É silêncio em Oblivion é como o frio
nas regiões árticas: uma permanente. Não se compreende a segunda sem o primeiro.
Ele a completa; ela o define.
Durante a noite aquele silêncio faz-se
inteiriço como a escuridão. Por mais que se apurem, os ouvidos nada ouvem a não
ser um vago e remoto ressoar, que lembra miríade de grilos microscópicos em imperceptível
surdina chiadeira.
Durante o dia, porém, a integridade
do silêncio em Oblivion sofre lesões. Uns tantos rumores, sempre os mesmos e periodicamente
repetidos, constelam-no de quebras de continuidade. O velho inimigo do Silêncio,
o Som, a espaços berra dentro dele gritos sediciosos, tal o relâmpago que momentaneamente
destrói o império das trevas. Mas o Silêncio logo subjuga e absorve o intruso.
À frente desse grupo de irreverências
está o sino da igreja. Repicando missa aos domingos ou chorando a defunto, alegre
ou fúnebre, é o Sino o mais violento perturbador do Silêncio em Oblivion.
Outra, é a capina trimensal das ruas:
o raspar das enxadas perturba o silêncio com a insistência do coaxar do sapo-ferreiro.
Outra, é o fim das aulas. Quando soam
quatro horas o portão do Grupo Escolar borbota um fluxo de meninos rompidos em algazarra,
a berrar, a cantar — e adeus silêncio.
Outra, e esta deveras notável, é o
carrinho da Câmara.
O carrinho da Câmara constitui o veículo
mais importante de Oblivion — que além dele só conta mais um, o Zé Burro, sólido
preto-mina empregado no transporte das coisas pesadas. E é o principal por várias
razões ponderosas, entre as quais a de ser ele todo de ferro, ao passo que o outro
é de carne. Verdade que o carrinho só tem uma roda e o preto tem duas pernas. Mas
como a roda do carrinho é bem centrada e as pernas do Zé são cambaias, aquela superioridade
desaparece e o carrinho instala-se de vez no primado.
Mas esta questão de primazias não
vem ao caso. O caso é a perturbação do Silêncio determinada pelo carrinho, fato
que se dá da seguinte maneira. Como o carrinho tem pouco serviço e passa a mor parte
do tempo a cochilar no depósito, a ferrugem, insidiosa inimiga da inação, sub-repticiamente
vem pintar de vermelho o eixo das rodas, de modo que, mal sai à rua o veículo, o
pobrezinho do eixo grita como um gotoso, geme, range, ringe — perturbando lamentavelmente
o Silêncio de Oblivion.
Quando Isaac Factótum — um mulato
retaco, grosso e curto como certas taturanas — recebe ordem para ir a tal parte
formicidar um olheiro de saúvas, o rolete de homem mete as garrafas de formicida,
a enxada e o fósforo dentro do carrinho e, imagem da Compenetração, símbolo da Convicção
Inabalável, parte nhem-nhim, nhem-nhim,
através das vias principais da cidade, em busca do mal-aventurado olheiro.
De sobrecenho carregado, Isaac leva
o olhar atentamente fito à frente — para “evitar algum desastre”. Nas ruas desertas
apenas um ou outro cachorrinho se estira ao sol. Isaac, a vinte passos, divisando
o vulto de um, para, ergue a mão em viseira, firma os olhos.
— Diabo! Amode que é o Joli do Pedro Surdo? —, e com uma pedra o
espanta: — Sai, porqueira! Não ouve o
carro? Não tem medo de morrê masgaiado?
E, convencido de que salvou a vida
a um cristão, Isaac-Garrafa-de-Licor-de-Cacau retoma os varais e lá segue por Oblivion
afora, nhem-nhim, nhem-nhim, com solenidade
de dalai-lama do Tibete.
Às janelas acode gente. Crianças repimpadas
no peitoril gritam para dentro:
— Mamãe, o carrinho “evem” vindo!
Muita moça nervosa deixa a costura
e tapa os ouvidos:
— Que inferneira! Não se pode com
essa barulhada!
Não obstante, o terrível veículo passa,
indiferente à admiração como à censura, garboso, todo de ferro e ferrugem, nhem-nhim, nhem-nhim, empurrado pela dignidade
infinita de Isaac-Toco-de-Vela.
E enquanto o carrinho da Câmara não
torna ao depósito municipal, o Silêncio não reentra na posse dos seus domínios.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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