A POESIA E AS LENDAS POPULARES
NO BRASIL
A verdadeira poesia nasce da
boca do povo como a planta do solo agreste e virgem. É ele o grande criador, sincero
e espontâneo, das epopeias nacionais, aquele que inspira os artistas, anima os
guerreiros e dirige os destinos da pátria.
Dos pastores do Himalaia aos
bardos gregos e romanos, no mundo antigo, dos trovadores e jograis, na idade-média,
aos poetas das cortes e dos salões senhoriais, no Renascimento, não variou o
sentimento poético. Somente as formas se modificaram. O sutil Montaigne, ao
revés dos seus contemporâneos imitadores de Píndaro e Teócrito, muito
justamente compreendeu que "Ia
poésie populaire et purement naturelle, a des naifvetés et des grâces par ou elle
se compare à Ia principale beauté de Ia poésie parfaicte selon l'art; comme il
se voit ès villanelles de Goscoigne, et aux chansons qu'on nous raporte des
nations qui n'ont congnoissance d'aucune cience n'y mesmes d'escriture. La
poésie médiocre qui s'arrête entre deus est desdeignée, sans honeur et sans
prix".
E que é a poesia senão um
esforço da alma para entender certas verdades superiores e eternas que estão acima
de todos os raciocínios? Os cientistas investigam, medem, pensam e verificam; a
natureza, para eles, é um teorema, um cálculo, uma hipótese; é, em suma, simples
função da inteligência e da experimentação. O povo, ao contrário, é ingênuo,
acredita mais depressa no impossível que no possível, não pensa, não indaga e
não resolve: sonha, sonha apenas com a felicidade
imediata ou futura, e põe, diante de cada interrogação ameaçadora, o sorriso da
trova brejeira ou a lágrima da canção dolente.
À filosofia popular repugnam
as ideias abstratas, os problemas áridos, as construções metafisicas; ela é
profundamente imaginosa e fantasista, porque fantasiar ou imaginar é para o
povo mais que uma necessidade, quase um hábito.
Quem folhear qualquer
cancioneiro oriental ou Ocidental verá que a vida se resume, no conceito da musa
popular, em alguns jogos tristes ou alegres, num, pouco de vinho transparente e
leve, diria o epicurista Ornar Khayyam, num momento fugaz de mágoa ou de prazer.
Já o festivo Anacreonte cantara, na "Vida Agradável":
Para que torturar-me
Com as lições da tua retorica?
Lindas palavras ou grandes discursos
Não tornam mais bela a vida...
Aprende, antes, a beber
O doce licor de Dionisos;
Põe tua maior ventura
No servir a loura Afrodite.
Os cabelos brancos enchem-me a cabeça;
Escansão! dá-me um vinho puro. Prepara
A água que deve refrescá-lo,
Pois, em breve, no seio da terra,
Minha poeira deixarás,
E aí os mortos não desejam mais...
Assim faz a gente rude e boa
da terra. Nem por diverso modo julgavam os homens primitivos e julgarão os
vindouros as graças e os dissabores do mundo. "Gaudeamus igitur, juvenes dum sumus", diz a velha
cantiga universitária de Heidelberg. O mesmo repetem todos os homens, o mesmo
parece repetir a própria natureza que nos rodeia, na sua ânsia infinita de
renovação, na sua pressa de se mostrar sempre jovem e engalanada.
Entretanto, nem sempre é
jovial a nossa poesia vulgar. Antes, diremos, como o padre Anchieta escreveu da
terra, que a nossa musa sertaneja "é algo melancólica". O brasileiro
é naturalmente triste, porque tristes são as três raças que contribuíram para a
sua formação. O português é nostálgico como a lânguida toada dos seus fados; o
africano é um abatido, suas revoltas são gritos de dor contra as agruras do
exílio em que o puseram; o índio é um sofredor, tem na alma a resignada queixa
dos rios e o murmúrio das selvas misteriosas. Daí esse aspecto de melancolia que
há em quase todas as produções da poesia brasileira, cujas peças mais formosas
e amadas, desde o episódio da Lindoia, de Basílio da Gama, às "Pombas",
de Raimundo Correia, são imprecações de desespero contra o destino impassível.
Se algumas vezes se encontram quadras de ligeiro chiste como as que seguem:
Alfaiate quer tesoura;
Sapateiro quer tripeça;
Moça bonita quer ouro;
Moça velha quer conversa.
Eu não fio na mulher
Nem que ela esteja dormindo;
Os olhos estão fechados,
Sobrancelha está bulindo.
ou, então,
A menina que eu namoro
E que me quer muito bem,
Tem um sorriso que encanta
E vinte contos também.
por via de regra, as mais comuns
são as que reçumam desengano e amargor.
Sobre as variações da fortuna,
motivo tão velho como a vida humana, ou a divina, se os deuses da Teogonia
ainda existem porventura, corre uma pequena e luminosa joia:
A sorte, nós bem sabemos,
É tal qual uma mulher,
Que quer quando não queremos,
Quando queremos não quer...
Que sensibilidade, extreme de
artifícios mais ou menos engenhosos, reponta nas seguintes estrofes:
Alma no corpo não tenho,
Minha existência é fingida,
Sou como um tronco quebrado
Que dá sombra sem ter vida.
As rosas é que são belas,
Os espinhos é que picam:
Mas são as rosas que caem,
São os espinhos que ficam.
Parece troça, parece,
Mas é verdade patente,
Que a gente nunca se esquece
De quem se esquece da gente.
Mente quem diz nesta vida
Muitos males ter sofrido.
Só de um mal a gente sofre
É o mal de ter nascido.
De espaço a espaço, surge um
verdadeiro clarão de "humor", que mal encobre, no sorriso de mofa e
zombaria, um laivo de travor pessimista:
Meu mano, meu camarada,
Tudo no mundo é assim:
Comigo ocê fala de outros,
C'outros ‘cê fala de mim...
O porco há de ser porco
Inda que o rei dos bichos
Por seus belos caprichos
O queira fazer cortezão.
Frequentemente também aparecem
estrofes onde a língua portuguesa, a tupi e os dialetos africanos se combinam.
Couto de Magalhães, Sílvio Romero e Pereira da Costa coligiram algumas canções
muito curiosas, em que aqueles idiomas andam confundidos, como se vê das abaixo
transcritas:
(PORTUGUÊS-TUPI)
Te mandei um passarinho,
Patuá miri pupé;
Pintadinho de amarelo
Iporanga ne iaué.
Vamos dar a despedida,
Mandu sarará
Como deu o passarinho
Mandu sarará.
Bateu asa, e foi-se embora
Mandu sarará
Deixou a pena no ninho
Mandu sarará.
(PORTUGUÊS-AFRICANO)
Turuê turuô,
Fala capitanga, turuê.
"Aio cá, turuê,
Capitanga ouê,
Aioê, minha gana ouê"
— Zambi lê lê camundê,
Pruquê tu era congo, jacombê:
"Andaraê, anderoê"
— Nosso todo já tá pronto,
P'ra cum perna trocá,
Hoje branco há de fica.
Olé, lê lê, olé,
De boca pero o á
Asassá.
Convém notar, de passagem,
como já se mostra diversa da genuinamente portuguesa a linguagem do nosso povo
em seus cantares anônimos. O emprego da variação pronominal, como no verso,
Te mandei um passarinho,
profundamente aberrante das
regras mais comezinhas da sintaxe portuguesa, é, quase, de uso regular na
conversa doméstica, mesmo entre as classes polidas e ilustradas.
II - AS LENDAS E OS MITOS
Nosso povo não se recreia somente com os encantos do verso alado e sonoro; é também um grande criador de fábulas e histórias, geralmente de tendências morais e corretivas. A imaginação popular não tem, no Brasil, aquele fausto nem aquela pompa do gênio oriental. Em nossos contos indígenas não há palácios magníficos, nem castelos sumptuosos, forrados de pedraria custosa, como nas Mil e uma Noites.
A Sherazade brasileira é mais
conceituosa que opulenta, educa mais que deslumbra. Nas lendas selvagens a
natureza domina o homem, e, como nas fábulas de Esopo e La Fontaine, são os animais
que se encarregam de revelar as virtudes e os defeitos da vida, por meio das
suas engenhosas artimanhas.
As lendas de origem europeia,
como A Madrasta, A Moura Torta, Maria
Borralheira, O Bicho Manjaléu, A lebre encantada, O Rei Caçador, etc., são
apenas variantes mais ou menos mascaradas do extenso fabulário medieval, e
estão, por isso, fora da nossa verdadeira índole. As de procedência africana
são, nesse particular, mais características, aproximam-se mais de nossa alma.
Para o indígena, segundo se
apura nos seus contos mais famosos, era a esperteza arma seguramente melhor que
a força, o instinto da raposa vencia a violência da onça, a agilidade dos
macacos, a bruteza das antas. Observe-se, como exemplo, a história abaixo transcrita:
Diz que foi um dia, havia no
mato uma fruta que todos os bichos tinham vontade de comer; mas era proibido
comer tal fruta sem primeiro saber o nome dela. Todos os animais iam a casa de
uma mulher que morava nas paragens onde estava o pé da fruta, perguntavam a ela
o nome, e voltavam para comer; mas quando chegavam lá não se lembravam mais do
nome. Assim aconteceu com todos os bichos que iam e voltavam, e nada de acertar
com o nome.
Faltava somente o amigo cágado;
os outros foram chamar ele para ir por sua vez. Alguns caçoavam muito:
"Quando os outros não acertaram, quanto mais ele"! Amigo cágado
partiu munido de uma violinha; quando chegou na casa da mulher perguntou o nome
da fruta. Ela disse: "Boiôiô-boiôiô-quizama-quizu; boiôiô-boiôiô-quizama-quizu".
Mas a mulher, depois que cada bicho ia-se retirando já em alguma distancia, punha-se
de lá a bradar: "Oh, amigo tal, o nome não é esse, não". E dizia
outros nomes; o bicho se atrapalhava e quando chegava ao pé da fruta não sabia
mais o nome. Com o cágado não foi assim, porque ele deu de mão à sua violinha,
e pôs-se a cantar o nome até o lugar da árvore, e venceu a todos. Mas, amiga
onça que já lá estava à sua espera, disse-lhe: "Amigo cágado, você como não
pode trepar, deixe que eu trepe para tirar as frutas, e você em paga me dá
algumas".
O cágado consentiu; ela encheu
o seu saco e largou-se atrás. Chegando a um rio ele disse à onça: "Amiga
onça, aqui você me dê o saco para eu passar, que sou melhor nadador, e você
passa depois". A onça concordou, mas o sabido, quando se viu da outra
banda, sumiu-se ficando a onça lograda.
Esta formou o plano de o
matar; ele soube, e meteu-se debaixo de uma raiz de grande árvore onde ela
costumava descansar. Aí chegada, pôs-se ela a gritar: "Amigo cágado, amigo
cágado!". O sabido respondia ali de pertinho: "Oi". A onça
olhava de uma banda e de outra, e não via ninguém. Ficou muito espantada, e
pensou que era o seu traseiro que respondia. Pôs-se, de novo, a gritar, e sempre
o cágado respondendo: "Oi", e ela: "Cala a boca, oveiro!" e sempre a cousa para
diante. Amigo macaco veio passando, e a onça lhe contou o caso da desobediência
de seu traseiro e lhe pediu que o açoitasse. O macaco tanto executou a obra que
a matou.
Não temos dúvida que o bom La
Fontaine poria ao fim desta fábula, à guisa de moralidade, aqueles mesmos
versos com que arrematou a sua história da rã e do rato:
La ruse Ia mieux ourdie
Peut nuire à son inventeur
Et souvewt Ia perfidie
Betourne sur son auteur.
O animal preferido pelos
indígenas é o jaboti. Suas espertezas são tão notáveis que nem o Caipora consegue
evitá-lo. Os animais ferozes são dominados por ele, e há nas suas façanhas
sempre um ensinamento a colher, sempre um exemplo a imitar. A raposa de Esopo
encontra no nosso jaboti um emulo brilhante, senão até um mestre ainda mais sutil
na arte de viver.
A onça pediu ao gato para lhe
ensinar a pular, e o gato prontamente lhe ensinou. Depois, indo juntos para a fonte beber água, fizeram uma aposta
para ver quem pulava mais.
Chegando à fonte encontraram
lá o calango, e então disse a onça para o gato: "Compadre, vamos ver quem
de nós de um só pulo pega o camarada calango"? "Vamos", disse o
gato. "Só você pulando adiante", disse a onça. O gato pulou em cima
do calango, a onça pulou em cima do gato. Então, o gato pulou de banda e se
escapou. A onça ficou desapontada e disse: "Assim compadre gato, é que você me ensinou?!
Principiou e não acabou..." O gato respondeu: "Nem tudo os mestres ensinam
aos seus aprendizes...
Nesta curta, mas admirável
lição, está uma das mais sabias páginas que a inteligência humana poderá conceber.
Na sua singeleza, na sua ingenuidade, transparece uma grande compreensão das
cousas deste mundo; e o gato, que sempre foi tido por indiferente e preguiçoso,
perde, aqui, as suas virtudes mais gabadas para se converter num matreiro e ladiníssimo
político. Machiavel não a desprezaria, porque todos os seus conselhos se
resumem, afinal, naquele pulo do gato...
É pena, entretanto, que o folclore
africano seja ainda tão escassamente procurado e estudado. Não só no Brasil,
senão principalmente na África, o gênio do negro constitui um filão precioso,
que, infelizmente, permanece na sombra inexplorado.
A julgar pela formosura de
alguns contos recolhidos por Fairbridge e Cripps a imaginação africana emparelha
em riqueza, com a dos mais ilustres povos asiáticos e europeus. No Zambezi
vamos encontrar, por exemplo, no herói Makoma (o maior de todos), o destruidor dos
gigantes e das feras, aquele que desviava o curso dos rios e derrubava
montanhas, quase uma réplica de Hércules da mitologia grega ou do Thor das
lendas escandinavas. Não lhe faltam nem os músculos do primeiro, nem o martelo
temível do segundo. Apenas Makoma é filho da terra, é humano e justo.
A superstição, velha
companheira do homem, forneceu grande cópia de motivos para o "folclore"
nacional. A "anima rerum", com todos os seus mistérios fascinantes,
suas nebulosidades estranhas e suas inexplicáveis trajetórias, influiu muito
poderosamente no caráter da raça.
O caboclo é bravo, arrojado
quando é necessário, calmo na luta, mesmo que todas as probabilidades de êxito
estejam de lado contrário ao seu. O número não o intimida, a vantagem de
posição ou de arma não o abate. Se, entretanto, depois de uma formidável
refrega em que sua coragem fez prodígios e operou maravilhas, ele topa no
caminho deserto com uma réstea de luz imprevista, ou percebe um estalido súbito
na mata, perde logo o aprumo varonil, um arrepio de pavor corre-lhe a espinha aceleradamente,
e, sem mais vacilações, desata numa vertiginosa carreira por macegas e
capoeirões, salta valos e vadeia rios, até cair no chão, prostrado pela fadiga
e pelo terror pânico.
As abusões, as tradições orais,
as histórias terríveis de fantasmas e alucinações entram, em grande parte, na
sua psique. Quem não tremeu, quando criança, com as risadas do Caipora, com as
perversidades da "Mãe d'Água" e os olhos de fogo dos lobisomens.
Aqui estão, portanto, os elos
que nos ligam uns aos outros. Todos nós, das mais diferentes classes sociais, somos
um reflexo dessa grande alma popular, feita, ao mesmo tempo, de melancolia e
esplendor, de timidez e desempenho. Nosso "folclore" serve para
mostrar que a raça brasileira, apesar de melancólica e sentimental, guarda no
fundo uma clara compreensão da vida e uma sã e admirável energia interior, que,
ao primeiro toque, aflora indomável e inesperadamente.
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Fonte:
Ronald de Carvalho: Pequena História da Literatura Brasileira. F. Briguiet & Cia. Editores. Rio de Janeiro, 1937.
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