Uma história de mil anos
— Hu... hu...
E como
nos ínvios da mata soluça a juriti.
Dois hus — um que sobe, outro que desce.
O destino
do u!... Veludo verde-negro transmutado em som — voz das tristezas sombrias. Os
aborígenes, maravilhosos denominadores das coisas, possuíam o senso
impressionista da onomatopeia. Urutau,
uru, urutu, inambu — que sons definirão melhor essas criaturinhas
solitárias, amigas da penumbra e dos recessos?
A juriti,
pombinha eternamente magoada, é toda us.
Não canta, geme em u — geme um gemido
aveludado, lilás, sonorização dolente da saudade.
O caçador
passarinheiro sabe como ela morre sem luta ao mínimo ferimento. Morre em u...
Já o
sanhaço é todo as. Ferido, debate-se,
desfere bicadas, pia lancinante.
A juriti
apaga-se como chama de algodão, frágil torrão de vida, extingue-se como se
extingue a vida do torrão de açúcar ao simples contato da água. Um u que se funde.
Como
vivem e morrem juritis, assim viveu e morreu Vidinha, a linda criança afinada
em u. E como não seria assim, se era
Vidinha uma juriti humana — meiguice feita menina-e-moça, begônia sensível dos
grotões?
Que amiga
dos contrastes é a natureza!
Ali
naquele barranco crescem no árido as samambaias. Rijas, ásperas, corajosas,
resistem aos ventos, aos enxurros, ao cargueiro que as esbarra, ao viandante
distraído que as chicoteia. Batidas, reerguem-se. Cortadas, rebrotam.
Esmagadas, reviçam. Cínicas!
Mais
adiante, na grota fria onde tudo é sombra e cerração, ergue-se a espaços, em
meio dos caetés valentes e dos fetos rendados, a solitária begônia.
Tímida e
frágil, o menor contato a magoa. Toda ela — caule, folhas, flores — é a mesma
carne tenra de criança.
Sempre os
contrastes.
Os
eleitos da sensibilidade, os mártires da dor — e os fortes. A juriti e o
sanhaço. A begônia e a samambaia.
Vidinha,
a inocente criança, era juriti e begônia.
O
Destino, como os sábios, também faz suas experiências. Permite vidas a título
de experiência, na tentativa de aclimar na terra seres que não são da terra.
— Vingará
Vidinha, solta no mundo em meio da alcateia humana?
Janeiro.
Dia de mormaço a envolver o mundo sob a curva do céu imensamente azul.
A casa
onde mora Vidinha é a única das cercanias, garça pousada no oceano verde-sujo
das samambaias e sapezeiros.
Que
terra! Ondula em mamelões verdolengos até encontrar o céu, longe, no horizonte.
Hispidez, aridez — terra outrora bendita, que o homem, senhor do fogo, transfez
em deserto maldito.
Os olhos
pervagam: cá e lá, até aos confins, sempre o chamalote verde-oliva da samambaia
áspera — esse musgo da esterilidade.
Entristece,
aquilo. Cansa a vista o sem-fim da morraria nua de árvores — e o consolo é
pousar os olhos na pombinha branca da casinhola.
Como a
cal das paredes cintila ao sol! E como nos enleva a alma sua pequenina moldura
de árvores domésticas! Aquele pé de espirradeira todo florido; o cercado de
taquara; a horta, o canteirinho de flores; o poleiro das aves nos fundos sob a
fronde da guabirobeira...
Vidinha é
a manhã da casa. Vive entre duas estações: a mãe
— Um
outono, e o pai — inverno em começos. Ali nasceu e cresceu. Ali morrerá.
Inocente e ingênua, do mundo só conhece o centímetro quadrado de inundo que é o
pequeno sítio paterno. Imagina as coisas — não as sabe. O homem: seu pai.
Quantos homens haja, todos serão assim: bons e pais. A mulher: sua mãe — um
tudo.
Bichos? O
gato, o cão, o galo índio que canta pela alvorada, as galinhas suras. Sabe por
ouvir dizer de outros muitos: da onça — gatão feroz; da anta — bicho enorme; da
capivara — porco dos rios; da sucuri — cobra “desta” grossura! Veados e pacas
já viu diversos mortos nas caçadas.
Longe do
ermo onde está o sítio, é o mundo. Há nele cidades — casas e mais casas,
pequenas e grandes, em linha, com estradas pelo meio a que chamam ruas. Nunca
as viu, sonha-as. Sabe que nelas moram os ricos, seres de outra raça, poderosos
que compram fazendas, plantam cafezais e mandam em tudo.
As ideias
que povoam sua cabecinha bebeu-as ali na conversa caseira dos pais.
Um Deus
no céu, bom, imenso, que tudo vê e ouve até o que a boca não diz. Ao lado dele,
Nossa Senhora, tão boa, resplandecente, rodeada de anjos...
Os anjos!
Crianças de asas e longas túnicas esvoaçantes. No oratório da casa há o retrato
de um.
Seus
prazeres: a vida da casa, os incidentes do terreiro.
— Venha
ver, mamãe, depressa!...
-Alguma
bobagem...
—... O
pintinho sura trepado nas costas do capão peva, tenteando-se nas asinhas! Venha
ver que galanteza. Ei, ei... caiu!
Ou:
—
Brinquinho quer por força pegar a cauda. Está que parece um pião, corrupiando.
E bonita?
Vidinha o ignora. Não se conhece, não faz de si nenhuma ideia. Se nem espelho
possui... E, no entanto, linda, dessa lindeza das telas raras que jazem fora de
moldura nos desvãos ignorados. Vestida à maneira dos pobrezinhos, vale o que
não está vestido: o corado das faces, a expressão de inocência, o olhar de
criança, as mãos irrequietas. Tem a beleza das begônias silvestres. Deem-lhe um
vaso de porcelana e cintilará.
Cinderela,
a eterna história...
O pai
vive na luta silenciosa contra a aridez do solo, disputando às formigas, às
geadas, à esterilidade, umas colheitinhas curtas. Não importa. Vive contente. A
mãe moureja o dia inteiro nos trabalhos da casa. Cose, arruma, remenda, varre.
E
Vidinha, entre eles, orquídea que floriu em tronco rude, brinca e sorri. Brinca
e sorri com seus amigos: o cão, o gato, os pintos, as rolas que descem ao
terreiro. Em noites escuras vêm visitá-la, cirandando em torno à casa, seus
amiguinhos luminosos — os vaga-lumes.
Os anos
passam. Os botões se fazem flor.
Um dia
Vidinha entrou a sentir vagas perturbações de alma. Fugia aos brinquedos e
cismava. A mãe notou a mudança.
— Em que
está pensando, menina?
— Não
sei. Em nada... — e suspirou.
A mãe
observou-a inda uns tempos e disse ao marido:
— E lado
de casar Vidinha. Está moça. Já não sabe o que quer.
Mas
casá-la como? Com quem? Não havia ali vizinhos naquele deserto, e a criança
corria o risco de estiolar-se corno flor estéril sem que olhos de homem
casadoiro pusessem reparo em seus encantos.
Não será
assim, todavia. O destino levará por diante mais uma cruel experiência.
O lobo
fareja de longe a menina da capinha vermelha.
A begônia
daquele deserto, filha das selvas, será caça. Será caçada por um caçador...
Está na
idade do sacrifício.
O caçador
não tardará.
Vem
perto, piando de inambu, com a espingarda nas mãos. Trocará de bom grado, vão
ver, os inambus perseguidos pela inocente juriti incauta.
— O de
casa!
— ? ?
— Venho
de longe. Perdi-me nestes carrascais, coisa de dois dias, e não posso comigo de
canseira e fome. Venho pedir pousada.
Os
ermitões do samambaial acolhem de braços abertos o transviado gentil.
Bonito
moço da cidade. Bem-falante, maneiroso — uma sedução!
Como são
belos os gaviões caçadores de inocências...
Deixou-se
ficar a semana inteira. Contava coisas maravilhosas. O pai esquecia a roça para
ouvi-lo, e a mãe desleixava a casa. Que sereia!
No pomar,
sob o dossel das laranjeiras abotoadas:
— Nunca
pensou em sair daqui, Vidinha?
— Sair?
Aqui tenho casa, pai, mãe — tudo...
-Acha muito
isso? Oh, lá fora é que é o lindo! Que maravilha é lá fora! O mundo! As
cidades! Aqui é o deserto, prisão horrível, aridez, melancolia...
E ia
contando contos das Mil e Uma Noites
sobre a vida das cidades. Dizia do luxo, da magnificência, das festas, das
pedrarias que cintilam, das sedas que acariciam o corpo, dos teatros, da música
inebriante.
— Mas
isso é um sonho...
O
príncipe confirmava.
— A vida
lá fora é um sonho.
E
desfiava rosários inteiros de sonhos.
Vidinha,
num deslumbramento, murmurava:
— E lindo!
Mas tudo só para ricos.
— Para os
ricos e para a beleza. Beleza vale mais que riqueza — e Vidinha é bela!
— Eu?...
O espanto
da criança...
— Bela,
sim — e riquíssima, se o quiser. Vidinha é diamante a lapidar. É Cinderela,
hoje no borralho, amanhã princesa. Seus olhos são estrelas de veludo.
— Que
ideia...
— Sua
boca, ninho de colibri feito para o beijo...
— !...
A
iniciação começa. E tudo na alma de Vidinha se aclara. As ideias vagas se
definem. Os hieróglifos do coração se decifram. Compreende a vida enfim. Sua
inquietação era amor, em casulo ainda, a agitar-se nas trevas. Amor sem objeto,
perfume sem destino. O amor é febre da idade, e Vidinha chegara à idade da
febre sem o saber. Sentia-lhe o queimor no coração, mas ignorava. E sonhava.
Tinha
agora a chave de tudo. O príncipe encantado viera afinal. Estava ali ele, o
grande mago de palavras maravilhosas, senhor do Abre-te Sésamo da Felicidade.
E o
casulo do amor rompeu-se — e a crisálida do amor, ébria de luz, fez-se ardente
borboleta de amor...
O gavião
da cidade, fino de faro, havia descido no momento oportuno. Dizia-se doente e
ia ficando. Sua doença chamava-se — desejo. Desejo de caçador. Ânsia de caçador
por mais uma perdiz.
E a
perdiz veio-lhe para as garras, fascinada pela estonteante miragem do amor.
O
primeiro beijo...
A florada
maravilhosa dos beijos...
O último
beijo, à noite...
Pela
manhã do décimo dia:
— Que é
do caçador?
Fugira...
Já não
recendem os manacás. São negras as flores do jardim. Não brilham as estrelas do
céu. Não cantam os passarinhos. Não luzem os vaga-lumes. O sol não alumia. A
noite só traz pesadelos,
Uma coisa
só não mudou: o hu, hu magoado da
juriti lá no recesso das grotas.
Os dias
de Vidinha são agora vagueios agitados pelo campo. Detém-se às vezes ante uma
flor, de olhos parados, como recrescidos no rosto. E monologa mentalmente:
—
Vermelha? Mentira. Cheirosa? Mentira. Tudo mentira, mentira, mentira...
Mas
Vidinha é juriti, corpo e alma afinados em u.
Não desespera, não luta, não explode. Chora por dentro e definha. Begônia
silvestre que o passante brutal chicoteou, dobra no hastil quebrado, pende para
a terra e murcha. Chama de algodão... Torrão de açúcar...
Estava
concluída a experiência do Destino. Mais uma vez provava-se que não vive na
terra o que não é da terra.
Uma
cruz...
E dali
por diante, se alguém falava em Vidinha, o velho pai murmurava:
— Era a
nossa luz de alegria. Apagou-se...
E a mãe
lacrimejante:
— Não me
sai da memória a última palavra dela: “Agora um beijo, mamãe, um beijo seu...”
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...