada e abatida.

Morava sozinho desde os trinta anos de idade. Embora orçasse agora pelos seus quarenta, não havia ainda pensado em matrimônio. Queria dedicar-se integralmente a sua profissão, e o casamento, com a iminente possibilidade de filhos, poderia fazer minar seus objetivos profissionais.

Dentre as muitas metas que estabelecera para sua ambição, uma delas dizia respeito exatamente à pontualidade. Acreditava que um bom funcionário para ser bom mesmo, deveria ser preciso nos horários, tão rigoroso como o grande relógio de Londres.

Agora, porém, havia interrompido uma sequência linear de assiduidade de mais de cinco anos. Não podia mais voltar atrás... Em consequência disso passou a culpar-se o tempo todo, como se tivesse cometido um grave crime para o qual se seguiria uma severa pena.

Não encontrava nenhum motivo para o fatal atraso, afinal, ponderava mentalmente, a empresa estava localizada apenas a dois quarteirões de casa, de modo que nem sequer necessitava tomar qualquer tipo de condução. Ia andando todos os dias e de tal modo que sempre chegava meia hora antes do início do expediente. Desta vez, porém, algo deu errado, o relógio não despertou no horário programado, muito embora tivesse intercalado dois alarmes com intervalo de dez minutos de um para outro. Também não fora acometido de qualquer enfermidade. Tudo corria em perfeita ordem, dentro da mais completa rotina.

Por qual razão isto veio acontecer?... O que estaria por trás de tamanho imprevisto?...

O tempo todo questionava a si mesmo dos motivos que levaram os relógios a parar. Por mais que se esforçasse, não conseguia aventar uma hipótese meramente física, algo intrínseco ao próprio mecanismo indicador das horas. No seu âmago, sentia-se como se tivesse transgredido o sexto mandamento sagrado, ou como se fosse o autor de um crime hediondo.

O relojoeiro não encontrou nenhum defeito nos aparelhos, que pareciam trabalhar em perfeita harmonia. Tal constatação levou-o a deduzir que algo estranho devia ter acontecido, algum mistério para o qual tinha que descobrir a exata razão.

Pensou em muitas coisas, e se convenceu que ali andou pondo o dedo alguma entidade sobrenatural. Sim, talvez algum espírito desencarnado viera lhe cobrar alguma dívida passada, encontrando nos ponteiros do relógio o seu ponto fraco. “Foi isso”, pensou mais aliviado.

A esta fatal constatação seguiram-se algumas reações imediatas: na sexta andou por um terreiro de umbanda, onde tomou um passe e recebeu a bênção de uma ialorixá; no sábado, compareceu a um culto pentecostal, submetendo-se a uma sessão de descarrego, para a libertação dos encostos e outros agentes do mal; e, por fim, esteve domingo na missa da Matriz, participando com extrema consternação do corpo e do sangue de Cristo. Ao fim de tudo, sentia-se como que redimido das faltas cometidas, incluindo aí a culpa que há dias lhe oprimia e que tanto lhe causava desgosto. “Vida nova”, dizia já consolado para si mesmo...

Na manhã do dia seguinte, o alarme soou como de hábito, com a mesma pontualidade do famoso relógio da Inglaterra. Levantou-se, seguindo à risca o script costumeiro. Não queria que nada desse errado... Saiu cantarolando em inglês. Sentia-se enfim feliz e mentalmente revigorado!

No caminho encontrou um velho de barbas brancas, que caminhava lentamente com os olhos baixos. Este achegou-se a ele e perguntou-lhe as horas, foi quando percebeu que havia esquecido o relógio.

– Desculpe-me, esqueci o relógio – respondeu com um sorriso ríspido e forçado.

Essa era a primeira vez que esquecia o relógio. O evento, igualmente banal, fê-lo estremecer. Deliberou então retornar correndo a casa a fim de buscá-lo. Encontrou-o em cima da pia com os ponteiros parados. Correu-lhe então um frio por toda a espinha e arrepiaram-se-lhes os pelos. Um turbilhão de pensamentos aflorou-lhe a mente intranquila. Por trás deles, pairavam entidades espirituais querendo atormentar-lhe a vida, tirar-lhe a paz... Via-se, pois, no fundo do abismo da desgraça. Então pensou em rezar, pedir socorro aos santos, ler o Salmo 91... Porém, não lhe restava tempo. Estava atrasado...

Saiu de casa ofegante, desesperado e correndo de um lado para outro da rua. Esbarrou num homem... Escapou de cair num buraco...

Ao dobrar a esquina, mirou bem o relógio e notou que os ponteiros corriam normalmente. Sentiu-se mais uma vez aliviado e respirou fundo. Em seguida, porém, desesperou-se ao se dar conta que estava atrasado... Muito atrasado...

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