Todas as crueldades de que foi useira
a Inquisição para reduzir heréticos, as torturas requintadas da “questão” medieval,
o empalamento otomano, o suplício chinês dos mil pedaços, o chumbo em fusão metido
a funil gorgomilos adentro — toda a velha ciência de martirizar subsiste ainda hoje
encapotada sob hábeis disfarces. A humanidade é sempre a mesma cruel chacinadora
de si própria, numerem-se os séculos anterior ou posteriormente a Cristo. Mudam
de forma as coisas; a essência nunca muda. Como prova denuncia-se aqui um avatar
moderno das antigas torturas: o estafetamento.
Este suplício vale o torniquete, a
fogueira, o garrote, a polé, o touro de bronze, a empalação, o bacalhau, o tronco,
a roda hidráulica de surrar. A diferença é que estas engenharias matavam com certa
rapidez, ao passo que o estafetamento prolonga por anos a agonia do paciente.
Estafeta-se um homem da seguinte maneira:
o Governo, por malévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do “familiar”
do Santo Ofício, nomeia um cidadão estafeta do correio entre duas cidades convizinhas
não ligadas por via férrea.
O ingênuo vê no caso honraria e negócio.
É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente
devoram o país; é negócio lambiscar ao termo de cada mês um ordenado fixo, tendo
arrumadinha, no futuro, a cama fofa da aposentadoria.
Note-se aqui a diferença entre os
ominosos tempos medievos e os sobre-excelentes da democracia de hoje. O absolutismo
agarrava às brutas a vítima e, sem tir-te nem habeas corpus, trucidava-a;
a democracia opera com manhas de Tartufo, arma arapucas, mete dentro rodelas de
laranja e espera aleivosamente que, sponte sua, caia no laço o passarinho. Quer
vítimas ao acaso, não escolhe. Chama-se a isto — arte pela arte...
Nomeado que é o homem, não percebe
a princípio a sua desgraça. Só ao cabo de um mês ou dois é que entra a desconfiar;
desconfiança que por graus se vai fazendo certeza, certeza horrível de que o empalaram
no lombilho duro do pior matungo das redondezas, com, pela frente, cinco, seis,
sete léguas de tortura a engolir por dia, de mala postal à garupa.
Eis as puas do aparelho de tormento,
as tais léguas! Para o comum dos mortais, uma légua é uma légua; é a medida duma
distância que principia aqui e acaba lá. Quem viaja, feito o percurso, chega e é
feliz.
As léguas do estafeta, porém, mal
acabam voltam “da capo”, como nas músicas. Vencidas as seis (suponhamos um caso
em que sejam só seis) renascem na sua frente de volta. É fazê-las e desfazê-las.
Teia de Penélope, rochedo de Sísifo, há de permeio entre o ir e o vir a má digestão
do jantar requentado e a noite maldormida; e assim um mês, um ano, dois, três, cinco,
enquanto lhes restarem, a ele nádegas e ao sendeiro lombo.
Quando cruza um viandante a jornadear,
morde-o a inveja: aquele breve “chegará”, ao passo que para o estafeta tal verbo
é uma irrisão. Mal apeia, derreado, com o coranchim em fogo, ao termo dos trinta
e seis mil metros da caminheira, come lá o mau feijão, dorme lá a má soneca e a
aurora do dia seguinte estira-lhe à frente, à guisa de “Bom dia!”, os mesmos trinta
e seis mil metros da véspera, agora espichados ao contrário...
Breve o animal, pisado, dá de si,
fraqueia. Já os topes o cavaleiro galga a pé. Não possui meios de adquirir outra
montada. O ordenado vai-se-lhe em milho e “rapador” para a alimária, água de sal
para os semicúpios e mais remédios às pisaduras de ambos, cavalgante e cavalgado.
Não sobeja sequer para roupa.
Dá-lhe o Estado — o mesmo que custeia
enxundiosas taturanas burocráticas
a contos por mês, e baitacas parlamentares
a duzentos mil-réis por dia —, dá-lhe o generoso Estado... cem mil-réis mensais.
Quer dizer, “um real” por nove braças de tormento. Com um vintém paga-lhe trezentos
e trinta metros de suplício. Vem a sair a sessenta réis o quilômetro de martírio.
Dor mais barata é impossível.
O estafeta entra a definhar de canseira
e fome. Vão-se-lhe as carnes, as bochechas encovam, as pernas viram parênteses dentro
dos quais mora a barriga do desventurado rocim.
Além das calamidades fisiológicas,
econômicas e sociais, chovem-lhe em cima as meteorológicas. O tempo inclemente não
lhe poupa judiarias.
No verão não se dói o sol de assá-lo
como se assam pinhões nas cinzas. Se chove, de nenhuma gota se livra. Pelos fins
de maio, à entrada do frio, é entanguido como um súdito de Nicolau exilado nas Sibérias
que devora as léguas infernais. No dia de são Bartolomeu, agarrado de unhas à crina
da escanzelada égua, é por milagre que não os despeja a ambos, perambeiras abaixo,
o endemoninhado vento.
O patrão-Governo pressupõe que ele
é de ferro e suas nádegas são de aço; que o tempo é um permanente céu com “brisas
fagueiras” ocupadas em soprar sobre os caminhantes os olores da “balsamina em flor”.
Pressupõe ainda que os cem mil-réis
do salário são uma paga real de lamber as unhas. E, nestas angelicais pressuposições,
quando há crises financeiras e lhe lembram economias, corta seus cinco, seus dez
mil-réis no pingue ordenado, para que haja sobras permitidoras de ir à Europa um
genro em comissão de estudos sobre “a influência zigomática do periélio solar no
regime zaratústrico das democracias latinas”.
E assim o exército dos estafetas,
dia a dia mais encanifrado, encalacrado de dívidas, enchagado de pisaduras, ao sol
de dezembro ou à garoa entanguente de junho, trota, trota sem cessar, morro acima,
morro abaixo, por atoleiros e areões, caldeirões e escorregadouros, sacudido pela
miseranda cavalgadura que de tanto padecer, coitada, já nem jeito de cavalo tem.
O lombo delas é todo uma chaga viva;
as costelas, um ripado. Caricaturas contristadoras do nobre Equus, um dia rebentam
de fome, exaustas, a meio de viagem.
O estafeta toma às costas os arreios,
a mala, e conclui a caminheira a pé. Nesse dia chega fora de horas, e o agente do
correio oficia ao centro sobre a “irregularidade”.
O centro move-se; faz correr um papelório
através de várias salas onde, comodamente espapaçada em poltronas caras, a burocracia
gorda palestra sobre espiões alemães. Depois de demorada viagem o papelório chega
a um gabinete onde impa em secretária de imbuia, fumegando o seu charuto, um sujeito
de boas carnes e ótimas cores. Este vence dois contos de réis por mês; é filho de
algo; é cunhado, sogro ou genro de algo; entra às onze e sai às três, com folga
de permeio para uma “batida” no frege da esquina.
O canastrão corre os olhos mortiços
de lombeira por sobre o papel e grunhe:
— Estes estafetas, que malandros!
E assina a demissão daquele a bem
do serviço público.
(E se isso não acontece, acontece
pior. Certa vez o agente do correio duma cidadezinha paulista oficiou ao centro
queixando-se do estafeta. O centro respondeu autorizando-o a “punir com severidade
o faltoso”. O agente medita a sério sobre o caso; depois, mostrando o ofício ao
estafeta, e com muita dor de coração, ferra-lhe em nome do Governo a maior sova
de chicote de que há memória no lugar. Em seguida oficia ao centro dando conta do
desempenho da missão e declarando que o serviço ficaria interrompido por uma quinzena,
visto o paciente estar de cama, a curar-se com salmoura...)
O supliciado, posto no olho da rua,
sem saúde, sem cavalo, sem nádegas, coberto de dívidas, com o fígado e mais vísceras
fora do lugar em virtude do muito que “chacoalharam”, vê-se logo rodeado pela chusma
de credores, ávidos como urubus de charqueada. Como está nu, mais nu que Jó, não
pode pagar a nenhum — e ganha fama de caloteiro.
— Parecia um homem sério, e no entanto
roubou-me cinco alqueires de milho — diz o da venda, calabrês gordo, enricado no
passamento de notas falsas.
— Tomou-me emprestados 100 mil-réis
para a compra de um cavalo, a jurinho de amigo (cinco por cento ao mês), já lá vão
cinco anos, e por muito favor pagou-me o premiozinho e deu os arreios por conta.
Que ladrão! — diz o onzeneiro, sócio do outro na nota falsa.
A loja de fazenda chora umas calças
de algodão mineiro que lhe fiou em tempo. A farmácia, um quilo de sal-amargo falsificado.
Abeberado de insultos, o mártir só vê pela frente uma saída: fincar o pé na estrada
e fugir... fugir para uma terra qualquer onde o desconheçam e o deixem morrer em
paz.
Destarte, o moderno suplício do estafetamento,
além de charquear as carnes duma criatura humana limpa de crimes, dá-lhe ainda de
lambuja uma bela mortezinha moral. Tudo isto a fim de que não falte aos soletradores
de tais e tais bibocas do sertão o pábulo diário da graxa preta em fundo branco,
por meio do qual se estampam em língua bunda as facadas que Pé Espalhado deu em
Camisa Preta, o queijo que furtou Baianinho ao Manoel da Venda, o romance traduzido
de Jorge Ohnet, o salvamento da pátria pela alta volataria nacional, o palavreado
gordo das ligas disto e daquilo, a descoberta de espiões onde nada há que espiar,
a policultura, o zebu, o analfabetismo, o aliadismo, o germanismo, as potocas da
Havas e quanta papalvice grela por massapês e terras roxas deste país das arábias.
A política do coronel Evandro em Itaoca
deu com o rabo na cerca desde que em tal pleito o competidor Fidêncio, também coronel,
guindou a cotação dos votos de gravata a quinhentos mil-réis, e a dos votos de pé
no chão a dois parelhos de roupa, mais um chapéu.
O primeiro ato do vencedor foi correr
a vassoura do Olho da Rua em tudo quanto era olhodarruável em matéria de funcionalismo
público. Entre os varridos estava a gente do correio, inclusive o estafeta, para
cuja substituição inculcou-se ao Governo o Izé Biriba.
Era este Biriba um caranguejo humano,
lerdo de maneiras e atolambado de ideias, com dois percalços tremendos na vida —
a política e o topete.
O topete consistia num palmo de grenha
teimosa em lhe cair sobre a testa, e tão insistente nisto que gastava ele metade
do dia erguendo a mão esquerda à altura da fronte para, num movimento maquinal,
botar pra arriba a crina rebelde. A política escusa dizer o que é.
Coligados ambos, topete e política
comiam-lhe o tempo inteiro, de jeito a não lhe deixar folga nenhuma para o amanho
do sítio, que, afinal, roído pelo cupim da hipoteca, lá foi parar nas unhas dum
onzeneiro ladrão.
Montou em seguida botequim mas faliu.
Enquanto Biriba arrumava o topete os fregueses surrupiavam-lhe os mata-bichos; e
nas cavaqueiras políticas os correligionários, de passo que expeliam diatribes contra
o governo, sorviam capilés refrescantes e mascavam bolinhos de peixe por conta da
vitória futura.
Além do topete tinha Biriba o sestro
do “sim senhor” alçado às funções de vírgula, ponto e vírgula, dois-pontos e ponto
final de todas as parvoiçadas emitidas pelo parceiro; e às vezes, pelo hábito, quando
o freguês parando de falar entrava a comer, continuava ele escandindo a “sim senhores”
a mastigação do bolinho filado.
Ao tempo da queda do outro e subida
de sua gente, andava Biriba reduzido à conspícua posição de “fósforo” eleitoral.
No pleito trabalhara como nenhum. Deram-lhe as piores missões — acuar eleitores
tabaréus embibocados nos socavões das serras, negociar-lhes a consciência, debater
preço de votos, barganhá-los com éguas lazarentas e provar aos desconfiados, com
argumentos de cochicho ao ouvido, que o Governo estava com eles.
Após a vitória sentiu pela primeira
vez um gozo integral de coração, cabeça e estômago.
Vencer! Oh, néctar! Oh, ambrosia incomparável!
O nosso homem regalou as vísceras
com o petisco dos deuses. Até que enfim os negrores da vida de misérias lhe alvorejavam
em aurora. Comer à farta, serrar de cima... Delícias do triunfo!
Que lhe daria o chefe?
No antegozo da pepineira iminente,
viveu a rebolar-se em cama de rosas até que rebentou sua nomeação para o cargo de
estafeta.
Sem queda para aquilo, quis relutar,
pedir mais; na conferência que teve com o chefe, entretanto, as objeções que lhe
vinham à boca transmutavam-se no habitual “sim senhor”, de modo a convencer o coronel
de que era aquilo o seu ideal.
— Veja, Biriba, quanto vale a felicidade!
Pilha um empregão! Vai Regino para agente e você para estafeta.
O mais que ele pôde alegar foi que
não tinha cavalgadura.
— Arranja-se — resolveu de pronto
o coronel. — Tenho lá uma égua moura legítima, de passo picado, que vale duzentos
mil-réis. Por ser para você, dou-a por metade. O dinheiro? É o de menos. Você toma-o
de empréstimo a Leandrinho. Arranja-se tudo, homem.
O arranjo foi adquirir Biriba uma
égua trotona pelo dobro do valor, com dinheiro tomado a três por cento ao tal Leandro,
que outra coisa não era senão o testa de ferro do próprio Fidêncio. Destarte, carambolando,
o matreiro chefe punha a juros o pior sendeiro da fazenda, além de conservar pelo
cabresto da gratidão ao idiota estafetado.
Iniciou Biriba o serviço: seis léguas
diárias a fazer hoje e a desfazer amanhã, sem outra folga além do último dia dos
meses ímpares.
Inda bem se fora devorar as léguas
na só companhia da chupada mala postal. Mas não lhe saiu serena assim a empresa.
Como Itaoca não passasse de mesquinho lugarejo empoleirado no espinhaço da serra
e desprovido de tudo, não transcorria vez sem que os amigos políticos não viessem
com encomendas a aviar na cidade. À hora de partir surgiam aproveitadores com listinhas
de miudezas, ou negras com recados.
— Sinhá disse assim pra suncê comprar
três carretéis de linha cinquenta, um papel de agulhas, uma peça de cadarço branco,
cinco maços de grampo miúdo e, se sobejar um tostão, pra trazer uma bala de apito
pro seu Juquinha.
Todos aqueles artigos existiam em
Itaoca, um tantinho mais caros, porém; o encomendá-los fora visava apenas à economia
do tostão da bala de apito.
— Sim senhor, sim senhor!...
Não lhe escapava da boca outro som,
embora o exasperasse a contínua repetição do abuso.
Além das pequenas encomendas, pouco
trabalhosas, surgiam outras de vulto, como levar um cavalo arreado ao senhor Fulano
que vinha em tal dia, acompanhar a mulher de Etcetrano, e que tais. Tibúrcia, cozinheira
preta do coletor, cada vez que ia de férias descansar à cidade, era Biriba o indicado
para conduzi-la.
Foi como o conheci, guardando cesta
às amazonas. De viagem para Itaoca, a meio caminho topo num homem encavalgado na
mais avariada égua que jamais meus olhos viram. À garupa iam malas do correio e
vários picuás; no santo-antônio, mais picuás além duma vassoura nova enganchada
nos arreios com a palha para cima. Estava parado, em atitude idiotizada, segurando
pelo cabresto um cavalinho de silhão. Abordei-o, pedindo fogo. Aceso o cigarro,
indaguei de quem montava a cavalgadura vazia.
— “Não vê” que estou acompanhando
a dona Engrácia, que é parteira em Itaoca. Ela apeou um bocadinho e...
Ouvi rumor atrás: saía do mato uma
mulheraça rúbida, de saias tufadas de goma, tendo na cabeça um toucadinho coevo
de Sua Majestade Fidelíssima... Para não vexá-la pus-me a caminho, não sem, voltando
a cara de soslaio, regular-me com os apuros do estafeta para entalar nas andilhas
as cinco arrobas da parteira aliviada.
E descomposturas...
— Seu Biriba, não foi linha quarenta
que eu encomendei. O senhor parece bobo!
Quando a fazenda era má:
— Não viu que a chita desbotava? Que
moda!
Doía-lhe, sobretudo, carretear para
a execrável gente da oposição. O coronel contrário não se pejava de por intromissão
de terceiro, neutro ou oposicionista encapotado, abusar da boa-fé do mártir. Lembrava-se
Biriba, com dor de alma, de um bode de raça que lhe dera grandes trabalhos pelo
caminho — e várias marradas de lambuja; afinal, chegando, verificou que vinha para
o inimigo.
Toda gente gozou do caso, entre espirros
de riso e galhofa.
— É um pax-vóbis Biriba! Trazer o
bode da oposição! Quiá! quiá! quiá! Estas e outras foram-lhe azedando os fígados
e as vísceras circunvizinhas.
Biriba emagreceu. Biriba amarelou.
A égua, coitada, perdeu a feição cavalar.
Seu lombo selara em meia-lua, de modo que por um nadinha não raspavam o chão os
pés do cavaleiro. Montado, Biriba afundava. Sua cabeça caía quase ao nível duma
linha tirada da anca às orelhas da égua. Horrendamente pisada, trazia a bicha nos
olhos permanentes lágrimas de dor; mas em vez de tanta mazela mover ao dó o coração
dos itaoquenses, regalava-os, e eram chufas sem fim e piadas idiotas acerca do “Estafeta
da Triste Figura mais a sua Bucéfala”, como os batizou um engraçado local.
Lazarento como eles, só o Cunegundes,
cão sem dono, coberto de sarna, que perambulava a esmo pela cidade, fugindo a moscas
e pontapés. Pois não lhe mudaram o nome para Biribinha? Cachorrada!
Não tardou muito viesse o Governo
dar sua volta ao torniquete, cortando dez mil-réis no ordenado dos estafetas — para
salvar-se em certa ocasião de apuros financeiros. E salvou-se, esta é que é!...
A roupa no fio. À entrada das chuvas
uma alma caridosa deu-lhe uma velha capa de borracha; mas no primeiro aguaceiro
verificou Biriba que tal capote vazava como peneira, de modo a piorar-lhe a situação
com a sobrecarga dum panejamento absorvedor de litros de água.
Biriba, perdida a paciência, murmurou.
Ai! Soube-o logo o chefe e fê-lo vir
a contas.
— É certo que o senhor me anda arrenegando
do emprego que lhe demos? Queria, acaso, ser eleito senador ou vice-presidente?
Um pedaço de porcalhão que andava aí lambendo embira, morre não morre de fome, passa,
por generosidade nossa, a ocupar um cargo federal com ordenado relativamente bom
(aqui Biriba tossiu um... “Sim senhor”), encontra todas as facilidades, recebe um
bom animal e ainda se queixa? Que quer então Vossa Excelência?
Biriba entumeceu-se de coragem e declarou
querer uma coisa só: a demissão. Estava doente, surradíssimo, ameaçado de perder
de um momento para outro a égua e as nádegas. Queria mudar de vida.
— Muda-se, então, de vida assim do
pé pra mão? Quer abandonar os amigos? E a disciplina partidária onde fica, meu caro
palerma?
Não convinha a ninguém a saída do
Biriba. Quem mais serviçal? Lembravam-se dos estafetas anteriores, malcriados, inimigos
de trazer um papel de agulha fosse para quem fosse. Não sairia. Itaoca impunha-lhe
o sacrifício de ficar.
Mas a tortura do diário chocalhar
por sete léguas das vísceras de Biriba acabou por desconjuntar nele o cimento da
lealdade partidária. O mártir abriu os olhos. Lembrou-se com saudades dos ominosos
tempos do coronel Evandro, das delícias do botequim e até do calamitoso período
da degradação “fosfórica”. Piorara após o triunfo, não havia dúvida.
Este livre exame de consciência —
crede-me — foi o início da queda do coronel Fidêncio em Itaoca. Biriba, o firme
esteio, apodrecia pelo nabo; viria abaixo, e com ele a cumeeira do pardieiro político.
A víbora da traição armara ninho em sua alma.
Como o novo pleito se aproximasse,
nova vitória lhe seria novo termo de martírio. Biriba ponderou de si para sua égua
que a salvação de ambos estava na derrota. Demitiam-no, e ele, veterano e mártir
do fidencismo, continuaria com jus ao apoio do partido, sem padecer por via coccigiana
o contato odioso das sete horas diárias de socado.
Deliberou trair.
Na véspera da eleição incumbiu-o Fidêncio
de trazer da cidade um papel importantíssimo para o tribofe das urnas. Sei lá o
que era! Um “papel”. A palavra “papel” dita assim em tom de mistério traz no bojo
“coisas”...
Fidêncio frisou a gravidade da incumbência
— a maior prova de confiança jamais dada por ele a um cabo eleitoral.
— Veja lá! A nossa sorte está nas
suas mãos. Isto é que é confiança, hein? Partiu Biriba. Recebeu na cidade o “papel”
e rodou para trás. A meio caminho, porém, tomou por uma errada, foi ter à biboca
dum negro velho, soltou a égua, pegou de prosa com o gorila. Caiu a noite: Biriba
deixou-se ficar. Alvoreceu o dia seguinte: Biriba quieto. Dez dias se passaram assim.
Ao cabo, arreou a égua, montou e botou-se para Itaoca como se nada houvera acontecido.
Foi um assombro a sua aparição. Baldadas
as tentativas para apanhá-lo no dia do pleito e nos posteriores, deram-no como papado
pelas onças, ele, égua, mala postal e “papel”. Vê-lo agora surgir sãozinho da silva
foi um abrir de boca e um pasmar à vila inteira. Que houve? Que não houve?
A todas as perguntas Biriba armava
na cara a suprema expressão da idiotia. Nada explicava. Não sabia de nada. Sono
cataléptico? Feitiço? Não compreendia o sucedido. Afigurava-se-lhe ter partido na
véspera e estar de volta no dia certo.
Ficaram todos maravilhados, com asníssimas
caras.
Fidêncio delirava na cama, com febre
cerebral. Perdera a eleição redondamente.
— Derrota fedida — arrotavam os vencedores,
atochando foguetes de assobio.
Em consequência do inexplicável eclipse
do estafeta senhoreou-se do rebenque o ex-ominoso Evandro. Começou a derrubada.
O olho da rua recebeu em seu seio tudo quanto cheirava a fidencismo. A vassoura
da demissão, porém, poupou a... Biriba.
O novo cacique aproximou-se dele e
disse:
— Demiti toda a canalha, Biriba, menos
a você. Você é a única coisa que se salva da quadrilha de Fidêncio. Fique sossegado,
que do seu lugarzinho ninguém o arranca, nem que o céu chova torqueses.
Pela derradeira vez em Itaoca Biriba
balbuciou o “Sim senhor”. À noite deu um beijo no focinho da égua e saiu de casa
pé ante pé. Ganhou a estrada e sumiu.
E nunca mais ninguém lhe pôs a vista
em cima...
---
Transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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