“Quero ajudar o Brasil...”
Já contei
este caso. Vou contá-lo de novo. Hei de contá-lo toda a vida, porque é um
grande conforto de alma. É a coisa mais bonita que ainda vi.
Foi no
começo de nossa tremenda campanha pró-petróleo. Havíamos com Oliveira Filho e
Pereira de Queiroz lançado a Companhia Petróleos do Brasil — em que ambiente,
santo Deus! Tudo contra. Todos contra. O governo contra. Os homens de dinheiro
contra. Os bancos contra. A “sensatez” contra.
Ceticismo
absoluto em todas as camadas. Uma guerra surda por baixo, subterrânea, que
naquele tempo não sabíamos donde emanava. Guerra de difamação ao ouvido — a
pior de todas. As coisas ditas em voz alta não causam efeito; ao ouvido, sim.
“ —
Fulano é um escroque."
Enunciadas
assim ao natural não impressionam a ninguém, tanto andamos afeitos a ouvir
acusações dessas. Mas a mesma frase dita muito em reserva, ao ouvido, com a mão
em tapa-som, “para que ninguém mais ouça", cala fundo, faz-se
imediatamente crida — e quem a recebe corre a propagá-la como dogma.
A guerra
contra os promotores da nova companhia era assim: de ouvido em ouvido, as mãos
sempre em tapa-som — para que ninguém mais ouvisse o que era preciso que todos
soubessem. A calúnia é a rainha da técnica.
Nos seus
manifestos os incorporadores haviam sido em extremo leais. Admitiam a
possibilidade de fracasso, com perda total do capital empatado. Pela primeira
vez na vida comercial deste país se propunha ao público um negócio com admissão
das duas faces: vitória esplêndida, em caso de encontro do petróleo, ou perda
total dos dinheiros invertidos, no caso reverso. Esta franqueza impressionou.
Inúmeros subscritores vieram arrastados por ela.
— “Vou
tomar tantas ações só por terem Os senhores mencionado a hipótese da perda
total dos dinheiros. Isso me convenceu de que se trata de negócio sério. Os
negócios não-sérios só acenam com lucros, jamais com possibilidades de perda.”
A
lealdade dos incorporadores foi vencendo o público miúdo. Só aparecia no
escritório gente simples, tentada pelas vantagens tremendas do negócio em caso
de sucesso. O raciocínio de todos era o mesmo de na compra dum bilhete das
grandes loterias do Natal.
Os
incorporadores levaram o escrúpulo a ponto de lembrar a cada novo subscritor a
hipótese da perda total do dinheiro.
— “Sabe
que corre o risco de perder o seu cobre? Sabe que se não tocarmos em petróleo o
fracasso da empresa será completo?
— “Sei.
Li o manifesto.
— Mesmo
assim subscreve?
— Mesmo
assim.
— Então
assine.
E desse
modo iam sendo as ações absorvidas pelo público.
Certo dia
entrou-nos pela sala um preto modestamente vestido, de ar humilde. Recado de
alguém, certamente.
— Que
deseja?
— Quero
tomar umas ações.
— Para
quem?
— Para
mim mesmo.
Oh! O
fato surpreendeu-nos. Aquele homem tão humilde a querer comprar ações. E logo
no plural. Quereria duas, com certeza, uma para si, outra para a mulher. Isso
importaria em duzentos mil-réis, quantia que já pesa num orçamento de pobre.
Quantos sacrifícios não teria de fazer o casal para pôr de lado duzentos
mil-réis ratinhados ao salário miserável? Para um ricaço tal quantia
corresponde a um níquel; para um operário é uma fortuna, é um capital. Os
salários no Brasil são a miséria que sabemos.
Repetimos
ao extraordinário preto a cantiga de sempre.
— “Sabe
que há mil dificuldades neste negócio e que corremos o risco de perder a
partida, com destruição de todo o capital empatado?
— Sei.
— E mesmo
assim quer tomar ações?
— Quero.
— Está
bem. Mas se houver fracasso não se queixe de nós. Estamos a avisá-lo com toda a
lealdade. Quantas ações quer? Duas?
— Quero
trinta.
Arregalamos
os olhos e, duvidando dos nossos ouvidos, repetimos a pergunta.
—
“Trinta, sim” — confirmou o preto.
Entreolhamo-nos.
O homem devia estar louco. Tomar trinta ações, empatar três contos de réis num
negócio em que a gente mais endinheirada não se atrevia a ir além de algumas
centenas de mil-réis, era evidentemente loucura. Só se aquele homem de pele
preta estava escondendo o leite — se era rico, muito rico. Na América existem
negros riquíssimos, até milionários; mas no Brasil não há negros ricos. Teria
aquele, por acaso, ganho algum pacote na loteria?
— Você é
rico, homem?
— Não.
Tudo quanto tenho são estes três contos que juntei na Caixa Econômica. Sou
empregado na Sorocabana há muitos anos. Fui juntando de pouquinho em pouquinho.
Hoje tenho três contos.
— E quer
pôr tudo num negócio que pode falhar?
— Quero.
Entreolhamo-nos
de novo, incomodados. Aquele raio de negro nos atrapalhava seriamente.
Forçava-nos a uma inversão de papéis. Em vez de acentuarmos as probabilidades
felizes do negócio, passamos a acentuaras infelizes. Enfileiramos todos os
contras. Quem nos ouvisse, jamais suporia estar diante de incorporadores duma
empresa que pede dinheiro ao público — mas de difamadores dessa empresa.
Chegamos a afirmar que pessoalmente não tínhamos muitas esperanças de vitória.
— “Não
faz mal” — respondeu o preto na sua voz inalteravelmente serena.
— “Faz,
sim!" — insistimos. — “Jamais nos perdoaríamos se fôssemos os causadores
da perda total das reservas duma vida inteira. Se quer mesmo arriscar, tome
duas ações só. Ou três. Trinta é demais. Não é negócio. Ninguém põe tudo quanto
possui num cesto só, e muito menos num cesto incertíssimo como este. Tome
três.”
—
"Não. Quero trinta.”
— “Mas
por quê, homem de Deus?” — indagamos, ansiosos por descobrir o segredo daquela
decisão inabalável.
Seria a
cobiça? Crença de que com trinta ações ficaria milionário em caso de jorrar o
petróleo?
— “Venha
cá. Abra o seu coração. Diga tudo. Qual o verdadeiro motivo de você, um homem
humilde, que só tem três contos de réis, insistir desta maneira em jogar tudo
neste negócio? Ambição? Pensa que pode ficar um Matarazzo?”
— “Não.
Não sou ambicioso” — respondeu ele serenamente. — “Nunca sonhei em ficar rico.”
— “Então
por que é, homem de Deus?”
— “É que
eu quero ajudar o Brasil...”
Derrubei
a caneta debaixo da mesa e levei uma porção de tempo a procurá-la. Maneco Lopes
fez o mesmo, e foi embaixo da mesa que nos entreolhamos, com caras que diziam:
“Que caso, hein?”. Em certas ocasiões só mesmo derrubando uma caneta e custando
a achá-la, porque há umas tais glândulas que nos turvam os olhos com umas
aguinhas impertinentes...
Nada mais
tínhamos a dizer. O humilde negro subscreveu as trinta ações, pagou-as e lá se
foi, na sublime serenidade de quem cumpriu um dever de consciência.
Ficamos a
olhar uns para os outros, sem palavras. Que palavras comentariam aquilo? Essa
coisa chamada Brasil, que é de vender, que até os ministros vendem, ele queria
ajudar... De que brancura deslumbrante nos saíra aquele negro! E como são
negros certos ministros brancos!
O
incidente calou fundo em nossas almas. Cada um de nós jurou lá por dentro levar
avante a campanha do petróleo custasse o que custasse, sofrêssemos o que
sofrêssemos, houvesse o que houvesse. Tínhamos de nos manter na altura daquele
negro.
A
campanha do petróleo tem sofrido variados desenvolvimentos. Guerra grande. Luta
peito a peito. E se o desânimo não nos vem nunca, é que as palavras do negro
ultrabranco não nos saem dos ouvidos. Nos momentos trágicos das derrotas
parciais (e têm sido muitas), nos momentos em que os lidadores no chão ouvem o
juiz contar o tempo do nocaute, aquelas palavras sublimes fazem que todos se
ergam antes do DEZ fatal.
— “E
preciso ajudar o Brasil..."
Hoje
sabemos de tudo. Sabemos das forças invisíveis, externas e internas, que puxam
para trás. Sabemos os nomes dos homens. Sabemos da sabotagem sistemática, dos
móveis da difamação ao ouvido, do perpétuo dar-para-trás da administração.
Isso, entretanto, deixa de ser obstáculo porque é menor que a força haurida nas
palavras do negro.
Abençoado
negro! Um dia teu nome será revelado. O primeiro poço de petróleo em São Paulo
não terá o nome de nenhum ministro nem presidente. Terá o teu. Porque talvez
tenham sido tuas palavras a secreta razão da vitória. Os teus três contos foram
mágicos. Amarraram-nos para sempre. Trancaram com pregos a porta da deserção...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2018)
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