(Apólogo)
É velho Torquato dá relevo ao que
conta à força de imagens engraçadas ou apólogos. Ontem explicava o mal da nossa
raça: preguiça de pensar. E restringindo
o asserto à classe agrícola:
— Se o Governo agarrasse um cento
de fazendeiros dos mais ilustres e os trancasse nesta sala, com cem machados naquele
canto e uma floresta virgem ali adiante; e se naquele quarto pusesse uma mesa com
papel, pena e tinta, e lhes dissesse: “Ou vocês pensam meia hora naquele papel ou botam abaixo aquela mata”, daí a cinco
minutos cento e um machados pipocavam
nas perobas!...
A MESMICE
Um coronel inglês suicidou-se “tired
of buttoning and unbuttoning” — cansado de abotoar e desabotoar a farda.
A vida em Oblivion é um perpétuo “buttoning
and unbuttoning” que não desfecha no suicídio.
Salvam-na a botica e o jogo. A botica,
porque nela há uma sessão permanente de mexerico, e o mexerico é a ambrosia dos
lugarejos pobres. E o jogo, porque quem perdeu não pode suicidar-se antes da desforra,
e quem ganhou vai alegre, a cantarolar que afinal de contas a vida é boa. Dessa
forma escapam todos ao cansaço da mesmice.
A FOLHINHA
A folhinha inventou-a algum boticário
do interior para uso de sua cidade-aldeia, onde correm os dias tão iguais e parecidos
que só por meio dela podemos distinguir uma segunda duma terça ou quarta-feira.
Um só dia tem feição própria: o domingo.
Assinala-o a roupa limpa, a roupa nova, a roupa preta que surge pelas ruas a tomar
sol no corpo de toda gente. Redobram de movimento as praças. Caras novas de gente
extramuros dão ares de sua graça. Há mercado cedo, missas até as onze; depois, pelo
resto da tarde, continuam a assinalar o Dia do Senhor caboclos e negros encachaçados,
aglomerados pelas vendas. Vendem elas mais pinga nesse dia do que durante a semana
inteira. Todos voltam para casa mais ou menos chumbeados. Os “de cair” dormem na
cidade. Os de pinga exaltada, no xadrez. E assim transcorre o belo domingo sem necessidade
de irmos à folhinha para sabermos que dia é.
TOURADAS
Transformaram o antigo velódromo em
circo de touros; metade das arquibancadas virou Sombra, a mil-réis; e a outra metade, Sol, a quinhentos. Num camarote enfeitado de cetim amarelo e verde está
um inteligente pegado a laço e imensamente
bronco. Ao seu lado, um clarim tuberculoso;
cada vez que sopra na corneta falta-lhe fôlego para um som completo — e o povo ri-se.
Toureiro de verdade há um, o Antônio
Corajoso, empresário, bilheteiro e assessor do inteligente. Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o competente
rabicho, completam a cuadrilla.
A cada passinho Corajoso berra para
o inteligente: “Dê ordem de recolhida,
faça isto, faça aquilo”. E o pobre-diabo se vê tonto para conciliar uma burrice
inata com os deveres do cargo.
O povo vaia ou aplaude num tom amolecado
que é toda a graça da festa. Reles, mas divertido. “Feche a boca, negro! Está com
fome?” (isto para um toureiro mulato). “Recolham esse canivete aleijado!” (para
um zebuzinho preto muito magro). “Hu! hu! Tira leite dessa vaca, ó canudo de pito!”
Uma farpa fere um boi na veia; o sangue
começa a correr. Enternecimento geral. Para-se a tourada para remendar-se o boi.
Laçam-no, cosem-lhe a ferida — operação demorada que consome vinte minutos. Tomado
de piedade, o povo não consente que farpeiem os restantes.
Há palhaço — um palhaço que faz jus
ao cinturão de ouro do Desenxabimento e da Moleza. Tem preguiça até de andar, preferindo
apanhar marradas a correr. Lá quando a banda de música ataca a valsa Amoureuse, o ladrão atravessa a arena dançando.
Mas dança com tamanha preguiça que o povo rompe num berreiro: “Lincha o cínico!
Mata!”. E chovem-lhe em cima toda sorte de desaforos — e cascas de pinhão...
Remata a festa a “pantomina”, como
diz o programa. Consiste no Pançudo, figura
de um cômico prodigioso. Tem tanto de largo como de alto. Perfeita esfera encimada
por uma cabeça e “embaixada” por dois pés. É um homem acolchoado. Mal aparece, em
passinhos miúdos e lentos, uma voz o denuncia: “É o Zé de Mamã! Aí, negro safado!”.
E toda a gente morre de rir, adivinhando o pobre preto, muito sério, a suar em bicas
dentro da couraça de colchões. O boi investe, marra-o, arremessa-o longe. Os toureiros
reerguem-no. Nova investida, novo rebolar. E assim até que o touro, desconfiado,
se recuse à pagodeira. Soa por fim o toque de recolher e, todo esburacado, com a
palhaça à mostra, lá vai para os bastidores o pobre Zé de Mamã, rolado qual uma
pipa.
A ENXADA E O PARAFUSO
Cada terra com seu uso. O nosso teatrinho
sempre usou campainha para as chamadas. Campainha é eufemismo. Havia lá dentro uma
enxada velha, pendurada de um arame, com um parafuso de cama, cabeçudo, ao lado.
Os sinais eram batidos ali.
Veio um mambembe pernóstico e calou
a enxada, substituindo os seus sonidos por três pancadas no assoalho.
No primeiro dia o povo da plateia
entreolhou-se ao ouvir aquilo, e lá pelo poleiro houve risadas e assobios. O delegado
resolveu intervir.
— Este mambembe parece que está mangando
conosco!
Explicações. O empresário provou que
aquele sistema era a última moda de Paris. Os espectadores remexeram-se, desconfiados.
Estavam nessa indecisão, quando o major dirimiu a pendenga com o peso de sua autoridade:
— Mas isto aqui não é Paris!...
— Bravos! Bravos!
E a velha enxada sonorosa voltou a
ser tangida com o parafuso de cabeça.
RABULICES
Nos dias de júri reúnem-se os advogados
e rábulas na antessala do tribunal, os primeiros a virem, os últimos a saírem, como
gente que procura gozar, bem gozado, um ambiente poucas vezes fornecido pelas circunstâncias.
E, como peixes n’água, à vontade, dão trela à comichão mexeriqueira da rabulice,
esquecendo-se em interminável prosa sobre processos, atos judiciários, movimento
forense, nomeações, negócios profissionais, pilhérias jurídicas. As cabeças estão
abarrotadas de leis, regulamentos, decretos e fatos jurídicos, de modo a só tomarem
conhecimento das relações entre o fato e a lei escrita, e nunca entre o fato e a
lei natural — o que é próprio do filósofo. Na natureza só veem coisas fungíveis,
infungíveis, móveis, imóveis, semoventes, bens, res nullius, artigos de enfiteuse
— a carne e o osso, enfim, da propriedade. Essa janelinha que o artista e o filósofo
trazem aberta para a natureza bruta, ou para a humanidade, vistas, uma como turbilhão
de forças em perene esfervilhar, outra como oceano de paixões onde se debate o Homo — animal filho da natureza, todo ele
vegetação viçosa de instintos irredutíveis —, o homem de leis abre-a para a rede
de fios que a Lei trama e destrama, fios que atam os homens entre si ou à Natureza
convertida em propriedade.
E toda a maranha velhaca que isso
é engloba-se dentro da mais bela concepção do idealismo — a Justiça.
PÉ NO CHÃO
Fica no extremo da rua o Grupo Escolar,
de modo que a meninada passa e repassa à frente da minha janela. Notei que muitas
crianças sofriam dos pés, pois traziam um no chão e outro calçado. Perguntei a uma
delas:
— Que doença de pés é essa? Bicho
arruinado?
O pequeno baixou a cabeça com acanhamento;
depois confessou:
— É “inconomia”.
Compreendi. Como nos Grupos não se
admitem crianças de pé no chão, inventaram as mães pobres aquela pia fraude. Um
pé vai calçado; o outro, doente de imaginário mal crônico, vai descalço. Um par
de botinas dura assim por dois. Quando o pé de botina em uso fica estragado, transfere-se
a doença de um pé para outro, e o pé de botina de reserva entra em funções. Destarte,
guardadas as conveniências, fica o dispêndio cortado pelo meio. Acata-se a lei e
guarda-se o cobre.
Benditas sejam as mães engenhosas!
BARQUINHA DE PAPEL
Quando chove, logo que passa o aguaceiro
e o enxurro transforma a rua num sistema de rios e riachos lamacentos, começam a
derivar barquinhas de papel. A casa do Joaquim, o moleque-chefe da rua, vira estaleiro.
Saem de lá as grandes, com bandeirolas. A mocinha de frente também deita, a medo,
a sua; e quem seguir esta barquinha verá o rapaz moreno, que mora na outra esquina
e está à janela, correr à sarjeta, apanhá-la e ler risonho a mensagem a lápis da
sua namorada...
O HEREGE
Os filhos do capitão Zarico brincam
todos os dias debaixo da minha janela. É a ciranda, é o pegador, é a senhora pastora.
A preta Esméria fica o tempo todo com o caçula ao colo, vigiando-os. Ainda hoje
estava lá, às voltas com o pequerrucho.
— Quem tirou o toucinho daqui?
— Foi o gato.
— Que é do gato?
— Está no mato.
— Que é do mato?
— O fogo queimou.
— Que é do fogo?
— A água apagou.
— Que é da água?
— O boi bebeu.
— Que é do boi?
— Está dizendo missa...
— Credo! — resmungou a preta. — Tão
pequenino e já herege como o pai...
JUQUITA
É Juquita o terror da bicharia miúda.
Cães e gatos conhecem-no de longe. Esta manhã encontrei-o a brincar com um sanhaço
semimorto que, de repente, não se sabe como, sumiu. O menino procurava-o quando
passei.
— Não viu o meu sanhaço? — perguntou-me.
— Com certeza algum gato o pegou —
sugeri.
— Gato! — e Juquita riu-se com a maior
comiseração da minha ingenuidade. — Não há gato que tenha coragem de chegar perto
de mim.
O JESUÍNO
Quando os juízes de fato se fecham
(ou são fechados) na sala secreta, ficam à porta de guarda os dois oficiais de justiça.
O único interessante é o Jesuíno, mulato velhusco, grandalhão, lento no falar como
um carro de boi ladeira acima.
Desfila o seu rosário de aventuras,
onde ele sempre trunfa às avessas. Tem absorvido muita pancada, e até cargas de
chumbo. Como é homem da lei, não reage senão por meio da lei. É comezinho ir citar
um caboclo na roça, ser hospedado a guatambu e vir dar conta ao juiz da façanha
com vergões pelo corpo, galos na testa, e às vezes descadeirado. Considera a pancada
um osso do ofício. Conta de um soco tão violento que o derribou a duas braças de
distância. Como os valentões exageram as proezas, Jesuíno exagera os martírios que
padeceu a bem da lei.
Isso no fundo é ganância de gorjetas.
A parte por amor da qual levou pancada paga-lhe os galos.
Mas nesse caso do soco há um apêndice
— para os colegas, onde não há de vir gorjeta. Conta que mal se ergueu, meio tonto,
e se aprumou, o escacha-meirinho veio-lhe para cima de porrete e o desancou sem
dó. Mas ele afinal atracou-se ao bicho e conseguiu ferrar-lhe as munhecas no gasnete.
Deitou o “sojeito” no chão, socou um joelho na boca do estômago, e leu-lhe na cara
o mandado. Só não disse com que mão tirou do bolso o papel (pois as duas estavam
ferradas no pescoço do intimado). Mas é pormenor sem importância esse. Depois fugiu
a cavalo. Diz que a arma do oficial de justiça é a pena. O “sojeito” puxa pela garrucha;
o oficial puxa da pena, tira o papel do bolso, e — Espere aí! Vá berrando e pregando
tiros enquanto eu escrevo; vamos a ver quem pode mais!
Carlyle esqueceu de incluir no seu
livro famoso esta categoria do herói obscuro da intimação judicial.
Para realce da sua grandeza de alma,
contraposta à ferócia do “sojeito”, Jesuíno conta como este lhe apareceu no dia
seguinte ao pega. Jesuíno disse consigo: “Vou mostrar como se recebe um inimigo
com civilização”. Fê-lo entrar, mandou vir café e não tocou na sova. A folhas tantas
o homem quis explicar a sua loucura da véspera. Jesuíno interrompeu: “Eu nada tenho
contra o senhor, porque o senhor agravou e esbofeteou mas foi o doutor Juiz e é
com ele que tem de avir-se”.
Com esta sutileza vai traspassando
ao meritíssimo a bordoeira velha — porque afinal, como “homem”, nunca levou pancada.
“Queria só ver esse peitudo que erguesse a mão para mim! Ia parar no inferno!”
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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