10/31/2018

Vidinha ociosa (Conto), de Monteiro Lobato



Vidinha ociosa
(Apólogo)

É velho Torquato dá relevo ao que conta à força de imagens engraçadas ou apólogos. Ontem explicava o mal da nossa raça: preguiça de pensar. E restringindo o asserto à classe agrícola:

— Se o Governo agarrasse um cento de fazendeiros dos mais ilustres e os trancasse nesta sala, com cem machados naquele canto e uma floresta virgem ali adiante; e se naquele quarto pusesse uma mesa com papel, pena e tinta, e lhes dissesse: “Ou vocês pensam meia hora naquele papel ou botam abaixo aquela mata”, daí a cinco minutos cento e um machados pipocavam nas perobas!...


A MESMICE

Um coronel inglês suicidou-se “tired of buttoning and unbuttoning” — cansado de abotoar e desabotoar a farda.

A vida em Oblivion é um perpétuo “buttoning and unbuttoning” que não desfecha no suicídio.

Salvam-na a botica e o jogo. A botica, porque nela há uma sessão permanente de mexerico, e o mexerico é a ambrosia dos lugarejos pobres. E o jogo, porque quem perdeu não pode suicidar-se antes da desforra, e quem ganhou vai alegre, a cantarolar que afinal de contas a vida é boa. Dessa forma escapam todos ao cansaço da mesmice.


A FOLHINHA

A folhinha inventou-a algum boticário do interior para uso de sua cidade-aldeia, onde correm os dias tão iguais e parecidos que só por meio dela podemos distinguir uma segunda duma terça ou quarta-feira.

Um só dia tem feição própria: o domingo. Assinala-o a roupa limpa, a roupa nova, a roupa preta que surge pelas ruas a tomar sol no corpo de toda gente. Redobram de movimento as praças. Caras novas de gente extramuros dão ares de sua graça. Há mercado cedo, missas até as onze; depois, pelo resto da tarde, continuam a assinalar o Dia do Senhor caboclos e negros encachaçados, aglomerados pelas vendas. Vendem elas mais pinga nesse dia do que durante a semana inteira. Todos voltam para casa mais ou menos chumbeados. Os “de cair” dormem na cidade. Os de pinga exaltada, no xadrez. E assim transcorre o belo domingo sem necessidade de irmos à folhinha para sabermos que dia é.


TOURADAS

Transformaram o antigo velódromo em circo de touros; metade das arquibancadas virou Sombra, a mil-réis; e a outra metade, Sol, a quinhentos. Num camarote enfeitado de cetim amarelo e verde está um inteligente pegado a laço e imensamente bronco. Ao seu lado, um clarim tuberculoso; cada vez que sopra na corneta falta-lhe fôlego para um som completo — e o povo ri-se.

Toureiro de verdade há um, o Antônio Corajoso, empresário, bilheteiro e assessor do inteligente. Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o competente rabicho, completam a cuadrilla.

A cada passinho Corajoso berra para o inteligente: “Dê ordem de recolhida, faça isto, faça aquilo”. E o pobre-diabo se vê tonto para conciliar uma burrice inata com os deveres do cargo.

O povo vaia ou aplaude num tom amolecado que é toda a graça da festa. Reles, mas divertido. “Feche a boca, negro! Está com fome?” (isto para um toureiro mulato). “Recolham esse canivete aleijado!” (para um zebuzinho preto muito magro). “Hu! hu! Tira leite dessa vaca, ó canudo de pito!”

Uma farpa fere um boi na veia; o sangue começa a correr. Enternecimento geral. Para-se a tourada para remendar-se o boi. Laçam-no, cosem-lhe a ferida — operação demorada que consome vinte minutos. Tomado de piedade, o povo não consente que farpeiem os restantes.

Há palhaço — um palhaço que faz jus ao cinturão de ouro do Desenxabimento e da Moleza. Tem preguiça até de andar, preferindo apanhar marradas a correr. Lá quando a banda de música ataca a valsa Amoureuse, o ladrão atravessa a arena dançando. Mas dança com tamanha preguiça que o povo rompe num berreiro: “Lincha o cínico! Mata!”. E chovem-lhe em cima toda sorte de desaforos — e cascas de pinhão...

Remata a festa a “pantomina”, como diz o programa. Consiste no Pançudo, figura de um cômico prodigioso. Tem tanto de largo como de alto. Perfeita esfera encimada por uma cabeça e “embaixada” por dois pés. É um homem acolchoado. Mal aparece, em passinhos miúdos e lentos, uma voz o denuncia: “É o Zé de Mamã! Aí, negro safado!”. E toda a gente morre de rir, adivinhando o pobre preto, muito sério, a suar em bicas dentro da couraça de colchões. O boi investe, marra-o, arremessa-o longe. Os toureiros reerguem-no. Nova investida, novo rebolar. E assim até que o touro, desconfiado, se recuse à pagodeira. Soa por fim o toque de recolher e, todo esburacado, com a palhaça à mostra, lá vai para os bastidores o pobre Zé de Mamã, rolado qual uma pipa.


A ENXADA E O PARAFUSO

Cada terra com seu uso. O nosso teatrinho sempre usou campainha para as chamadas. Campainha é eufemismo. Havia lá dentro uma enxada velha, pendurada de um arame, com um parafuso de cama, cabeçudo, ao lado. Os sinais eram batidos ali.

Veio um mambembe pernóstico e calou a enxada, substituindo os seus sonidos por três pancadas no assoalho.

No primeiro dia o povo da plateia entreolhou-se ao ouvir aquilo, e lá pelo poleiro houve risadas e assobios. O delegado resolveu intervir.

— Este mambembe parece que está mangando conosco!

Explicações. O empresário provou que aquele sistema era a última moda de Paris. Os espectadores remexeram-se, desconfiados. Estavam nessa indecisão, quando o major dirimiu a pendenga com o peso de sua autoridade:

— Mas isto aqui não é Paris!...

— Bravos! Bravos!

E a velha enxada sonorosa voltou a ser tangida com o parafuso de cabeça.


RABULICES

Nos dias de júri reúnem-se os advogados e rábulas na antessala do tribunal, os primeiros a virem, os últimos a saírem, como gente que procura gozar, bem gozado, um ambiente poucas vezes fornecido pelas circunstâncias. E, como peixes n’água, à vontade, dão trela à comichão mexeriqueira da rabulice, esquecendo-se em interminável prosa sobre processos, atos judiciários, movimento forense, nomeações, negócios profissionais, pilhérias jurídicas. As cabeças estão abarrotadas de leis, regulamentos, decretos e fatos jurídicos, de modo a só tomarem conhecimento das relações entre o fato e a lei escrita, e nunca entre o fato e a lei natural — o que é próprio do filósofo. Na natureza só veem coisas fungíveis, infungíveis, móveis, imóveis, semoventes, bens, res nullius, artigos de enfiteuse — a carne e o osso, enfim, da propriedade. Essa janelinha que o artista e o filósofo trazem aberta para a natureza bruta, ou para a humanidade, vistas, uma como turbilhão de forças em perene esfervilhar, outra como oceano de paixões onde se debate o Homo — animal filho da natureza, todo ele vegetação viçosa de instintos irredutíveis —, o homem de leis abre-a para a rede de fios que a Lei trama e destrama, fios que atam os homens entre si ou à Natureza convertida em propriedade.

E toda a maranha velhaca que isso é engloba-se dentro da mais bela concepção do idealismo — a Justiça.


PÉ NO CHÃO

Fica no extremo da rua o Grupo Escolar, de modo que a meninada passa e repassa à frente da minha janela. Notei que muitas crianças sofriam dos pés, pois traziam um no chão e outro calçado. Perguntei a uma delas:

— Que doença de pés é essa? Bicho arruinado?

O pequeno baixou a cabeça com acanhamento; depois confessou:

— É “inconomia”.

Compreendi. Como nos Grupos não se admitem crianças de pé no chão, inventaram as mães pobres aquela pia fraude. Um pé vai calçado; o outro, doente de imaginário mal crônico, vai descalço. Um par de botinas dura assim por dois. Quando o pé de botina em uso fica estragado, transfere-se a doença de um pé para outro, e o pé de botina de reserva entra em funções. Destarte, guardadas as conveniências, fica o dispêndio cortado pelo meio. Acata-se a lei e guarda-se o cobre.

Benditas sejam as mães engenhosas!


BARQUINHA DE PAPEL

Quando chove, logo que passa o aguaceiro e o enxurro transforma a rua num sistema de rios e riachos lamacentos, começam a derivar barquinhas de papel. A casa do Joaquim, o moleque-chefe da rua, vira estaleiro. Saem de lá as grandes, com bandeirolas. A mocinha de frente também deita, a medo, a sua; e quem seguir esta barquinha verá o rapaz moreno, que mora na outra esquina e está à janela, correr à sarjeta, apanhá-la e ler risonho a mensagem a lápis da sua namorada...


O HEREGE

Os filhos do capitão Zarico brincam todos os dias debaixo da minha janela. É a ciranda, é o pegador, é a senhora pastora. A preta Esméria fica o tempo todo com o caçula ao colo, vigiando-os. Ainda hoje estava lá, às voltas com o pequerrucho.

— Quem tirou o toucinho daqui?

— Foi o gato.

— Que é do gato?

— Está no mato.

— Que é do mato?

— O fogo queimou.

— Que é do fogo?

— A água apagou.

— Que é da água?

— O boi bebeu.

— Que é do boi?

— Está dizendo missa...

— Credo! — resmungou a preta. — Tão pequenino e já herege como o pai...


JUQUITA

É Juquita o terror da bicharia miúda. Cães e gatos conhecem-no de longe. Esta manhã encontrei-o a brincar com um sanhaço semimorto que, de repente, não se sabe como, sumiu. O menino procurava-o quando passei.


— Não viu o meu sanhaço? — perguntou-me.

— Com certeza algum gato o pegou — sugeri.

— Gato! — e Juquita riu-se com a maior comiseração da minha ingenuidade. — Não há gato que tenha coragem de chegar perto de mim.


O JESUÍNO

Quando os juízes de fato se fecham (ou são fechados) na sala secreta, ficam à porta de guarda os dois oficiais de justiça. O único interessante é o Jesuíno, mulato velhusco, grandalhão, lento no falar como um carro de boi ladeira acima.

Desfila o seu rosário de aventuras, onde ele sempre trunfa às avessas. Tem absorvido muita pancada, e até cargas de chumbo. Como é homem da lei, não reage senão por meio da lei. É comezinho ir citar um caboclo na roça, ser hospedado a guatambu e vir dar conta ao juiz da façanha com vergões pelo corpo, galos na testa, e às vezes descadeirado. Considera a pancada um osso do ofício. Conta de um soco tão violento que o derribou a duas braças de distância. Como os valentões exageram as proezas, Jesuíno exagera os martírios que padeceu a bem da lei.

Isso no fundo é ganância de gorjetas. A parte por amor da qual levou pancada paga-lhe os galos.

Mas nesse caso do soco há um apêndice — para os colegas, onde não há de vir gorjeta. Conta que mal se ergueu, meio tonto, e se aprumou, o escacha-meirinho veio-lhe para cima de porrete e o desancou sem dó. Mas ele afinal atracou-se ao bicho e conseguiu ferrar-lhe as munhecas no gasnete. Deitou o “sojeito” no chão, socou um joelho na boca do estômago, e leu-lhe na cara o mandado. Só não disse com que mão tirou do bolso o papel (pois as duas estavam ferradas no pescoço do intimado). Mas é pormenor sem importância esse. Depois fugiu a cavalo. Diz que a arma do oficial de justiça é a pena. O “sojeito” puxa pela garrucha; o oficial puxa da pena, tira o papel do bolso, e — Espere aí! Vá berrando e pregando tiros enquanto eu escrevo; vamos a ver quem pode mais!

Carlyle esqueceu de incluir no seu livro famoso esta categoria do herói obscuro da intimação judicial.

Para realce da sua grandeza de alma, contraposta à ferócia do “sojeito”, Jesuíno conta como este lhe apareceu no dia seguinte ao pega. Jesuíno disse consigo: “Vou mostrar como se recebe um inimigo com civilização”. Fê-lo entrar, mandou vir café e não tocou na sova. A folhas tantas o homem quis explicar a sua loucura da véspera. Jesuíno interrompeu: “Eu nada tenho contra o senhor, porque o senhor agravou e esbofeteou mas foi o doutor Juiz e é com ele que tem de avir-se”.

Com esta sutileza vai traspassando ao meritíssimo a bordoeira velha — porque afinal, como “homem”, nunca levou pancada. “Queria só ver esse peitudo que erguesse a mão para mim! Ia parar no inferno!”


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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