10/05/2018

O velho piano (Conto), de Afonso Celso


O velho piano

Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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Na casa mobiliada que alugáramos, havia, abandonado a um canto, velho e inválido piano.

A seda das costas pendia-lhe rasgada. Despida de verniz, apresentava a caixa vestígios de fortes contusões. Entortara-se-lhe uma das roldanas dos pés, de forma que, ao menor esbarro, o instrumento imprestável ameaçava cair.

Não o tinham removido para evitar, sem dúvida, despesas e incômodos. E pairava um ar de profunda miséria sobre o pobre traste atravancador.

Quando se lhe abria a tampa, o teclado mostrava uma lividez ascética, que induzia a pensar em coisas fúnebres. Ninguém se atrevia a tangê-lo. Só desafinadas notas, sons desagradáveis deveria desferir.

Mas um dia, ao crepúsculo de formosa tarde outonal, veio a uma senhora da família a fantasia de experimentar o antigo piano.

Essa senhora conhecia muito bem música. Com brilhantismo e inexcedível perícia, executava os mais complicados trechos.

— Deixe em paz a triste carcaça, — gritei do outro lado do salão. Não é prudente conversar com esqueletos.

Ela, porém, despertara os primeiros acordes, e soltara uma risada. Do velho piano saíra um rumor grotesco. Dir-se-ia o cochicho de um ancião desdentado e feio, lamuriando queixas ridículas.

Entretanto, a pianista continuou; e, passo a passo, as perras cordas foram vibrando às suas mãos peritas.

Então, apoderou-se de mim encantamento estranho. O velho piano soltava uma voz dolente e abafada, de originalíssimo timbre.

Voz de sonâmbulo que resmoneia segredos, voz de mistério, incógnita e tumular. O dialeto da sombra, tartamudeado por um fantasma.

E era uma toada, esbatida, mística, longínqua, — sobre a qual flutuava uma espécie de véu úmido, — evolada de profundezas brumosas, embebida de melancolia e saudade indizíveis.

Confidência, súplica, lamento, manifestação medrosa do sentimento escondido, — suavidade aveludada e enternecedora...

Aquilo buliu-me com os nervos e repassou-os de quebrantamento. Invadiu-me a impressão de ir sorvendo, em tragos lentos, um elixir letárgico que me ensombrava gradativamente a inteligência e os sentidos.

Tombei prostrado num divã, inebriado pela esvaecida melodia crepuscular.

Sou dos que apreciam a música, não pelo deleite material da audição, mas pelas visões que sugere à faculdade de imaginar.

Oferece-me cada som uma imagem e corresponde a uma figura especial, imagens e figuras indistintas às vezes, porém apresentando, não raro, as formas precisas, embora incoerentes, dos sonhos.

E, através da gaze penumbrosa que a noite incipiente desdobrava pelo aposento, de súbito entrevi, sentada ao velho piano, em vez da verdadeira pessoa que tocava, uma formosa menina.

Dezesseis anos, viço nas faces, ingenuidade nos modos, ilusões douradas no olhar.

Antiquados o seu penteado e os seus trajos, — evocação do passado, descida de vetusto painel.

Dedilhava singela melodia, casta e simples, como o seu coração de virgem.

No ritmo sereno, porém, perpassavam, de vez em vez frêmitos febricitantes, imediatamente contidos: arremessos d'alma, desejos, balbuciações inconscientes de amor.

Mas, a pouco e pouco, as feições da donzela se acentuam: expande-se-lhe o busto; mais pensativa e grave se lhe torna a expressão.

Atingiu a florescência plena, como se anos houvessem decorrido.

E as modulações do instrumento transmudaram-se também. 

Cheias, agora, e palpitantes. Relampagueia nelas a paixão. Ardor, vida, entusiasmo lucilam; enquanto, no fundo, vagueiam tristezas etéreas, pressentimentos, — a amargura talvez das primeiras decepções.

Novamente se transfigura a aparição. Muito tempo, decerto, se passou...

Jovem embora, na fisionomia da pianista transparecem, presentemente, vestígios de mágoas, — a fria experiência do existir.

E como destilam desalentos as cadências pulsadas!

Inspira-as a dor, nas suas múltiplas formas: — ciúmes, revoltas, ambição, nostalgias, — a gama inteira, — complexa e lancinante do destino.

Metamorfoseia-se ainda a criatura fantástica que eu lobrigava.

Deve ter assaz padecido, a coitada!

Cãs na cabeça, rugas no semblante, tédio e fadiga em todos os traços.

E entoa a sinfonia da saudade, compassada de soluços, celebrando alegrias extintas, afeições que para sempre partiram, esperanças apagadas.

Sente-se, a espaços, o bafejo próximo da morte.

Harmonia estranha, belamente aflitiva: variações infinitas sobre o eterno tema da miséria humana escarnecida pela fatalidade.

Há, em surdina, um ritornelo esquisito, semelhante a mordazes risadas de ironia cruel.

Domina tudo o amplo enigma que acabrunha a consciência, contra o qual perpetuamente ela se agita, impotente para o decifrar.

Mas, insensivelmente, dissipou-se a magoada miragem feminina.

Povoou-se inteiramente de trevas a sala.

Vultos indistintos cruzam-se na escuridade, aéreos e sutis.

Roçavam-me a fronte fluídos de seres impalpáveis.

E o velho piano despedia assonâncias incongruentes, — marcas fúnebres, motivos de dança, interjeições de prazer, brados de espanto, — toda a incomensurável variedade de ideias e sentimentos que à sonoridade é dado exprimir.

Nítidos, todavia, foram ficando os acentos; e, de repente, ouvi o velho piano falar:

— Zombavas, há pouco, de mim, mancebo inexperto. Mal fizeste. Mereço veneração. Cumpre tributá-la às entidades sobre as quais rolaram ondas de tempo. Como o teu, é o meu corpo uma aglomeração de átomos. Estamos sujeitos (e eu de mais longa data) à influência das mesmas leis físicas que regem o planeta e tudo quanto ele encerra, sem discriminação. Afinidades estreitas, solidariedades profundas nos identificam. Se caísse aqui um raio, desorganizar-te-ia, bem como a mim. E pensas acaso que não me lateja também no íntimo um princípio incorpóreo?... Vibraram, por meu intermédio, durante largo prazo, sensibilidades e imaginações. Das mãos febris que me tangeram passou para mim uma porção do eflúvio superior que as animava. Guardo resíduos indeléveis das inspirações que se me confiaram. O contato de tantas almas contagiou-me a essência delas. Depositário de pensamentos intraduzíveis, transmissor de estados morais indecifráveis, intérprete das aspirações mudas, dos devaneios, que transpõem as fronteiras da compreensão, eu tenho um passado, eu vivi, eu vivo, eu morrerei, como morrerás, mancebo, em chegando o inevitável período da desagregação. E se conservares, depois disso, recordação das eras idas, por que não as conservarei igualmente? Não rias. Felizes e privilegiados os que percebem a alma da natureza, o imanente espírito universal!

Nisto, um criado acendeu luz no salão. Voltei a mim imediatamente da alucinação exótica.

O velho piano jazia quieto e miserando no seu ângulo escuso.

Mas eu me sentia subjugado de confusas opressões.

Acabrunhava-me a mente o formidando arcano do impenetrável e do invisível. Envolvia-me o supremo mistério dos seres.

Acudiam-me à memória as palavras de Guy de Maupassant:

— Conhecemos nós acaso a milionésima parte do que existe?! Considerai o vento, que é a maior força natural, que derruba homens, derroca edifícios, desarraiga árvores, levanta o mar em montanhas d'água, destrói barrancos, o arroja contra rochedos os enormes navios; — o vento que mata, assobia, geme, muge; — quem já o viu ou poderá ver? Existe, entretanto!

Maupassant acabou doido, refleti em seguida.

Chamaram-me então para jantar. A animalidade reclamava os seus direitos.

Comi com grande apetite.

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