As Janeiras
(Conto natalino)
(Conto natalino)
As Janeiras!
Se já restava pouco do madeiro
do Natal, quando os ganhões chegavam do trabalho, arrumada a copa e a
apeiragem, iam buscar um madeiro que o meu pai tinha escolhido no monturo da
lenha grossa, e colocavam-no na chaminé, arrumado à parede. Este frete era
geralmente pago com um copo de vinho, e bem o mereciam os desgraçados, porque
alombavam com um madeiro pesando umas poucas de arrobas. Cozia-se sempre neste
dia, e a última fornada de pão tirava-se já noite escura, às vezes com a
ganharia à mesa para a ceia.
A cada janeireiro, homem ou
mulher, dava-se um pão; aos jovens dava-se metade ou um quarto, conforme o seu
tamanho, e às vezes, já no clarear da madrugada, havia necessidade de reduzir a
esmola, pois não chegava para tanta gente o pão cozido. Tal havia que apanhava
duas, três ou quatro esmolas, incorporando-se cm diferentes ranchos, e o mesmo
rancho chegava a cantar duas vezes, mudando as vozes.
— São os mesmos que cantaram
há bocadinho.
Quem ia levar a esmola,
geralmente era uma criança, não se dispensava de dizer, mesmo que lhe não
encomendassem o sermão:
— Vossemecês ainda não há nada
de tempo que aqui estiveram. Se cá voltarem, não levam esmola.
Que não; vossemecê está
enganada, a gente chegou agora mesmo da vila, e ainda não cantamos em mais
monte nenhum. Se quer ver o que trazemos...
Nenhum rancho denunciava outro
rancho, embora nem todos fizessem a mesma coisa, a muitos repugnando uma tão
descarada fraude, tanto mais que nela se envolvia Deus Nosso Pai, invocado a
cada instante:
Lá vai uma, lá vão duas
Por cima do seu telhado.
Deus lhe dê muita fortuna
Ao pão que tiver semeado.
Se a noite estava escura, não
se distinguiam as caras, e se havia um luar discreto, os homens escondiam a
cabeça na manta, as mulheres no xaile ou na mantilha, e assim realizavam a
mistificação. Quando o criado que distribuía as esmolas avisava de que o pão,
em menos de nada, estaria acabado, meu pai ordenava que dois ganhões dessem uma
volta à roda do Monte, fiscalizando os ranchos, e era como se aparecessem
guardas fiscais num campo onde manobrassem contrabandistas.
Lembro-me como se fosse ontem,
e vão passadas umas poucas de dúzias de anos...
O compadre Cara-Rota, que era
o abegão da casa, deixara-se ficar no Monte, para cantar as janeiras, e como
aparecessem, já noite cerrada, os vizinhos da Bispa, o compadre João Catarino,
o primo Francisco Manuel, que era um grande tocador de viola, e o lavrador da
Granja, que era um grande tocador... De garrafa, armou-se uma mesa de jogo, à
pedida, perdendo-se, nominalmente, as melhores herdades do concelho.
A certa altura o maricas do
Narciso, que andava no serviço das esmolas, declara que estavam cantando uns
homens que já tinham cantado duas vezes, e como ele lhes dissesse que escusavam
de cantar porque não apanhavam mais nada, eles ameaçaram-no de lhe bater,
chegando um deles a atirar-lhe um sopapo, que por sorte o não apanhou.
— Estão bêbedos, com certeza.
Disse meu pai ao compadre
Cara-Rota:
— Tenha paciência, compadre,
dê uma voltinha lá por fora, a ver o que há.
O compadre Cara-Rota saiu,
levando na mão um fueiro, e quando chegou à porta do Monte ainda os homens
cantavam. Eram quatro, um já entrado em anos.
— Por os modos vocês tomaram
as janeiras de empreitada, hem? Os homens ouviram, mas não fizeram caso, e
continuaram a cantar.
É compadre Cara-Rota foi-se
aproximando, e como vissem que ele não estava com as mãos abanando, calcularam
que podia armar-se sarilho se continuassem a cantar, e que, em todo o caso,
mais esmola não apanhavam. Um deles, o mais pimpão, desenrolando-se da manta, e
pondo ao ombro o bordão, disse para os companheiros:
— O melhor é a gente ir-se
embora. A esmola que nos tinham dar, que a metam...
Já fora da calçada do Monte,
virando-se para trás, disse ao compadre Cara-
Rota, desafiando-o com
insolência:
— O amigo não canta, mas pode
ser que tenha as goelas secas. Se as quiser molhar, venha com a gente até ali à
estrada, que ninguém lhe faz mal.
— Vão lá andando que eu já os
apanho.
Entrou na casa dos ganhões,
trocou o fueiro pelo cacete mais forte que lá encontrou, e ainda os janeireiros
não tinham chegado à estrada, já ele lhes falava desta sorte:
— Qual de vocês é que tem a
borracha?
— Somos nós todos — respondeu
o que o desafiara.
Palavras não eram ditas,
cai-lhe na cabeça uma bordoada que o fez ir a terra. Entraram todos na refrega,
está bem de ver, mas o compadre Cara-Rota, ágil como um palhaço, não se deixava
tocar, e das cacetadas que despedia nenhuma caía no chão. Durou a luta poucos
minutos, saindo dela um dos janeireiros com a cabeça rachada, outro com braço
partido, e os outros muito bem zurzidos, mas sem nada quebrado.
— Então os homens, compadre
Francisco?
— Fui-lhes levar a esmola ali
à estrada, e lá se foram na paz do Senhor.
***
Era uma figura original, o
compadre Cara-Rota, meu compadre de verdade, compadre de águas-bentas. Ninguém
era mais desembaraçado do que ele no seu ofício — nem mais desembaraçado nem
mais perfeito. Por este motivo tinha uma grande freguesia, chamado para todos
os Montes, e na Vila, trabalhando na sua casa ou na casa dos outros, nunca se
lhe acabava que fazer.
Era alto, desempenado, forte
como as armas, multiplicando a força pela agilidade, de uma rara agilidade, o
que lhe permitia brincar numa praça, com os touros, que eram quase sempre
vacas, por forma a entusiasmar a família. Tourada em que ele trabalhasse e o
Esbandalha, era tourada de sucesso — como quando trabalhavam em Lisboa, na
Praça de Sant’Ana, os manos Robertos. As vacas eram corridas desemboladas, e
bandarilhas não se usavam no toureio da Província.
A sorte mestra, aquela em que
o compadre Cara-Rota era exímio, na opinião de muitos inexcedível, era a do
emplastro, que consistia em pegar à testa da rês, com mel, um quarto de papel,
como se fosse um escrito num vidro. Corria como um gamo, e dava saltos como um
ginasta de circo. Gostava da pândega, mas não era homem de bebedeiras, sempre
lembrado de que tinha lá em casa uma filharada de que era o amparo e sustento.
A sua grande paixão, dominante, avassaladora, era a caça.
Dizia o meu pai:
— Homem inviccionado na caça
como o compadre Cara-Rota, não quero que haja outro.
Era muito rara a tarde em que
ele não largava cedo o trabalho para ir matar um coelho, à espera, e pelo dia
adiante, se ouvia tiros no Cabeço ou via passarem os caçadores, não se
importava mais com o que estava fazendo; metia as ferramentas na alcofa, e às
escondidas, se podia ser, tirava de casa a espingarda, e polvarinho, a patrona,
e pernas para que vos quero, até se meter na linha.
— Ora compadre Francisco, tudo
o que é de mais não presta. Então vossemecê vê que tenho aí uma parelha à boa
vida, e abala prá caça deixando o trabalho em meio?...
— Não se apoquente o Sr.
Compadre que tudo se há de fazer a tempo e horas.
E fazia. Um bocadinho de
serão, um bocadinho de madrugada e o compadre Cara-Rota tinha o serviço feito
como se tivesse trabalhado sem descontinuidade.
***
Quer fosse às perdizes, no ar,
quer fosse às lebres, na terra limpa, quer fosse aos coelhos, na charneca,
poucos se explicavam como ele — peça visada era peça morta. Gostava muito de
caçar nas pontas, e ordinariamente, em jolda, as pontas eram feitas pelos
melhores atiradores, sempre um bocadinho adiantadas, quase à espera da caça que
se safava.
De uma vez, caçando na
Daroeira, ia ele numa ponta e eu na sobreponta respetiva, pouco distante da
orla do mato. Um mitra, empurrado pela linha, sai do mato, sorrateiramente,
enfia para a terra limpa, correndo como um danado.
O compadre Cara-Rota
desfecha-lhe um tiro, e o coelho, se muito corria, muito mais passou a correr,
mudando de rumo, enfiando por uma vereda, que marginava o mato. Lobrigo o
figurão lá muito longe, e largo-lhe um. Tiro, sem grande confiança em que o
chumbo lá chegasse. Ouviu-se o tiro, e viu-se o coelho, ao mesmo tempo, enrolar
as patinhas, morto no meio da vereda. Fui buscar o coelho, muito satisfeito,
tanto mais que destas me aconteciam poucas.
— Bem feita, Sr. Compadre!...
Se eu tivesse vergonha não voltava a pegar numa espingarda.
Estava eu a empiolar o mitra
quando o compadre Cara-Rota, como se lhe desse uma veneta, avança para mim, e
diz com o ar de quem procura responder a uma interrogação interior, ao mesmo
tempo dolorosa e vexatória:
— Ó Sr. Compadre, faça favor,
deixe-me ver uma coisa.
Pegou no coelho, olhou-o,
voltou a olha-lo, apalpando-o muito bem apalpado, quase polegada por polegada,
e com ele suspenso pelas orelhas, e espingarda encostada a uma carrasqueira,
disse-me pausadamente, como se estivesse a desenvolver um raciocínio
complicado:
— O Sr. Compadre atirou ao
coelho um pouco de rabo, mas do lado esquerdo; eu atirei-lhe de atravessado,
pelo lado direito, ia ele correndo, fora do mato, nesta direção... Só um podão
que nunca tivesse pegado numa arma, erraria num caso destes. A verdade é que
ele não ficou no meu tiro; meteu-se na vereda, e só quando o Sr. Compadre
desfechou com ele, é que enrolou a copa e nunca mais se mexeu. Mas faça o Sr.
Compadre favor de ver — o coelho não tem um bago de chumbo do seu lado e do meu
lado tem uns poucos.
Era verdade. O coelho fora
morto pelo compadre Cara-Rota e perante a evidência irrecusável eu dei sinais
de mágoa embora não desabafasse em lamentações.
— Isto na caça, sucedem coisas
que só vendo se acreditam. De uma vez, naquelas chapadas do Monte Grande que
vão bater em Vale de Leitão, os cães ergueram uma lebre, muito adiante da linha
de caçadores. Corria que parecia que tiniu asas nas patas, o bicho do diabo.
Cada vez os cães lhe ficavam mais para trás, e quando ia chegando ao fim da
ladeira, o João da Baroa larga-lhe um tiro, e a lebre fica estendida como uma
pescada. O primeiro cão que lhe chega ao pé foi um podengo, atravessado de galgo,
que tinha o Antônio Joaquim, do correio, e que era um barra para trazer à mão.
— Foi um bago de chumbo
desgarrado, que lhe deu num sítio mortal. Passou-se vistoria ao bicho, e qual
chumbo nem qual carapuça.
— Tinha morrido de susto?
— Não, senhor; tinha morrido
de esfalfamento, com os bofes arrebentados.
***
A última vez que vi o compadre
Cara-Rota já ele deitara os oitenta para trás das costas mas andava com
desembaraço, aprumado como um rapaz. Recordei, mentalmente, os afastados tempos
em que ele ia trabalhar ás Mesas, ainda novo e eu criança, e pareceu-me vê-lo
de machado nas unhas, falquejando à esquina do Monte, largando tudo, a inchó ou
o machado, se ouvia tiros no Cabeço.
Era muito alegre, muito
divertido, sempre de bom humor, como se a vida lhe corresse em todos os
momentos fácil e vantajosa.
Não era desordeiro, mas
gostava de dar a sua castanha quando se lhe oferecia a ocasião.
De uma vez, logo no dia
seguinte à feira de Santo Antônio, apareceu no Monte um maltês, homem forte, de
meia-idade, surdo-mudo de nascença. Para estes desgraçados a esmola era sempre
mais avultada, por expressa ordem da minha mãe. Dava-se-lhes umas sopas, se as
pediam, e levavam sempre um pão e conduto, geralmente um queijinho ou
azeitonas.
— É uma grande infelicidade
não ver, mas não ouvir nem falar é infelicidade ainda maior.
Quando a criada dava a esmola
ao pobrezinho, o compadre Cara-Rota apareceu, em mangas de camisa, porque era
assim que ele, mesmo no inverno, trabalhava no ofício. Viu o maltês, estacou, e
como ele se dispusesse, recebida a esmola, a ir-se embora, desfechou-lhe esta
pergunta:
— Há quanto tempo é que você é
mudo?
O homem não se deu por achado,
e a criada, rindo, comenta a pergunta.
— O Sr. Francisco sempre tem
cada uma! Se o homem ouvisse, e fosse capaz de responder não era surdo-mudo...
O compadre Cara-Rota, não se importando com as filosofias da rapariga, repetiu
a pergunta:
— Há quanto tempo é que você é
mudo?
Ouvindo altercação à porta do
Monte, acudiu minha mãe, a inquirir do que se passava.
— Não é nada, senhora comadre.
Este desgraçado perdeu a fala, e eu vou-lha restituir com uma untura de marmelo
no lombo.
Palavras não eram ditas, deita
a mão a uma vara que estava ali peito, menos grossa que um bordão, e vá de
zurzir o maltês, como se batesse em centeio verde. A minha mãe, espavorida,
queria acudir ao infeliz, mas o compadre Cara-Rota, não atendia os seus rogos,
e o maltês levava e encolhia-se, queixando-se por gestos e por guinchos.
— Ah ele é isso! Não queres
falar?... Espera que eu já te arranjo.
Sacou da algibeira uma
navalha, que abriu dando três estalinhos, e como fizesse aceno de avançar para
o homem, disposto a cravar-lha no fole das migas, o maltês caiu de joelhos, a
pedir misericórdia.
— Não me mate, pelo amor de
Deus, que eu não fiz mal a ninguém.
— Ora esta! — dizia minha mãe,
mal acreditando no que ouvia. — Quem havia de dizer...
— Dizia eu, senhora comadre, porque ainda ontem à noite vi este pardal numa barraca da feira, muito bêbado, ameaçando toda a gente, e desenrolando um palavreado que até envergonhava as pessoas.
***
Nos maus anos cerealíferos,
todos os que eram capazes de perder uma noite, homens e mulheres, em romaria
pelos Montes, saíam a cantar as janeiras, fazendo-se acompanhar dos miúdos
pequenos, os que os tinham, para maior colheita.
Ou porque chovesse muito e as
terras se encharcassem, afogando as sementes, ou porque chovesse pouco e as
sementes murchassem, apenas salpicando a terra de manchas verdes punctiformes,
quando o ano agrícola se mostrava assim, nada prometedor, dizia meu pai, nas
vésperas do Ano Bom:
— Temos ano de Janeiras, a não
ser que chova a cântaros.
Mesmo chovendo, e às vezes com
um frio de bater o queixo, nos anos que se anunciavam maus, o gado a morrer de
fome, a família sem trabalho, porque nem sequer havia erva nas searas, tornando
necessária a monda, em anos tais, a concorrência de janeireiros era enorme,
sobretudo não havendo barrancos a passar, que fossem cheios.
Os criados eram os primeiros a
cantar as janeiras, à porta do Monte, e para eles a esmola era especial — pão
alvo, chouriço para assar no espeto ou carne para uma friginada e vinho numa
garrafa ou numa borracha, segundo o número.
Era quase certo que debutavam
por esta cantiga:
Esta casa está caiada
Do telhado até ao chão;
Os senhores que nela moram
Deus lhes dê a salvação.
Também nós, eu e os meus
irmãos, cantávamos as janeiras, e a minha mãe mandava-nos dar a esmola pelo
postigo, como aos outros janeireiros, o que muito nos lisonjeava. Consistia a
esmola em guloseimas, já divididas em porções, para evitar lutas fratricidas.
A gente de Messejana era a que
chegava mais cedo, em ranchos, os homens enrolados nas suas mantas, as mulheres
nas suas mantilhas, havendo geralmente em cada rancho uma cantadeira de fama, a
Sofia, que era a mais pimpona de todas, a Bárbara Bonita, que por sinal era
muito feia, mas trinava como um rouxinol... Que apitasse como os comboios.
A Sofia, que era poetisa a
valer, repentista como o Bocage, não garganteava as habituais quadrinhas, de
uma tão charra banalidade, a maior parte, que dificilmente se encontraria na
grosseira urdidura de qualquer delas uma centelha de inspiração. Improvisava à
porta dos Montes, de modo que cantava só, e isso fazia com que a esmola do seu
rancho fosse mais avultada. No despique ninguém lhe ganhava, a cantar uma noite
inteira, nos arraiais, às vezes tendo de bater-se ao mesmo tempo com dois e
três cantadores de reputação concelhia, mestres na desgarrada.
Tenho pena de não ter escrito
algumas das quadras e decimais que a Sofia arquitetava sobre mote, dizendo-as
sem hesitação, como se as tirasse da memória. Instruída e educada, a Sofia de
Messejana estou que marcaria na literatura feminina do nosso País um lugar de
relevo e distinção.
***
A Musa popular alentejana é
pouco imaginosa; falta-lhe geralmente elevação de pensamento; falta-lhe
elegância na expressão; falta-lhe correção na forma. A inspirar os janeireiros,
pelo menos os que iam cantar às Mezas, nunca entalhava na música arrastada dos
seus cantares uma quadrinha que tivesse o recorte simples mas elegante do
junquilho, a fragrância quase doce do mantrasto, a leveza pouco menos de
imponderável da papoila. É ver por estas amostras:
Ó senhor lavrador Vestido de
saragoça; Mande-me dar a esmola Pela sua filha mais moça.
Quando eu aqui cheguei
Dei um tope num cortiço:
Logo o coração me disse
Que me dariam um chouriço.
Venho-lhe dar os bons anos
Que as boas festas não pude;
Venho a fim de saber
Novas da sua saúde.
O Sr. Manuel de Brito
Cordão de ouro no chapéu;
Quando vai para a igreja
Parece um anjo do céu.
Era pequeno o rol das cantigas
janeireiras, de modo que o rancho que chegava, às vezes sem lhe alterar a
ordem, repetia as do rancho que imediatamente o antecedera. Esta monotonia só
era quebrada pela variedade das vozes, cada rancho formando um coro desafinado,
em que seria difícil, senão impossível, uma classificação.
Se o frio era dos que
enregelam, chegava-nos à chaminé, onde havia um lume que enchia de calor a casa
toda, a tremura das cantadeiras, mal enroupadas, parecendo que o seu delgado
fio de voz coalharia no ar, se não se calassem depressa.
Acudia minha mãe:
— Vão levar a esmola, e digam
que não cantem mais.
Obtinha sempre um grande
sucesso o rancho que cantava os três do oriente — os três desorientes — diziam
os janeireiros, lengalenga que eu sabia de cor, e que se me varreu, quase por
completo, da memória.
Começava assim:
Quem são os três cavaleiros
Que fazem sombra no mar?
São os três desorientes
Que a Jesus vêm buscar.
Não procuram por pousada
Nem onde o irão achar;
Procuram o Deus menino
Que nasceu para nos salvar.
Foram-no achar em Roma
Revestido no altar;
Missa nova quer dizer,
Missa nova quer cantar,
São Pedro ajuda à missa,
São João muda o missal.
O tio Rosa explicava que os
três cavaleiros eram os três reis do Oriente, uma terra lá para os fins do
mundo, os quais tendo notícia de que nascera
Jesus, se puseram a caminho,
para o adorarem. Como eram muito grandes, e montavam cavalos do tamanho de
torres, faziam sombra no mar. Chegados à arramada onde Nossa Senhora dera à
luz, aí souberam que o menino fora levado para Roma, porque Herodes era um grande
malvado, e tinha dado ordens para o matarem. S. Pedro e S. João acompanhavam
Jesus, e uma vez chegados a Roma perguntou-lhes o Papa o que desejavam. Vai
então Jesus respondeu que desejava dizer missa na Igreja matriz, ao que o Papa
anuiu, e como o sacristão tinha ido fazer um recado, S. Pedro e S. João
ajudaram ao oficio divino. Veio Herodes a saber onde Jesus estava, e mandou lá
buscá-lo, entregando-o aos judeus, que o levaram à presença de Pilatos, pedindo
a sua morte. Pilatos disse-lhes que não havia motivo nem razão para semelhante
feito, mas que se o quisessem matar, o matassem, que ele lavava daí as suas
mãos. Foi o Senhor pregado numa cruz, entre dois ladrões, e ressuscitou ao
terceiro dia depois da morte, para nos remir e salvar.
Sucesso ainda maior alcançava
o rancho que cantava a chamada oração das almas, lamúria fúnebre que era entoa
tia muito lentamente, nenhuma voz excedendo o regime médio, e no coro
predominando o baixo profundo, dando a impressão de vir a cantoria do interior
das sepulturas, a coar-se por entre túmulos.
Só me recordo do começo desta
oração
Acordai, ó acordai,
Desse sono tão profundo;
Que vos estão batendo à porta
As almas do outro mundo.
Esta oração era sempre ouvida
em religioso silêncio, e dizia meu pai que uns homens de Ervidel a cantavam tão
bem e com tanto sentimento, que não era fácil ouvi-los sem chorar.
As Janeiras!
Até à meia-noite ainda estava
tudo a pé, no Monte, para ouvir os janeireiros, contrariando o velho hábito,
raramente interrompido, de ir tudo para a sossega, mal engolida a ceia, e
engolia-se a ceia ao acender as luzes. O meu pai, nalgum dos filhos cabeceando,
ordenava-lhe que se fosse deitar — na cama é que se dorme — o que punha logo o
dorminhoco gazil como um furão.
De vez em quando vinha uma
roda de café, um copinho de aguardente, um cálice de vinho abafado, para
espertar, sendo estas bebidas acompanhadas de alguma trincadeira — bolos feitos
naquele dia, nozes e figos comprados na feira de Castro, bolotas que tinham
avelado numa alcofa, ao canto da chaminé, escolhidas umas no Poço Seco pelo
compadre Rabino, escolhidas outras no Sabugueiro pelo compadre Bugado.
Amos e criados, destes os mais
antigos na casa, os compadres, os afilhados, fraternizavam naquelas noites de
festa; emparceiravam no jogo; comiam do mesmo prato; quase bebiam pelo mesmo
copo; fumavam na mesma onça de tabaco. E não havia uma desatenção, uma falta de
respeito, todos juntos e cada um. No seu lugar, a mesma alegria ingênua e
franca iluminando todos os olhares, a mesma paz interior refletindo-se em todas
as palavras e gestos.
Ficavam sempre dois criados de
vela, até pela manhã, para darem as esmolas, e eu ficava com eles, rebelde ao
sono, como se fosse atacado de espertina. Pela minha conta e risco — o risco
era nenhum — cortava-se um chouriço já curado, e toca de o assar no espeto.
Abria-se um pão alvo, pelo rebordo, e o pingo do chouriço ia embebendo o miolo,
dando-lhe um gosto muito apreciável. A minha mãe, num descuido propositado,
deixava algumas garrafas de vinho no armário aberto, e eu nenhuma hesitação
tinha em ir buscar uma ou duas para que o pão e o chouriço não arranhassem as
goelas dos meus convivas. La chamar alguns criados de quem era mais amigo, e
durava o bródio enquanto havia de comer.
— A minha mãe é capaz de me
ralhar...
— Ora! O Sr. Compadre diz que
foram os ratos que beberam o vinho enquanto a gente estava a escutar os
janeireiros...
Os dias que medeiam entre as
Janeiras e os Reis passava-os eu num alvoroto, que me valia alguns puxões cie
orelhas, pois nada ouvia do que me diziam, e nada fazia do que me mandavam
fazer.
Nunca obtive licença para ir
cantar as Janeiras ou os Reis à Bispa ou às Refroias. Montes próximos e de
gente amiga, nem mesmo oferecendo-se o compadre Rosa, para ir à minha
companhia, garantindo que muito antes da meia-noite estaríamos de volta.
— Fiquem os senhores compadres
descansados que não há de haver novidade.
Morro com este desgosto, dos
maiores da minha vida... De menino!
***
As Janeiras! Os Reis!
Poucos, muito poucos são os
Montes em que ainda hoje se dá esmola aos janeireiros, e por isso mesmo, além
de várias razões de outra ordem, são cada vez menos os janeireiros que passam
uma noite de Monte em Monte, cantando aquelas tradicionais quadrinhas que o
leitor já conhece, e outras de igual valor poético, que se me varreram da
memória.
Os tempos andam tão mudados do que foram!
Eu sinto-me tão diferente do que fui!
Estou a evocar estas
recordações numa noite de janeiras, de vento fustigante e frio alpino, e
precisamente quando suspendo a pena e fecho os olhos para que seja mais
perfeita a evocação, a Otília, minha sobrinha, grita-me da porta do quarto, aos
saltinhos, como uma rola na eira: — Tio! O chá está na mesa.
O chá, que naquelas eras,
entre rurais pobres e abastados, só era tomado como remédio, para suar, e era
de flores de sabugueiro!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...