A LITERATURA NO BRASIL — AS ESCOLAS LITERÁRIAS E AS INFLUENCIAS EUROPEIAS
A história de um povo não está
apenas na simples enumeração dos seus feitos guerreiros, das suas lutas políticas
e religiosas, das suas conquistas e dos seus revezes. Há uma força íntima e
superior que a determina, um impulso irresistível que lhe define as
características, uma chama palpitante que a ilumina perenemente: a alma da
raça.
Amarguras e alegrias,
provações e glórias, derrotas e vitórias são comuns a todos os povos. Na sua marcha
evolutiva através das idades eles sofrem igualmente, eles igualmente se
rejubilam, porquanto, neste mundo estreito e limitado, não há efeitos novos nem
motivos inéditos de prazer ou de mágoa.
É certo que uma aparência
enganadora de progresso faz com que os homens acreditem nas excelências do
tempo em que porventura vivem, na perfectibilidade dos momentos imediatos, na
grandeza, em suma, da sua época. Está aí a razão de todas as modas científicas
ou literárias, artísticas ou religiosas. Entretanto, na essência, o homem não
mudou. As mesmas contingências eternas o arrastam, os mesmos preconceitos o
dirigem, as mesmas necessidades o acorrentam...
Se uma agitação crescente
absorve a inteligência humana, ela é, na substância, a mesma, variando somente nas
suas expressões. A alma de uma raça, portanto, é a manifestação particular de
um pensamento geral pertencente a todas as outras.
Comparem-se, por exemplo, as Rapsódias
de Homero aos cantos de Ossian, os guerreiros de Agamêmnon aos de Fingal. A epopeia
dos gregos e a dos caledônios, correndo sobre um tema semelhante, divergem fundamentalmente
na pintura dos quadros e dos sentimentos. De parte a parte, a fúria das paixões
desenfreadas se desencadeia, a natureza humana e a divina se confundem, o
terror e a bravura se misturam; numa e noutra se ouve o alarido das pelejas, o tumulto
dos corpos em combate e se observa a subtileza dos ardis. O heroísmo de Aquiles
não empolga mais do que o Cú Chulainn, a beleza das ações é, sem dúvida,
admirável em ambos os poemas. O gênio que os inspirou é, todavia, profundamente
diverso. Homero é claro, preciso, e conhece as virtudes da justa medida, tão ao
sabor dos helenos; Ossian é brumal, misterioso e, às vezes, difuso como o eram
os celtas.
Veja-se, também, por exemplo,
como é diferente, na sua expressão artística, o sentimento religioso entre os
povos cristãos do norte e do sul da Europa. No setentrião, onde é escassa a
luz, nevoento o céu, e o temor dos castigos é maior e mais ameaçador, eleva-se a
catedral gótica, de torres maciças e quadrangulares, mostrando, nos paredões
pesados, a bocarra das gárgulas terríveis e assustadoras, como se o templo
houvesse mister, para ser amado e respeitado, daquele friso solene de monstros apocalípticos!
No norte, quem guarda a casa de Deus é o demônio.
No meio-dia, onde há mais cerimonias
e menos sinceridade, onde há mais luxo e menos fervor, predominam as graças do
estilo bizantino e o fausto das basílicas romanas, com as suas grandes cúpulas,
os seus claros vitrais e os seus mosaicos de ouro e pedraria. Na Itália,
segundo Savonarola, o inferno estava dentro das igrejas, tantas eram as obras
de arte profana que abrigavam.
Assim, a pintura, a música, a
poesia, a escultura, a arquitetura, enfim, todos os grandes monumentos da
civilização, quem os anima, quem os aperfeiçoa é a luz das diferentes raças, colaborando
cada qual com as suas obras para o imenso patrimônio moral e intelectual daquilo
que, por extensão, poderemos, com Michelet, chamar a "Bíblia da
Humanidade".
Um povo sem literatura seria,
naturalmente, um povo mudo, sem tradições e sem passado, fadado a desaparecer
como reles planta rasteira nascida para ser pisada. De todas as artes é a da
palavra, sem contestação, aquela que exerce uma influência mais penetrante, um
papel mais saliente na formação das nacionalidades. As estátuas de Scopas
puderam ser imitadas; nunca ninguém se atreveu, porém, a reproduzir as tragédias
de Ésquilo.
A literatura é a própria história
de cada coletividade; refletem-se nela, como num espelho polido, as imagens
tristes ou risonhas da vida humana. É ela que anuncia as grandes revoluções
políticas e religiosas, como no caso de Lutero e dos enciclopedistas do século
XVIII, ou que regista os triunfos de uma raça que declina, como no caso dos
Lusíadas. Caminham à sua sombra niveladora nobres e plebeus, grandes e pequenos,
o magnífico César e o modesto Suetônio. Ela representa melhor as
particularidades de uma fase histórica do que a lisonjeira crônica, feita pelos
áulicos espertos, em honra dos reis e dos imperadores despóticos. O século XVI
é menos o de Elisabeth que o de Shakespeare, o século XVII mais o de Molière
que o de Luís XIV
Várias causas, entretanto,
concorrem para a formação e o desenvolvimento de uma literatura: algumas são
peculiares ao próprio povo onde ela floresce, outras são exteriores, seguem
como que um processo de lenta infiltração, de caldeamento intelectual e moral. Aquelas
célebres fronteiras da "lei do meio", de Taine, devem ser dilatadas,
porque, na verdade, são muito mais largas do que parecem. O meio não é apenas o
ambiente, o momento e a raça. O meio é toda a civilização, é a humanidade
inteira, são todas as reações estéticas e sociais, todas as aspirações, todas
as duvidas e todos os enganos, todas as verdades e todos os erros, o meio é o
Universo.
Molière é, muitas vezes, uma réplica
de Terêncio; Corneille e Racine estão cheios de motivos gregos. Nem um deles,
porém, deixou de ser genuinamente francês, e francês do grande século. "Presque tout est imitation", pondera
Voltaire. "II en est des livres comme du feu de nos
foyers; on va prendre ce feu chez son voisin, on l'allume chez soi, on le communique
à d'autres, et il appartient à tous".
As causas exteriores,
portanto, não devem ser desprezadas como qualquer elemento perigoso de desnacionalização.
Seria, por exemplo, um grave erro histórico e filosófico aceitar, sem restrições,
as desalentadoras conclusões do Sr. Teófilo Braga contra as correntes
espanholas e provençais, que tanto contribuíram para a formosura e o esplendor
da literatura portuguesa.
Não! As literaturas são como
os seixos ao fundo quieto dos rios: precisam de muitas e diferentes águas para
se tornarem polidas. E se, por um lado, podem ficar menores, perdem, por outro, certas arestas duras e agressivas,
infinitamente mais nocivas à sua perfeição.
As causas internas, isto é, as
fundamentais, são as que servem de base ao caráter de cada povo, como a língua,
os usos e os costumes, os princípios jurídicos e religiosos, etc. Constituem,
por assim dizer, o solo onde germinam as próprias e as alheias sementes. Dadas
estas razões, vejamos quais são os argumentos que militam a favor da existência
de uma literatura brasileira.
Apesar de não possuirmos uma
língua própria, acreditamos, ao revés de alguns pessimistas de pequena envergadura,
que nos não falecem as condições necessárias ao advento de grandes obras
Literárias, perfeitamente brasileiras, caracteristicamente nacionais. A influência
portuguesa, predominante até os fins do século XVIII, entrou, no século XIX em
franco declínio e, hoje, não existe mais senão como apagado vestígio, repontando,
de raro em raro, nalguns escritores quase sem relevo. O idioma falado por nós
já apresenta singularidades notáveis; nossa prosódia tem acentos mais delicados
que a lusitana, e há na sintaxe popular muitas particularidades interessantes.
Temos, também, um extenso vocabulário, essencialmente brasileiro, cuja importância
não se faz mister encarecer. O meio é rico de aspectos físicos e sociais, a
cultura aumenta consideravelmente, e não será difícil descobrir por todo o país
os sinais de uma orientação nova, no tocante aos problemas nacionais, de uma
orientação que, sem os preconceitos jacobinos de 1889, poderá imprimir um forte
impulso à nossa evolução, dando ao Brasil uma clara visão dos seus destinos.
Todas essas modalidades
necessariamente fornecerão elementos preciosos para o desenvolvimento das nossas
letras, como no século XIX sucedeu com a Independência, que foi a origem insofismável
do indianismo de Gonçalves Dias e Alencar.
Andou, pois, com a verdade
José Veríssimo quando apontou que "a literatura que se escreve no Brasil é
já a expressão de um pensamento e sentimento que se não confundem mais com o português,
e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa.
É isto absolutamente certo desde o romantismo, que foi a nossa emancipação
literária, seguindo-se naturalmente à nossa independência política. Mas o
sentimento que o promoveu e principalmente o distinguiu, o espirito nativista
primeiro e o nacionalista depois, esse se veio formando desde as nossas
primeiras manifestações literárias, sem que a vassalagem ao pensamento e ao
espirito português lograsse jamais abafá-lo. É exatamente essa persistência no
tempo e no espaço de tal sentimento, manifestado literariamente, que dá à nossa
literatura a unidade e lhe justifica a autonomia".
Dentre os escritores que
procuraram sistematizar as fases que atravessou a literatura brasileira merecem
atenção Ferdinand Wolf, Fernandes Pinheiro e Sílvio Romero, sem contudo
esquecer os ponderados juízos de Varnhagen, na introdução do seu "Florilégio".
Ferdinand Wolf demarcou os
seguintes períodos:
1º — do descobrimento do
Brasil ao fim do século XVII;
2º — primeira metade do século
XVIII;
3º — segunda parte do século
XVIII;
4º — do começo do século XIX,
ao ano de 1840;
5º — de 1840 a 1863, ano em
que apareceu a sua estimável obra "Le Brésil Litéraire".
O cônego Fernandes Pinheiro
determinou as seguintes fases:
1ª — Fase de formação,
(séculos XVI e XVII)
2ª — Fase de desenvolvimento,
(século XVIII).
3ª — Reforma, (século XIX).
Finalmente, Sílvio Romero
estabeleceu esta divisão:
1º — Período de formação,
(1500-1750).
2º — Período de
desenvolvimento autonômico, (1750-1830).
3º — Período de transformação
romântica, (1830-1870).
4º — Período de reação crítica
e naturalista, (de 1870 em diante).
Estudando, mais tarde, a sua
classificação, Sílvio Romero chegou à conclusão, sem dúvida mais satisfatória, de
que a história da nossa literatura poderia reduzir-se a dois momentos fundamentais:
a) — fase de formação (1549-1792) e b) — fase de desenvolvimento (1792-1900),
começando a primeira "dentro das forças do período de classicismo
literário e de absolutismo literário, desde quando se fundaram as primeiras
escolas de humanidades no Brasil e espíritos como Nóbrega, Anchieta, Cardim, Luís
de Gran, Gandavo, Gabriel Soares e outros iguais ensinaram ou escreveram nesta parte
da América"; e a segunda partindo do protorromantismo da escola de Minas e
desdobrando-se até o fim do século XIX. O primeiro período abrange quase todo o
Brasil colonial e o segundo quase só o Brasil independente.
Parece-me todavia, que nem uma
dessas classificações é justa e precisa. A de Ferdinand Wolf é empírica, porque
faz do tempo, que é de natureza inflexível e está fora das nossas
contingências, um ponto de referência para as sucessivas fases de uma
literatura; a de Fernandes Pinheiro é especiosa, porquanto determina um período
de desenvolvimento e outro de reforma. Por ventura "reforma" não será
ainda um grau de desenvolvimento? Por ventura a escola mineira do século XVIII
não foi também um movimento da "reforma" em face do século anterior?
A de Sílvio Romero é a mais atenta
das três. Falta-lhe, porém, segurança e concisão. Aquele seu "período de
desenvolvimento autonômico" é menos verdadeiro, pois ainda sofríamos no
século XVIII imediata influência portuguesa. O Brasil, como se disse alhures,
era uma Arcádia semelhante às do Portugal de Felinto Elísio e Bocage. Somente
com o romantismo, depois da Independência, é que tivemos realmente autonomia
intelectual.
Seria mais acertado, talvez,
dividir a história da literatura brasileira em três períodos distintos:
1º — Período de formação,
quando era absoluto o predomínio do pensamento português (1500-1750).
2º — Período de transformação,
quando os poetas da escola mineira começaram a neutralizar, ainda que palidamente,
os efeitos da influência lusitana (1750-1830).
3º — Período autonômico,
quando os românticos e os naturalistas trouxeram para a nossa literatura novas
correntes europeias (1830 em diante).
No primeiro período, portanto,
foi a nossa literatura obra exclusiva do pensamento português: no século XVI,
com o padre Anchieta, Bento Teixeira Pinto, o autor desconhecido dos
"Diálogos das Grandezas do Brasil", Fr. Francisco do Rosário e Jorge
de Albuquerque; no século XVII, com Fr. Vicente do Salvador, Manuel de Morais,
Diogo Gomes Carneiro, Fr. Cristóvão da Madre de Deus Luz, Eusébio de Matos,
Antônio de Sá e Botelho de Oliveira, sem falar em Gregório de Matos, que,
indubitavelmente, foi a figura de maior relevo da sua época e, por muitos
modos, a voz precursora da nossa independência mental; e, finalmente, na primeira
metade do século XVIII, com Fr. Manuel de Santa Maria Itaparica, Antônio José
da Silva e Sebastião da Rocha Pita.
No segundo, apesar de ser
forte, ainda, a influência da Metrópole, já um sentimento novo se manifesta,
com os poetas da chamada "escola mineira", nas obras de Basílio da
Gama, o seu mais lídimo representante, e nas de José de Santa Rita Durão,
Cláudio Manuel da Costa, Manuel Inácio da Silva Alvarenga, e Tomás Antônio Gonzaga,
sem esquecer outros menores, como Domingos Caldas Barbosa, José Gomes da Costa
Gadelha e Antônio Mendes Bordalo. Na primeira fase do século XIX, com Antônio
Pereira de Sousa Caldas, Fr. Francisco de São Carlos, José da Natividade
Saldanha, Januário da Cunha Barbosa, Bastos Baraúna, José Elói Otoni, Domingos
Borges de Barros e José Bonifácio de Andrade e Silva, na poesia, e Fr.
Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio, Fr. Joaquim do Amor Divino Caneca,
Mont’Alverne, Baltazar da Silva Lisboa, José Feliciano Fernandes Pinheiro, na
prosa, vislumbram-se nítidos indícios de uma próxima libertação tanto moral
quanto material, embora ainda fossem vivos os remanescentes do velho
classicismo.
Depois de 1830, isto é, no seu
terceiro período, a literatura torna-se nacional. Na poesia, sucedendo a Maciel
Monteiro, Odorico Mendes e Salomé Queiroga, surgem os românticos reformadores
Domingos José Gonçalves de Magalhães e Manuel de Araújo Porto Alegre, Gonçalves
Dias lança as bases do indianismo; Álvares de Azevedo introduz a poesia de Byron
e Shelley, Heine e Musset, sendo logo acompanhado por Junqueira Freire, Laurindo
Rabelo, Fagundes Varela e Casimiro de Abreu; Tobias Barreto e Castro Alves
imprimem um cunho social à poesia, e fazem da escola condoreira uma oficina de
luta e de combate aos males da escravidão. Nesse momento já o país inteiro se
interessa pelos grandes problemas da humanidade, e entra francamente nas
correntes modernas da civilização Ocidental. É a época das revoluções. Tobias
Barreto e Sílvio Romero, por um lado, por outro Teófilo Dias, Alberto de
Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac reagem contra o romantismo,
concorrendo para a aclimação no Brasil do naturalismo e do parnasianismo. Mais
tarde, Cruz e Sousa, e os seus epígonos, insurgindo-se, como em França Verlaine
e Mallarmé, contra a "impassibilidade parnasiana", procuram no
decadentismo uma nova orientação, levando ao extremo o subjetivismo impressionista,
tão amado dos nossos antigos poetas líricos e românticos.
Na prosa o último período apresenta muitos escritores consideráveis.
Entre os romancistas e dramaturgos sobressaem Martins Pena, Manuel de Macedo, José
de Alencar, Bernardo Guimarães, Escragnole Taunay, Franklin Távora, Agrário de Sousa
Meneses, Artur Azevedo e Machado de Assis, que é, sem favor, o maior romancista
da língua portuguesa; entre os críticos e historiadores distinguem-se Francisco
Adolfo Varnhagen, José Manuel Pereira da Silva, João Francisco Lisboa,
Alexandre José de Melo Morais, Joaquim Norberto de Sousa Silva, Joaquim Caetano
da Silva, Tobias Barreto, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Capistrano de
Abreu, Rocha Pombo, José Veríssimo, Araripe Júnior e João Ribeiro; entre os
oradores e publicistas, são dignos de nota Bernardo Pereira de Vasconcelos, Maciel
Monteiro, José Maria do Amaral, José Bonifácio de Andrade e Silva, Antônio
Ferreira Viana, Francisco Octaviano de Almeida Rosa, Torres Homem, Tavares
Bastos, Alcindo Guanabara, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa,
cujo estilo é dos mais apurados e elegantes, não só pela correção da linguagem senão
também pela formosura das imagens e dos tropos.
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Fonte:
Ronald de Carvalho: Pequena História da Literatura Brasileira.
F. Briguiet & Cia. Editores. Rio de Janeiro, 1937.
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