— Pois, meu caro — dizia Lucas ao
seu amigo Lopes —, fiz essa asneira, casei-me.
— E és pai duma legião...
— Tenho doze filhos e já alguns avos
do décimo terceiro.
— E tudo quanto produz o teu trabalho
some-se em bugigangas, leite, farinha, cueiros, fraldas, cavalinhos de pau...
— Um trabalho de negro cativo mal
dá para mantê-los no pé de decência que minha posição requer. E é uma voragem a
minha casa. Quando entro numa sapataria é para comprar doze, catorze pares de sapatos!
Das lojas nunca trouxe fazenda aos metros, é às peças. De feijão gasto meia saca
por quinzena. Uma voragem!
“E se visses que jararaca me saiu
minha mulher... Uma fera, Lopes! Dessas que lançam com prato à cara do marido se
este torce o nariz ao quitute. E feia, desleixada, lambona, cabelos despenteados,
um fedelho aos berros no braço, as chinelas a se arrastarem pela casa, trec, trec, trec. Traz à cinta a penca de
chaves e um rabo de tatu que até a mim inspira respeito. Dirige o movimento da casa
a lambadas. Grita sem parar, deblatera, diz nomes, arranca a orelha às criadinhas.
É um despotismo de saias a serviço dum estado de sítio que suprimiu o meu poder
marital, o meu pátrio poder, o meu poder animal de homem, e me põe na casa humilde
e caladinho, de orelhas murchas como um lazarento burro de carroça. Felizmente o
trabalho na repartição afasta-me da inferneira oito horas por dia. É quando vivo.
Mas logo que a tarefa termina e volto para a geena, ah, Lopes, nunca saberás com
que angústia o faço... O lar! Falam poetas nas delícias do lar, no remanso do lar...
A avaliar pelo meu, o lar é círculo que esqueceu ao Dante. Em caminho para o ‘remanso
do lar’ rememoro tudo o que me espera. No topo da escada, de mãos à cintura, a minha
tremenda metade em atitude de juiz em face do réu.
“— Trouxe a pimenta? Comprou o sabão?
Chamou o homem para consertar a torneira?
“E se acaso me esquece alguma coisa,
lá desaba o temporal.
“— É isto. Não presta para nada, não
sei por que casou, já que não serve nem para trazer da cidade um pão de sabão de
cinza para a burra da mulher que fica em casa a se matar de trabalho —, e tá, tá, tá. Não imaginas a minha vida, Lopes...”
Arrepiado ante as confidências do
amigo, Lopes alvitrou certas soluções desesperadas.
— Em teu caso, Lucas, eu recorria
a meios extremos, ao divórcio, à bolinha...
— Caçoa, caçoa. Eu também caçoava...
— Mas, Lucas, estás a exagerar. Dou
de barato que seja assim. Mas há compensações. Os filhos, por exemplo, as sãs alegrias
da paternidade...
— Os filhos... Tem muita graça o primeiro,
o segundo e ainda o terceiro. Depois, do quarto ao décimo segundo... que pestinhas
infernais! Destroem tudo, põem a casa imunda, vivem num corrupio de travessuras
capazes de endoidecer um santo. Não sei se os filhos dos outros são assim, mas os
meus batem os recordes. Há um, senhor Lulu, que prenuncia novo Átila. Diverte-se
em quebrar, furar, judiar, escangalhar o que encontra. Ontem procurei um livro —
livro de contas, sossega! — e fui encontrá-lo no quintal, dentro duma poça d’água,
à guisa de barragem de dique. Só em louça quebrada esse patife me dá um rombo de
quarenta mil-réis por mês.
“E não é só ele.
“O Eduardinho tem a mania de encafuar
os talheres nos buracos dos ratos, nas frestas do assoalho.
“Outro se especializou em quebrar
os dentes aos garfos. Chegamos à perfeição de ter em casa apenas um garfo com quatro
dentes! Já as facas são uma dentadura completa. Quem é o dentista? O senhor Lulu.
Aparece uma cadeira com três pernas. Quem foi o carpinteiro? O senhor Lulu.
“A Inazita tem a bossa da costura.
Está praticando no corte... Em pilhando a tesoura, esconde-se nos cantos e vai picando
o que encontra. Há dias recortou um corpinho no oleado da mesa, um oleado adquirido
na véspera — e tão caro...
“O Leandro é o homem da balística.
Vive com o papo da camisa cheio de pedregulho e cacos de telha — ‘tentos’, diz ele
— e brinca de partir vidraças aos vizinhos. Tem, para mal meu, mão certa como o
Guilherme Tell.
“O Lucas, esse chora. Chora doze horas
por dia, à toa, por brincadeira. É o rei da manha, mas daquelas manhas intermináveis
que deixam os nervos da gente em carne viva.
“O Bentinho, que é torto, o coitado,
já fuma pontas de cigarro e coleciona nomes feios apanhados na rua.
“O mais velho foge de casa pela janela
e entra de madrugada. Anda-me sorumbático, com umas perebas suspeitas.
“O Juvenal...”
— Para um bocado, Lucas. Deixa-me
tomar fôlego e fazer uma observação. Sendo assim como dizes, travessos, insubordinados,
insuportáveis, a culpa é só tua. É que lhes não dás a devida disciplina, não os
corriges, não lhes torces o pepino no tempo propício, homem!
— Será, mas que queres? Não posso,
não tenho energia. Sou uma tapera, um homem arrasado que me fiz fatalista para ter
uma filosofia que me dê paz à consciência. Bem me acusa ela de inépcia e frouxidão
extrema... Às vezes vêm - me ímpetos de reagir, entrar em casa de guatambu em punho
e ir deslombando às cegas a escadinha inteira, coisa de começar no frangote das
perebas e acabar nos seis gatos ladrões do Chiquinho, com escala pelos cães sarnentos
do Manuel, pelos canários azucrinantes do Júlio e pelas bonecas de pano de Mariquinha.
Moê-los em massa, a granel e ir entregar-me à polícia e pedir ao júri, de joelhos,
trinta deliciosos anos de paz e silêncio no fundo duma cela. Mas fica em ímpetos.
Sou uma tapera, incapaz dum movimento enérgico...
O pobre Lucas consultou o relógio
e assustou-se.
— Três horas! Minha cara-metade deve
estar furiosa. Adeus, Lopes, vou-me ao “repouso do lar” — concluiu, despedindo-se
com um riso amargo.
E foi-se o Lucas apressadamente, cheio
de pacotes pelos nós dos dedos; embrulhos nos bolsos e um queijo sobraçado...
Lopes ficou imóvel no lugar, com os
olhos parados, recordando. Veio-lhe à mente o Lucas de quinze anos antes. Era um
rapagão alegre, todo esperanças no futuro e amigo de arquitetar castelos de Espanha.
Poetara. Amara uma dúzia de meninas em duas centenas de sonetos parnasianos e por
fim elegeu como diva a Nonoca Fagundes, uma loura translúcida, de fala melíflua
— Botticelli temperado à moderna, dizia ele.
Era bonitinha, dezessete anos, em
pleno viço da beleza do diabo, um mimo de fragilidade grácil, boazinha como não
havia outra — boa, “boa constritor”...
Muito ingênua e amiga de reticências
graciosas, corava a todo instante. Dizia ele: Moram em suas faces duas rosas Bela-Helena. Andar saltitante como de
sílfide. Um verso dele rezava:
Das plumas tens no andar
a suave macieza...
a suave macieza...
Lucas amou-a em regra, e sonetou-a
inteira dos cabelos aos pés, parnasianamente, nefelibatamente, com lirismo de comover
as pedras. Não a tratou antropofagicamente, porque a antropofagia guindada à escola
estética ainda não fora inventada.
Sonhou-a ao seu lado, “amiga peregrina
de alma e coração”, num arroubo perene de felicidade celestial pela estrada da vida
afora...
Amou-a três anos seguidos, com o dispêndio
duma arroba de versos arrancados à carne viva da inspiração. Bateu-se a punhadas
com vários rivais temíveis. Rompeu com a família, que desaprovava o casamento. Cantou-lhe
à janela, com muito choro de violão, todas as modinhas do tempo — Quisera amar-te, Acorda donzela —, além de
outras adrede compostas para aquele fim. Amou-a loucamente, “como só se ama uma
vez na vida”. Foi desses que dizem em prosa, verso e cochicho: “Ver-te e amar-te
foi obra de um só momento”. Intercalou em alexandrinos o clássico “anjo, mulher
ou visão”. Esgotou inteirinho o alforje romântico das imagens enluaradas; recorreu
à botânica e assolou o reino vegetal à cata de flores comparativas. Não contente
com isso, ainda deambulou pelos céus e mergulhou no oceano em busca de imagens —
que nada era bastante à imensidade daquele amor.
Casou por fim e estava reduzido àquilo...
Em vista do que, Lopes, que andava
noivo e irresoluto se casaria ou não, tendo já no ativo uma dúzia de sonetos amorosíssimos,
decidiu-se incontinenti — casou.
Se tinha de acabar como o Lucas, levasse
sobre ele, ao menos, a vantagem de menor cópia de versos à futura cascavel. Porque
lhe pareceu que o maior sofrimento do Lucas havia de ser o remorso da enorme bagagem
de versos pré-nupciais.
E era.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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