Tobias Barreto de Meneses como poeta
Parece-me ser um fato notório a censura, que me fazem certos críticos da corte, pelo apreço em que tenho, como poeta e filósofo, o escritor, cujo nome serve de epígrafe a este juízo. Sou do número daqueles que reconhecem no público o direito de tomar contas de todos os atos de um escritor, e até de quem, como eu, não passa de um rabiscador chocho e inútil; e é esta a razão do mau vezo, que tenho adquirido, de não deixar encrespações sem resposta.
Parece-me ser um fato notório a censura, que me fazem certos críticos da corte, pelo apreço em que tenho, como poeta e filósofo, o escritor, cujo nome serve de epígrafe a este juízo. Sou do número daqueles que reconhecem no público o direito de tomar contas de todos os atos de um escritor, e até de quem, como eu, não passa de um rabiscador chocho e inútil; e é esta a razão do mau vezo, que tenho adquirido, de não deixar encrespações sem resposta.
Creio, porém, não estarem erro, supondo que no ponto
vertente a censura carece de base e não passa de um abuso sem justificação. Não
tenho repugnância em indicar os motivos públicos que me prendem ao escritor
sergipano, e até as razões particulares que me levam a estimá-lo.
Aqueles são de ordem literária e já têm sido por vezes
expostos, pertencendo à crítica averiguá-los.
As outras justificam-se por si mesmas: Tobias Barreto é meu
patrício, foi professor de meus irmãos; sua família teve amizade à minha, e,
sobretudo, tanto convivi e aprendi com ele, que o considero meu mestre nas
letras.
Creio ainda que em tudo isto nada vai de censurável, e que a
susceptibilidade dos chefes literários da corte não será tão delicada que se
magoe com tão pouco. O que não posso tolerar é que se propague um certo
charlatanismo que nos leva a considerar qualquer figura mínima, que aparece
como uma estrela de primeira grandeza, que no céu do pensamento se fez e vive
por si, não tendo relações com os mortais e só dependendo de seu próprio gênio!
Conheço muitos espíritos deste quilate, que do próprio
escritor sergipano foram, em Pernambuco imitadores, senão plagiários servis, e,
em romarias literárias cá pela corte, apresentaram-se como grandes letrados e
poetas, caídos do céu para maravilhar-nos, a nós outros, pobres diabos
terrestres humildes e obscuros.
Estou no meu direito em ter minhas predileções o noto que
elas mais se arraigam à medida que sofro os ataques dos invejosos e dos
intolerantes Tanto pior para mim... que mais irreconciliável me torno com meia
dúzia de grandes sacerdotes literários cortesãos, dirão talvez!.. Tanto pior
para eles... que cada vez me parecem mais desfrutáveis e banais, digo por minha
parte.
Mas vamos ao assunto. Apesar de todo meu entusiasmo
tobiático, nunca tive ensejo de escrever sobre o grande sergipano na sua
qualidade de poeta.
Ainda bem que ele próprio ofereceu-me a ocasião, tendo a
delicadeza de deixar que eu me encarregasse de preparar um prólogo para o
primeiro volume de suas obras poéticas, que sai hoje dos prelos a esforços
meus.
Foi na poesia justamente que eu tive repetidas vezes de
pôr-me em desacordo com Tobias Barreto. Não é que lhe negasse a grande
espontaneidade, a força e a graça de seu lirismo. É que ele fechava um ciclo
literário, era o último romântico de valor, e eu me deixava levar por outras
ideias.
Já se vê, pois, que o meu entusiasmo admite certas exceções
e com o próprio poeta aprendi a ter o pensamento autonômico. Posso julgá-lo
desassombradamente na poesia.
Tobias Barreto, mais conhecido como crítico e orador, foi e
é, antes e acima de tudo, um poeta. Desde uma das mais velhas que conheço de
suas produções, a Cena Sergipana de
1856, até ao Ainda Sempre, deste ano,
é o mesmo lírico, espontâneo e vivace, arroubado e natural. Releva ponderar que
dos quinze aos trinta anos, durante um grande mortalis aevi spatium, só
produziu poesias, fundou uma escola, e não se leva impunemente tanto tempo em
comércio com as musas. Começou seus estudos superiores já um pouco tarde. No
último decênio é que abandonou totalmente, ou quase, a poesia. Sua carreira
poética divide-se em duas fases bem distintas: a sergipana (1854-1862) e a
pernambucana (1862-1881).
Na primeira muito produziu; mas quase tudo se perdeu devido
isto ao seu gênio descuidoso, quase imprevidente.
Na segunda produziu ainda mais; grande parte de poesias
perderam-se e as outras jazem ocultas nas páginas dos jornais. É o que acontece
também à maior parte de seus trabalhos críticos e discursos, que andam
esparsos, nunca os tendo senão limitadamente reunido em volumes. É a razão
porque só é bem conhecido, quero dizer, totalmente lido e apreciado em
Pernambuco.
Da primeira fase restam-nos as poesias seguintes: Cena Sergipana, Quadro Histórico, Anelos,
Beija-flor, Mãe e Filho e fragmentos do Juízo
Final. São as principais. Todas as outras pertencem à época seguinte. Não é
inutilmente que assinalo estes fatos e lhes indico as datas.
É que pelo estudo dos trabalhos escritos por Barreto, quando
ainda não tinha saído de Sergipe, quando nada mais sabia do que a fundo o
latim, conhece-se a natureza integral de seu talento poético, que ainda não
tinha sido perturbado por leituras estrangeiras. Possuía já todos os méritos,
sem alguns dos seus descuidos: um lirismo sadio, trescalando um perfeito amor à
vida e à natureza, suave e límpido.
Cumpre estudar o poeta em relação ao seu país, sua raça, seu
tempo e à natureza intrínseca de seu talento, e ver se ele foi um retardatário
ou um espírito ávido de luz, se original e pátrio.
No tempo em que se desenvolveu, a poesia brasileira
atravessava uma crise, estava em decadência. A primeira fase do romantismo
religioso e caboclo, iniciada por Magalhães, Porto Alegre e Gonçalves Dias,
tinha passado; a segunda, sentimental e afetada, seguida por Álvares de Azevedo,
Aureliano Lessa, Bernardo Guimarães e Junqueira Freire, já desgostava à nação.
O sergipano, que era e é ainda, um homem robusto e sadio, não tinha sofrimentos
túrgidos a contar, e foi naturalista, vivido e arroubado. Romântico na maneira
de tratar a poesia na forma que se inclinava à de Victor Hugo, não o era no
choro afetado e na descrença teatral. Também tem peças sentimentais, é certo;
mas de um sentimento real, inspirado por sua má posição social: era e é
paupérrimo e obscuro.
O autor dos Dias e Noites é um dos mais estrênuos e genuínos representantes do povo brasileiro. Nascido em Sergipe, na vila de Campos a 7 de junho de 1939, teve uma dessas criações ao ar livre, ao contato direto com o povo. Campos é um ninho de lendas e tradições populares. Na poesia anônima da província ela ocupa lugar conspícuo.
Esse sopro popular da pequena vila das margens do rio Real,
bafejado na alma do poeta, nunca mais se lhe apagou.
A Cena Sergipana,
os Tabaréus, os Trovadores das Selvas e a Lenda
Rústica mostram essa origem.
Por elas e pelos cânticos patrióticos, inspirados pela
guerra do Paraguai, é que o poeta prende-se ao nosso povo; é um brasileiro no
genuíno sentido da palavra.
Nem se diga que ele tem sido um terrível crítico de nossos
erros e abusos. Razão demais para ser brasileiro; porque deseja o nosso
progresso. Sabe-se que o célebre romancista russo Ivan Turgenief há sido um
acérrimo censor de sua pátria. Julian Schimidt lhe respondeu que a Rússia não
pode ser um tão detestável país, desde que produziu um Ivan Turgenief!
É o que se pode dizer do Brasil: não é tão ruim pátria, já
que pôde, entre poucos, criar um Tobias Barreto.
O poeta é um nacional em regra, é um mestiço e um
meridional. Ama o calor, devora café e só pode escrever envolto em fumaças.
É comodista, e, ainda em Sergipe, era um exímio tocador de
violão e excelente cantor de modinhas.
Um traço mais: nunca pediu cartas de empenho, sempre teve
ojeriza a empregos públicos; gosta de viver por si e em pequenas vilas; não
pode ter obrigações aturadas e perdeu um ano na Faculdade de Direito, por
acordar sempre em hora atrasada. É um descuidoso, um poeta. Isto pinta o seu
gênio sem afetação, o seu tipo de homem do povo.
Juntai agora a tudo um caráter severo, uma sinceridade de
amigo a toda prova, um amor filial como não me foi dado apreciar outro, uma
independência e altivez sempre prontas contra os grandes e potentados, e tereis
a face moral de sua natureza. É um homem de bem, e só podia ser o poeta da
verdade. Nada de convenções e atitudes teatrais. É simples e lhano. Vi-o quase
louco quando perdeu sua mãe, que ele fora buscar em Sergipe e que acabou os
dias em sua casa.
Não posso compreender a poesia num homem, cuja vida não tem
também alguma coisa de original e poético; não compreendo como um pacato filho
da corte, empregado de secretaria, indivíduo que nunca lutou, nunca sofreu,
possa ser um poeta. Este manifesta-se logo em seu modo de ser e de viver.
Que Tobias, porém, o filho de um escrivão pobre, o filho do
povo, que hauriu na infância as lendas da plebe, que saiu da casa paterna aos
dezesseis anos para ganhar a vida, ensinando primeiras letras, música e latim;
que aos vinte e três atirou-se para o Recife, e, sem recursos, aprendeu consigo
os preparatórios em um ano; que ali, por um esforço hercúleo, estudou a fundo
línguas e ciências, frequentando a Faculdade e lecionando; que depois de
formado, longe de aceitar empregos públicos, o seu primeiro cuidado foi romper
com o Sr. de Vila Bela e outros pseudoaristocratas de Pernambuco que o quiseram
catequisar; que um tal homem que há sofrido, seja um poeta eu compreendo!
É preciso ter lutado, senão tanto como ele, um pouco também;
é preciso, antes de tudo, conhecer o povo e ter visto o país.
A literatura cortesã é uma planta de estufa; uma flor no
vaso, estiolada e murcha.
Tobias Barreto nunca estudou diretamente a poesia de nosso
povo. Saturou-se porém dela e conhece-a por instinto.
Em Sergipe quando ele apareceu, a poesia era quase nula e só
tinha quatro cultores de algum merecimento: Pedro de Calazans, José Maria Gomes
de Souza seu irmão Constantino e Bitencourt Sampaio.
Tobias ultrapassou-os muito. Para prová-lo basta citar as
duas pequenas peças Cena Sergipana e
o Beija-Flor.
As poesias puramente sergipanas revelam-nos sua aptidão lírica,
uma das mais pronunciadas do Brasil. O poeta é todo objetivista; não pranteia;
diz o que viu e sentiu, e não assume ares filosófico de raciocinador, nem tão
pouco de carpideira. Uma coisa fica, desde logo, provada, e é que o autor dos Dias e Noites já em Sergipe, antes de
saber o francês e ler Victor Hugo, tinha o mesmo estilo que sempre teve e ainda
hoje conserva na poesia. Seu modo de dizer é aquele, é natural. É alguma coisa
que se parece com a forma do Victor Hugo lirista nos bons tempos. Depois é que
Tobias tomou conhecimento do grande mestre, e achando-se a gosto naquela
corrente da poesia, deixou-se ir por ela abaixo exagerando-se um pouco. Foi
isto nos meses que passou na Bahia, antes de ir a Pernambuco em 1862.
***
O estado intelectual do Recife nesse tempo era lastimável:
uma mescla de carolice, bebida em Ventura de Rulica e Taparelli, e de
palavrosidade metafísica, tomada de Esquiros, Peletan e Quinet... Tal a face da
Academia.
A poesia era um prolongamento dos tacapes de Gonçalves
Dias e da choradeira de Álvares de Azevedo.
Neste meio saltou Tobias com vinte e três anos de idade.
Ruminou a bordo uma das suas melhores produções: À Vista do Recife.
Desde logo as coisas se acharam mudadas; aquele modo de
dizer másculo e iriante era novo.
A choraminga morreu desde aí; os entusiastas tomaram o
partido do sergipano. Castro Alves, muito mais moço, e aparecido posteriormente
como poeta do gênero, era do número deles. Os dois foram amigos. Tobias sempre
o distinguiu dentre a turba multa e dedicou-lhe os lindos versos — Os Oito Anos. Castro Alves dedicou-lhe
O Rio e o Gênio. Mais tarde, por intrigas e questões de bastidores, brigarem
os dois. A luta foi renhida e escandalosa, por causa de duas atrizes.
Na questão puramente literária e crítica não foi para
surpreender que o sergipano contundisse o baiano, que, se tinha, como fui
sempre dos primeiros a reconhecer, um apreciável talento poético, não tinha
estudos feitos.
Formaram-se dois partidos em torno dos dois poetas. Logo em
começo, a nova escola dava o espetáculo de uma luta intestina. Como era
natural, os dissidentes e os sectários das antigas maneiras saíram a campo, e
Tobias foi horrivelmente apedrejado, o que o fez dizer:
De
tantas pedras que atiram-me
Hei
de fazer um altar...
Em 1867, Castro Alves retirou-se do Recife para a Bahia e
depois para o Rio e São Paulo. Teve então a fraqueza de aceitar as
recomendações de José de Alencar e do Sr. Machado de Assis! Castro Alves não
era um verdadeiro lutador; não tinha certo pessimismo indispensável ao tempo de
hoje. Fraquejou, e deixou-se empolgar por um homem da têmpora do Sr. Machado de
Assis, virtuose literário, enroupado à francesa... Desde esse dia o
jovem poeta baiano deixou de ser um homem de combate, tinha de retirar-se ou
morrer. Deu-se a última hipótese.
A época de 1862 a 1870 no Recife, ao influxo de um
entusiasmo de súbito desenvolvido, foi um período de vida e movimento
literário. Ali apareceram poetas de grande merecimento: Tobias Barreto, Castro
Alves, Guimarães Júnior Plínio de Lima, Vitoriano Palhares, Carneiro Vilela, Franklin
Távora, Generino dos Santos, José Jorge, Altino de Araújo e muitos outros.
Varela lá também apareceu durante um ano e distinguiu-se por
suas singularidades. Se não deixou-se ir pela corrente geral, não teve força para
chamar os outros a si. Era um período guerreiro para o país e a poesia
acostumou-se ao retintim das armas. Ouvimos então os nossos mais belos hinos
patrióticos. O Recife era a passagem de todos os batalhões do norte; o ardor
marcial era geral. Tobias recitou os Voluntários
Pernambucanos, a Capitulação de Montevidéu,
os Leões do Norte, Em nome de uma pernambucana
e muitos outros cânticos marciais.
A princípio a guerra tinha sido mal recebida em Pernambuco,
sempre ferido no segundo reinado; as festas públicas e os brados dos poetas acabaram
por acordá-lo. Tobias foi o Tirteu do movimento.
Em 1870, quando se acabou a guerra, já ele estava entregue a
outra ordem de ideias; mas foram ainda chamá-lo para saudar os que regressavam
da campanha, e recitou a Voltas dos
Voluntários, uma de suas mais ruidosas poesias. Aí o poeta já estava um
pouco descrente e seu entusiasmo bastante arrefecido; entre outras notas,
ouviram- se estas:
E
oxalá que em algum dia.
Tendo
saudades da morte,
Não
clameis: "feliz a sorte
Dos
que não voltaram cá!...
Foi assim; muitos voluntários arrependeram-se de ter voltado
à pátria! Neste país, onde, segundo o nosso poeta, o sol é popular e preside
ao trabalho, onde
—
O sol que nos conforta
É
nosso concidadão...
a natureza é grande, mas deixou pouco lugar para o homem. Se
tivermos uma nova guerra no Rio da Prata, duvido muito que ela seja acolhida
com o mesmo entusiasmo de 1864.
Antes de prosseguir no estudo do caráter poético de nosso
autor, é preciso dar a conhecer o que ele mesmo naquele tempo pensava sobre a
poesia. Para aqui transcrevo umas palavras por ele escritas num volume de
versos de Paes de Andrade. Aí revela-se a sua intuição daquele tempo. Disse o
poeta:
“Passa como uma verdade incontestável que a poesia, a poesia
lírica digna deste nome, é a expressão das lutas da alma humana com o enigma do
seu destino.
A felicidade indefinita, que o homem aspira, é a incógnita
de um problema sombrio, diante do qual encontram-se perpetuamente embebidos o
padre com todas as suas preces, o filósofo com todos os seus cálculos, o poeta
com todas às suas queixas. A poesia impregnada dos perfumes da religião e das
luzes da filosofia, torna-se um alimento suavíssimo, um favo de consolação para
os corações solitários, que não profanam a santidade do padecer com a
brutalidade dos prazeres insensatos.
Deste modo, faísca o entender daqueles que dão, que empregam
como caráter da poesia a criação de um mundo à parte, fantasmagórico,
impossível. Assim como já não é dado ao filósofo recostar-se nas hipóteses, não
é dado ao poeta apegar-se aos vagos sonhos dos espectros fumegantes da
imaginação febril.
A poesia de hoje, a poesia do
século XIX também precisa da observação; o poeta deve ser investigador; ele
também pertence à grande aristocracia pensante,
a esse grupo de cabeças cheias de todas as auroras do futuro, que tem os
ouvidos atentos a todos os silêncios misteriosos, e as frontes batidas por
todas as vagas do infinito. Mas no homem que pensa, eu quero ver também o homem
que obra. Longe estou de supor que para o culto do pensamento, como pretende o
Sr. Eugene Pelletan, seja mister a instituição de uma classe bramânica,
sagrada. Seria o sacerdócio da ociosidade. O gênio, qualquer que seja a sua
manifestação, deve entrar, deve aparecer como parte ativa nos trabalhos, nas
lutas, nos progressos da humanidade. Dizer ao poeta, ao filósofo, ao pensador
em geral — nós te sustentamos, o teu trabalho é todo íntimo —, importa dizer-lhe:
divorcia-te da sociedade, renuncia às doçuras da família, aos encantos da
mulher; nós iremos te consultar na gruta do teu pensamento, piaga da
civilização.
Não sou do número daqueles que amam a poesia como um minuto
de prazer, um entretenimento de ocasião, uma embriaguez de todas as paixões,
uma feiticeira noturna que se ocupa de introduzir sonhos de voluptuosidade
debaixo do travesseiro de donzela.
E é a que mais vemos, a que mais temos, a que mais agrada em
nossa terra, linguagem da devassidão, linguagem do lenocínio, poesia sensual,
ditirâmbica, imoralíssima, pagã.
Lede os modernos liristas amorosos, e vede: as mulheres
aparecem quase nuas, desgrenhadas, preguiçosas ou ninfomaníacas; a natureza
flutua em mar de volúpias, a brisa é voluptuosa, a tarde é voluptuosa,
a flor é voluptuosa, a estrela é voluptuosa, tudo é voluptuoso.
Deus mesmo não escapa, tem os seus momentos de sensualidade!! E depois
desta orgia intelectual, aí temo-los caídos em uns sentimentos indizíveis, ou
seja o nosso cismar, ou o réverie dos franceses, ou o schnsucht
dos alemães, que todos querem dizer preguiça, essa estupidez da
ação. Debalde procuraremos em poesias desta ordem o sentimento da vida, o
sentimento das coisas: Lacrimae – rerum. Nelas a beleza, sobretudo, a
beleza feminina é uma esquisitice ridícula. Quando não é um anjo que vem à terra
sem um motivo plausível, é uma mulher microscópica, insignificante, uma
descendente bastarda da rainha Mab, metida num floco de escuma ou na dobra de
uma nuvem, que ao muito poderá servir para amante de uma criança, mas nunca
para ser a doce consolação de um homem, no sagrado aperto das mãos, na santa
união dos destinos: Consors.
E não finda aí. Se acontece que seja real o objeto de suas
adorações, o poeta, metaforicamente choroso, em vez de apresentar aos olhos de
sua querida as delícias, a grata existência, a suavidade dos laços da família,
procura desapertar-lhe a charpa dos santos deveres, insinuando-lhe tendências
perigosas na impetuosa insolência de uma poesia animal, balda de prazer para o público
sensato, e sorrateiramente prejudicial à sociedade. Com efeito ao homem sério,
que tem o gosto do belo e do bom, nada importam, nada deleitam versos que só
tem beijos, que falam de mais beijos do que os milhares e centos de milhares
que Catulo pedia à sua Lésbia. Da mi basia mille, deinde centum. Vemos,
destarte a poesia prestar-se aos apetites vergonhosos. Desejos que degradam,
palpitações criminosas exprimem-se com toda a audácia da libertinagem. O bom
senso indigna-se de ver a mais bela das artes, a mais doce das linguagens,
demitida do seu mister honroso e sublime.
Seja qual for o vigor de seu talento, e seja qual for a grandeza
de suas concepções, o poeta é sempre um homem, e como tal sujeito às leis que
regem a natureza humana.
Observa-se, entretanto, que na época atual quem faz uma
quadra, uma tirada dessas bagatelas que por aí facilmente correm com o nome de
poesia, crê-se logo revestido de uma certa imunidade moral. E é possível chegar
um dia em que os gênios reclamem também a imunidade legal —, por que não?
Quando se lhes desculpam as suas tolices, porque são poetas,
a sua desonestidade, porque são poetas, é de esperar que muito breve se lhes
desculpe também o furto, porque são gênios, defloramento, porque são gênios,
e até o assassinato, porque são gênios. Falemos franco.
A poesia rotineira dos nossos dias é a deserção dos
princípios morais, é Deus tratado com um certo tom de atrevida familiaridade; é
a mulher metricamente seduzida, convidada para presidir ao grande
banquete da vida licenciosa, é a criação representada como uma cortesã imensa,
cambaleando bêbada no espaço, de taça em punho, atirando ao infinito a
gargalhada do deboche.
O poeta, fazendo o inventário da natureza de que ele se
mostra rei e senhor, não esquecendo nunca – a brisa que suspira, a florinha que
se inclina, o regato que murmura, a onda que beija a praia, etc., etc., tem o
ar de dizer a qualquer bela que se lhe antolhe, como Satanás a Jesus: Tudo isto
é meu, e eu to dou se te curvares aos meus desejos. É o requinte do desaforo;
não tem outro nome. No livro de um poeta deve-se tomar as dimensões de seu
crânio e palpar as dores do seu coração. É bem pequenina a cabeça que não
aguenta uma ideia nova, grandiosa e aproveitável; bem acanhado o peito que
apenas pode conter a mesquinhez de triviais amores. Sufocar, no curso da vida,
todas as paixões aviltantes, e deste tormento, dignamente doloroso, fazer
brotar os sentimentos nobres que determinam as nobres ações; provocar,
interpelar a natureza, cobri-la com um olhar indagador, exigindo-lhe os
segredos da sabedoria, e ter em resposta o que outrora ao santo leproso da
Idumeia o abismo respondia – non est in me –; amar, procurar unir-se,
purificar-se diante de Deus na chama celeste de uma alma de mulher, tudo isto é
o assunto da grande, da verdadeira poesia, porque é ao mesmo tempo o assunto da
vida do homem de bem.
É de notar a maldição contínua lançada pelos poetas contra
os homens positivos. E quem são os homens positivos? Serão aqueles que,
ocupados no seu trabalho, não se demoram um instante para escutar as harmonias
fantásticas de algum sonhador alemão, para ler uma página de A. Musset e
apreciar poeticamente descritos os trejeitos e coleamentos de alguma espanhola
voluptuosa, querendo morder como uma fera na estação da berra; para medir com
Goethe os pés do hexâmetro no dorso nu de cortesã romana, tudo isto em verso,
tudo isto em livros que se espalham, que se louvam, que se animam, que se
beijam... serão esses? Oh! então os homens positivos são os homens honestos.”
É uma de suas boas páginas de prosa; o poeta foi sempre mais
ou menos fiel a este programa. Bem se vê, que ele nada tinha da languidez e do
epicurismo burguês da poesia imoral. Sua musa nunca teve necessidade de
desenhar-nos alcances, barregãs, crimes esverdeados, erotismos
perpétuos, afrodisíacas pinturas.
Andava distraído com o entusiasmo estético, o sentimento da
natureza, o patriotismo e o amor. Dos poetas portugueses, parece-se com João de
Deus, de quem tem mais de um traço, e dos brasileiros, com Luís Delfino, de
quem tem a elevação das notas, ainda que os exceda a ambos.
É um cantor altíloquo.
Em 1835, escrevia ele as palavras transcritas, condenando as
imoralidades do Romantismo. Dez anos depois Guerra Junqueiro, como prólogo da Morte de D. João, pôs alguma coisa de
parecido e como quem fazia uma grande revelação.
Tenho sempre associado o nome de Castro Alves ao de Tobias
Barreto. Importa mostrar as diferenças entre ambos. Considero-os os dois
melhores representantes do lirismo hugoíno no Brasil; ambos têm o tom elevado,
que os fez denominar de chefes da escola condoreira. A verdade, porém,
deve ser dita com franqueza: tal gênero de poesia nas mãos dos medíocres
transformou-se num gongorismo petulante e incorrigível, numa cascata de palavras
retumbantes. Era um coaxar incômodo para o ouvido, esterilizador para as ideias.
Tobias, nas suas poesias naturalistas, nas amorosas, e nas inspiradas pelo
sentimento artístico foi sempre elevado, mas simples; nas ditadas pelo
sentimento patriótica, às vezes, foi um pouco exagerado por exigência do assunto.
Castro Alves o foi ainda mais; Tobias o excede na
simplicidade e naturalismo.
Um inspirou-se em a natureza, o outro mais no estado de
nossa vida social; um cantou os Trovadores
das Selvas e o outro o Navio Negreiro,
um o Gênio da Humanidade e a Lenda Rústica, o outro o Livro e a América e Pedro Ivo. Não quer isto dizer que
Tobias não se inspirasse também no Brasil; inspirou-se e muito, como nos Tabaréus e na Vista do Recife, mas pelo lado popular e patriótico.
Tobias é mais lírico, mais suave, mais terno, quando é
amoroso; mais crepitante, quando encara os grandes assuntos. Castro Alves mais
incorreto, mais palavroso, mais afetado; este dirige-se aos míseros cativos de
preferência; aquele aos homens livres, principalmente. As poesias de Castro são
mais para serem recitadas e as de Tobias para serem lidas.
Um é o segundo elo da cadeia, de que o outro foi o primeiro
e Vitoriano Palhares o terceiro. O poeta das Espumas Flutuantes foi tido por chefe, por dois motivos principais:
o passar-se para o Rio e São Paulo e o ter publicado logo o seu livro. Não
esqueçamos, porém, que ele nada teve de inovador, não passando de um sectário
de Tobias. Esta é a justiça da história.
Tenho todas as provas deste fato no exame das produções dos
dois poetas anteriores a 1862. Tobias começou antes e continuou ainda depois;
porquanto, quando ele veio a romper com o Victor Hugo da decadência
transformado em profeta, filósofo e político, Castro Alves já dormia o sono do
sepulcro. O Victor Hugo das Odes e
Baladas e das Orientais continua
a ser ainda hoje o mesmo aos olhos do poeta do Ainda e Sempre. O rompimento foi muito posterior à guerra alemã,
quando o sergipano dedicou-se ao germanismo. Foi limitado às extravagâncias do
vidente como se pôde ver no artigo Auerbach
e Victor Hugo. Com estas considerações tenho em mira firmar a verdade dos fatos
e não menosprezar, veja-se bem, o merecimento do poeta baiano em quem sempre
verei um grande talento, que muito fez, e ainda mais se teria avantajado, se a
morte o não houvesse retirado da arena de nossas lutas e se ele quisesse
estudar. Deve ser julgado com a verdade e não precisa de ser cercado de uma auréola
falsa para ter valor aos nossos olhos. E oxalá todos lhe rendessem o preito
desinteressado da justiça. Desta é que precisamos todos, os mortos ainda mais
que os vivos.
Tobias Barreto que, como poeta, tem trabalhado no vasto
período de vinte e oito anos, não tem convenientemente defendido o seu lugar,
e, nem sequer, reuniu jamais suas produções em livros. Os que, porém, vivem em
Pernambuco sabem perfeitamente que ele tem sido um trabalhador infatigável no
jornalismo e tem tomado parte ativíssima em todas as lutas literárias ali
travadas... Castro Alves representou, no terreno da poesia, um papel que foi
dele: o de propagador na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, onde criou adeptos,
do movimento iniciado por Tobias no Recife.
Tal a sua missão histórica que deve ser consignada e que
ninguém se lembra de lha tirar.
***
Vejamos por último a natureza íntima do talento poético do
solitário da Escada. O livro que sai agora dos prelos, divide-se em cinco
partes, contendo cinco categorias diversas de inspirações: naturalistas,
amorosas, patrióticas, estéticas e
satíricas. Esta divisão não é caprichosa; origina-se da qualidade
mesma das composições. O poeta nunca teve a poesia como uma profissão de vida.
Têm-na como tal, certos monomaníacos, que entendem, lá de si para si, que são
poetas, por graça de Deus ou do diabo; que julgam ter necessidade de fazer
versos, como outros julgam que não podem viver sem purgar-se a miúdo. É uma coisa
terrível a mania do versejador de profissão, que se concentra para acumular
rimas e rimas e compor longas máquinas de martírio, verdadeiras polés para o
leitor, como a Independência do Brasil
ou a Confederação dos Tamoios. Tobias
Barreto nunca fez planos, nem cogitou em vastas obras. A poesia para ele era
uma questão de festa, de alegria, de divertimento.
Nessas ocasiões poetava, como um pássaro canta ao clarão
matinal. Tal o verdadeiro poeta, aquele que só escreve para vazar no papel
alguma coisa que nele trasborda, ou seja a tristeza, ou o entusiasmo. Tobias
Barreto é um desses destemidos
Corações
acrisolados
No
brasileiro sentir...
é um desses meridionais, sonhadores, descuidosos, que pegam
fogo por qualquer coisa.
Qualquer que seja a doutrina que se professe sobre a
natureza da poesia, não se lhe pode negar que ela é a vida em geral, a natureza
e o homem, interpretados pelo sentimento. As grandes criações da humanidade não
passam de quatro: a ciência, a filosofia, a religião e a arte.
A ciência é o universo interpretado pelo raciocínio e pela
observação; a filosofia e a sua síntese racional; a religião é a origem, a
causa primeira, o desconhecido em face de nossa pequenez e do acanhado de
nossos conhecimentos; a arte em geral e a poesia, em particular, vem a ser tudo
isso de que se ocupam as outras, mas tudo diante das emoções que em nós se
despertam pelo espetáculo das coisas, pelas peripécias da vida. A poesia é
isto. Como tal, ninguém a sentiu melhor do que o poeta dos Dias e Noites.
Dessa sua qualidade essencial originou-se justamente o seu
maior defeito, que consistiu sempre e sempre em baratear o seu talento. E para
impressionar o entusiasmo enorme de que Tobias deixava-se apoderar diante de
uma atriz ou de um cantor medíocre. A fonte perene do sentimento é nos poetas, às
vezes, um inconveniente: o arderem não raro por uma coisa insignificante. Em
tudo acham um encanto, um motivo para um trasbordamento. Tobias é destes; tudo
a seus olhos toma proporções excepcionais.
O Brasil e a jovem pátria de heróis, a Tamborini tem
frases de ouro na boca; o rebequista Muniz Barreto é o gênio que ser
maior e morrer; o Recife é a cidade das galhardias, da raça das Romas
tombadas e das Babilônias em pó...
Ao través do sensório do poeta as coisas e os fatos se
avolumam; o inspirado só pode cantar o que é grande, e, quando o objeto é
pequeno e vulgar, a imaginação supre o que lhe falta em grandeza.
É um exagero sublime; mas sempre um exagero. Bem haja aos
poucos que dele são capazes; porque são os verdadeiros poetas. A arte só é
possível sendo vaga, geral, indeterminada, e, para tudo dizer numa palavra,
sendo em certo sentido falsa. A poesia é sempre falsa cotejada com a
realidade, que lhe está sempre abaixo ou acima; mas é sempre verdadeira
cotejada com o estado emocional do poeta, que é, até certo ponto, um
visionário.
Tobias Barreto, eu o julgo admirável nas suas poesias gerais
e naturalistas, como o Gênio da
Humanidade, a Caridade, a Lenda Rústica, os Tabaréus, os Trovadores das
Selvas, Oito Anos, a Polca, e outras. Aí seu talento é
realista, objetivista.
Nas poesias amorosas, ainda o aprecio quase tanto por ser
sempre lúcido e verdadeiro.
As inspiradas pelo sentimento estético desperto pelos
espetáculos e festas, a que assistia, me agradam especialmente como modelos de
força e de graça, como tipos de metrificação.
Os cânticos patrióticos são alguma coisa de original, que
não encontra muitas congêneres em todas as literaturas. Aquele falar tem algo
de desusado; são frases vibrantes, que se enterram como dardos acerados; ali há
a limpidez das espadas, o silvo das balas e o troar dos canhões. Tobias criou e
matou este gênero; depois dele é uma inocência querer tentá-lo de novo. E,
todavia, não são para mim as suas melhores produções; acho-o ainda superior nas
primeiras.
As satíricas são em pequeno número; o poeta devia cultivar
mais amiúde o gênero; porque pelo Rei
reina e não governa se conhece que ele pôde fazer muito ali.
As artes vivem essencialmente pelo prestígio da forma; o
estilo é quase tudo em poesia. Neste ponto, o poeta da Lenda Rústica tem uma feição própria, consistente em um certo
laconismo forte e rútilo. Pode-se bem vê-lo na seguinte estrofe de 1861 de um Quadro Histórico sobre a guerra
holandesa; cito de propósito esse tópico tirado das composições mais antigas:
Barreto
diz: — Somos poucos
De
encontro ao troço holandês;
Que
vamos fazer, oh loucos?!
Morrer
inglórios, talvez!
—
General, brada Vieira,
Foi
minha a ideia primeira,
O
passo primeiro, é meu...
Morreremos
neste extremo...
—
Camarão ruge: não temo!
Henrique
Dias: nem eu!
Eis aí todo um complicado diálogo comprimido numa estrofe.
Em todas as suas poesias, além de tudo, o nosso autor nunca usou de uma só
palavra peregrina, cujo significado se tenha de ir procurar no dicionário; seus
termos são simples e vulgares; é a língua singela e rutilante do povo.
Sílvio Romero
Da Edição de 1881, publicada pela Imprensa Industrial Editora.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Da Edição de 1881, publicada pela Imprensa Industrial Editora.
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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