10/24/2018

Pedro Pichorra (Conto), de Monteiro Lobato


































Pedro Pichorra

Quem dobra o morro da Samambaia com a vista enjoada da verdura monótona, espairece na Greta Fria ao dar de chapa com uma sitioca pitoresca.

E passa levando nos olhos a impressão daquela sépia afogada em campo verde. Casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de Santo Antônio com desenhos já escorridos da chuva e bandeira rota, trapejante ao vento... Dois mamoeiros no quintal, apinhados de frutos; canteiros de esporinhas com periquito à roda e manjericões entreverados... Um pé de girassol, magro e desenxabido, a sopesar no alto uma rodela cor de canário; laranjeiras semimortas sob o toucado da erva passarinha...

Nos fundos da casa vê-se o lavadouro, descoivarado apenas, num poço onde o córrego rebrilha três palmos d’água.

Sobre um tabuão emborcado a meio lá está batendo roupa a Marianinha Pichorra, mulher do Pedro Pichorra, mãe de nove pichorrinhas. E ali o sítio dos Pichorras e até a Grota Funda já é conhecida por Fundão da Pichorrada.

Por que os antigos Pereiras de Sousa, do Barro Branco, vieram a chamar-se Pichorras?

É toda uma história.

Pedrinho ia nos onze anos. Já se destabocara e já preferia, em matéria de fumo, o forte, bem melado. Na véspera realizara o sonho de toda a criança da roça — a faca de ponta. Dera-lha o pai, como um diploma de virilidade. “Menino, doravante és homem. Agredido, não gritarás por gente grande; é mão na faca, pé atrás e corisco nos olhos”.

Não lhe falou assim o pai, mas leu Pedrinho essa fala na lâmina rebrilhante. Por isso irradiava de orgulho, imaginando pegas, aloites, tempo-quentes e tocaias onde a sardinha alumiasse.

O pai, àquela hora de pé na soleira da porta, assuntava o céu. Viu que chover não chovia, e:

— Pedrinho! gritou para os fundos.

— Pai?

— Vá pegar a égua. O menino passou mão do cabresto e mergulhou no pasto. Minutos depois rebentou trotando em pelo a Serena, égua velha, de muita barriga mas aguentadeira.

— Dê milho, do mole, e arreie.

O pequeno debulhou duas espigas no embornal e, em enquanto a alimária mascava o lambisco, alisou-a, ajeitando-lhe no lombo pisado um saco velho, depois a carona, o lombilho, o pelego.

— Não coche demais a barrigueira. Tem potrinho.

O menino folgou dois dedos o arroxo e esperou um bocado, enrolando o cigarrinho, até que a Serena parasse de mastigar. Por fim arrumou o freio e montou.

— Agora você vai ao sítio do Nheco e diga pr’aquele tranca que dou o capadete pelos vinte e cinco mil réis.

Pedrinho abriu cara de quem estranhava a ordem.

— Sozinho?

— Ué! E a faca, então? Não é “companheiro”?

O argumento valeu. Pedrinho, sem mais palavra, deu rédea e, lepte lepte, arrancou estrada afora.

O pai, alisando maquinalmente um palhão, seguiu-o d’olhos até perdê-lo de vista na primeira curva. Depois, monologou:

— “Sozinho?” Ué! Até quando? É preciso acostumar. Onze anos, é homem... Eu com dez varava sertão.

Pedrinho trotava pela fita vermelha do caminho, sobe e desse morro, quebra à direita, à esquerda, pac, pdc, pac...

Pensava na volta. Teria tempo  de transpor a figueira antes do escurecer? A figueira... Passavam-
se coisas do arco de velha ali...

Pela meia noite — diziam — o capeta juntava a sua corte inteira debaixo dela e pinoteavam um samba do inferno.

Os sacis marinhavam galhos acima em cata de figuinhos, que disputavam aos morcegos. Lobisomens eram às dúzias que vinham focinhar o estéreo das corujas. Almas penadas, isso nem era bom falar! Quando o Quincas da Estiva contava casos ali passados com ele, não havia chapéu que parasse na cabeça.

Mas de dia, nada; passarinhada miúda só, a debicar frutinhas. Foi o que Pedrinho viu, nesse dia, ao cruzar com ela. Mesmo assim passou rápido e encolhidinho, “por via das dúvidas”. Chegou ao Nheco inda com sol, e deu o recado.

Nheco, marotíssimo, coça o cabelo de milho da barbica” e embroma:

— Pois não. Mas “não vê” que o toicinho baixou. De Minas tem descido um “poder” de capadaria que mete medo. De sorte que você diga pro pai que nestes “causos” eu não sustento o trato. Se ele quiser vinte e três mil réis... Diga assim, ouviu? Vinte e três!

Pedrinho desandou para trás, pensando consigo: safado! E veio todo o caminho absorvido em xingar mentalmente o aproveitador. Ao defrontar a figueira o medo engrifou-o. Escurecia. A luz estava morremorrendo — pálida no alto, laranja esmaiada no poente. Por felicidade passaria a figueira antes da noite. Fechou os olhos, conjurou a encardido Santo Antônio da família e transpôs dum galão o passo perigoso.

— Arre!... exclamou, com desabafo, olhando para trás e vendo a árvore maldita diminuir de porte. E pac, pac, pac, estrada em fora, rumo do sítio...

Mas escureceu, e já perto de casa, vai senão quando a égua empina a orelha e passarinha.

— Égua velha passarinhou é saci! — sugeriu dentro dele o medo. E o menino, retransido, vê de repente, no barranco, um saci de braços espichados, barrigudo, “com um olho de fogo que passeava pelo corpo”.

— Nossa Senhora da Conceição, valei-me!

Assustado por aquele berro o “olho do saci voou pelo ar, piscando”...

Pedrinho bateu cm casa de cabelos em pé, olhos a saltar. Agarrou-se com o pai, trêmulo e sem
fala. A custo desatou o nó da língua.

— O saci, pai!...

— ?

— P’ra cá da figueira... na curva... Barrigudinho... preto...

O pai deu-lhe água na cuia.

— Beba. Sossegue um pouco, menino.

E depois duma pausa:

— Você está bobeando, Pedrinho. Não há saci destas bandas.

— Juro, pai! Por Deus do céu que vi!

E contou a viagem por miúdo até à aparição.

— Altinho? Pretinho? — indagou o pai.

— Pretinho era, mas chatola, barrigudo, assim como uma pichorra grande.

— Então não é saci — concluiu o velho, entendidíssimo que era em demonologia. E depois:

— Fedeu enxofre?

— Não.

— Assobiou?

— Não.

— Mexeu do lugar?

— Não. Só o olho. O olho andava e voava.

O caboclo refletiu um bocado até que por fim uma ideia lhe iluminou a cara.

— Onde foi isso — p’ra cá do corguinho?

— É...

— No barranco?

— Justamente....

— O olho andou e depois voou, piscando?

— Tal e qual....

— E o corpo ficou parado?

— Isso mesmo....

O velho clareou a cara, desmanchando as rugas da testa, e disse, rindo:

— O que mais não se aprende neste mundo!... Sabe o que você viu, menino? Você viu o saci-pichorra....

E mudando de tom, depois de refletir durante um bom par de minutos:

— “Quedele” a faca?

— P’ra quê? perguntou o menino, desconfiado.

— Deixe ver, dê cá a faca. Pegou dela e pô-la à cinta. Depois, ríspido:

— Vá dormir.

Pedrinho, compreendendo a degradação, ergueu-se, com lágrimas nos olhos.

— E a faca? perguntou.

— Fica comigo. Pra você, porquerinha, é canivete marca anzol ainda.

E com infinita ironia:

— Vá dormir, Pedro... Pichorra!...

O menino recolheu-se, sacudido de soluços. O velho pegou do borralho um tição e acendeu na brasa viva o cigarro. Baforou uma fumaça com o pensamento no falecido sogro, Chico Vira, o caboclo mais poltrão da Estiva.

— Por quem havia de puxar o Pedrinho, pelo Chico Vira....

E, assim, o rebento masculino dos Pereiras, do Barro Branco, virou, por troça do próprio pai, o  tronco duma nova família, essa pichorrada que hoje põe a nota sépia da sitioca na verdura monótona da Samambaia.

Tudo porque a velha Miquelina deixara naquele dia a pichorra d’água a refrescar ao relento, à beira do barranco, e um vaga-lume guaçú pousara nela por acaso, justamente quando o menino passava...

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Imagem: Revista Doméstica, 9/1945.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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