O barco aproximava-se da
terra. A baía ia-se alargando e um recorte de espuma branca, que banhava os
rochedos da margem, marcava o ponto em que o pequeno rio se lançava no mar. Uma
linha de verde mais escuro indicava seu curso sinuoso, desde a encosta assaz
distante.
A floresta chegava até a beira
da praia. No horizonte, em vago contorno semelhante ao das nuvens, erguiam-se
montanhas que, assim de longe, tinham o aspecto de ondas congeladas.
O mar era calmo: um marulho apenas
perceptível. No céu estrelas rutilavam.
O barco parou. Um dos
remadores disse, estendendo um braço:
— Deve ser por aqui perto.
O outro homem, sentado à proa,
examinava atentamente a margem. Tinha sobre os joelhos uma folha de papel amarelecido
pelo tempo.
— Venha ver isto, Evans
respondeu ele afinal.
Falavam em voz baixa. O que se
chamava Evans atravessou, cambaleando, o barco e por cima do ombro do seu
companheiro olhou.
Sobre o papel estava
grosseiramente traçada uma espécie de mapa com dizeres, que mal se podiam ler,
e um desenho em que podia-se distinguir vagamente, a traço de lápis quase
apagado, o desenho da baía.
Pousando um dedo sobre esse
papel, Evans disse:
— Aqui, são os recifes de
coral; além, a baía.
— É isso mesmo. E esta linha
caprichosa é o rio. Se eu agora pudesse beber um pouco d'água seria capaz de um
arranco... O lugar deve ser este aqui, marcado por uma cruz.
— Sim. E veja esta linha
ponteada: vai da embocadura do rio direito a um bosque de palmeiras. A cruz
está justamente no ponto em que a linha corta a corrente. Teremos de assinalar
o local quando entrarmos no estuário.
— Mas— perguntou ainda Evans após
um silêncio — que significam estes riscos? Dir-se-ia a planta de uma casa, de
uma edificação qualquer. Também não compreendo o que podem significar estes
tracinhos aqui dirigidos num e outro sentido. E estes rabiscos...
— Isso é escrita chinesa.
— Naturalmente, visto que ele era chinês.
— Eram todos.
Os dois homens ficaram imóveis
durante alguns minutos, examinando com atenção a terra. O barco derivava
lentamente.
— Bem; agora cabe a você remar
— disse Evans.
Hooker dobrou o mapa, sem se
apressar, meteu-o na algibeira, passou com precaução para o lugar de Evans e
tomou os remos. Seus movimentos eram lânguidos, como os de um homem que está a
cabo de forças.
O outro, sentado, fitava com
os olhos semicerrados a espuma do recife de coral, que parecia aproximar-se.
Embora estivessem quase a alcançar o tesouro não se sentia exaltado. A tensão
nervosa necessária à luta em que se tinham apoderado do mapa e depois aquela
longa viagem à noite, sem víveres, sem água... tudo isso tinha-o fatigado a tal
ponto que ele se sentia agora incapaz de uma sensação nova. Tentou recobrar a
energia concentrando sua imaginação sobre as luzentes barras de ouro de que os chineses
haviam falado. Mas seu espírito recusava-se a reconstruir a visão, que o havia
deslumbrado no primeiro momento, e o ruído monótono do mar dava-lhe uma sonolência
irresistível.
E naquela semi-inconsciência
reviu mais uma vez a noite em que Hooker surpreendera o segredo dos chineses.
Fora em uma clareira do pequeno
bosque, uma clareira que a lua iluminava fortemente. Os três celestes estavam
agachados em torno de uma pequena fogueira de modo que suas silhuetas apareciam
vermelhas de um lado pelo fulgor das brasas e prateadas do outro pelo luar.
Hooker, que estivera por muito
tempo em Shangai e compreendia melhor o chinês, fora o primeiro a perceber o
sentido geral da palestra e fizera-lhe sinal para prestar ouvidos.
Então haviam compreendido que
se tratava de um tesouro: um galeão espanhol vindo das Filipinas naufragara ali
e sua tripulação enterrara no litoral o carregamento de ouro que trazia, com a
esperança de vir buscá-lo mais tarde. Mas depois, buscando terra habitada em
barcos pequenos, tinham morrido todos no mar, ou perdidos nas ilhotas áridas
dos arredores. O tesouro ali ficara ignorado, durante dezenas de anos, até que
um dos três chineses, Chan-Li, descobrira-o por acaso.
E era Chang-Li quem agora
revelava o segredo a dois compatriotas para que juntos fossem buscá-lo em
benefício de uma misteriosa empresa revolucionaria, insistindo em afirmar que o
ouro estava em absoluta segurança porque seria impossível encontrá-lo sem o
roteiro ou mapa, que traçara e ali tinha em seu poder: sem esse roteiro e sem
sua presença.
Imaginem a impressão que poderia
causar semelhante conversa, caindo em ouvido de dois ingleses sem recursos, que
tinham deixado todos os escrúpulos em aventuras de todo o gênero pelo vasto
mundo...
O sonho de Evans precipitou-se
e ele viu-se no momento em que agarrara Chang-Li pelo rabicho. O chinês tentara
resistir; depois vendo-se perdido, começara a vociferar ameaças terríveis, afirmando
e jurando que mesmo depois de o terem massacrado de terem deitado mão ao itinerário
não haviam de alcançar o ouro, pois morreriam antes disso!
Tolices! O idiota queria impressioná-los.
Um choque brusco despertou
Evans. Tinham chegado à entrada do estuário e Hooker explicava:
— Ali estão as três palmeiras.
O lugar dever ser na direção daquele arvoredo. É seguir em linha reta das
palmeiras ao arvoredo e encontraremos o ouro no ponto em que essa linha corta o
rio.
Porém, Evans mal ouvia. O
tormento da sede tornara-se alucinante. Curvou-se sobre a borda da embarcação e
apanhou a água, que cuspiu com fúria. Ainda era salgada.
— Vamos seguindo — rosnou ele
em tom de súplica exasperada. — Enquanto não alcançarmos o rio, não conte
comigo para coisa alguma. Estou morrendo de sede.
Hooker começou a remar, mas
seus movimentos pareciam-lhe de uma morosidade intolerável. Tomou-lhe os remos
e bracejou com fúria. Agora era Hooker quem se curvara à proa e, de instante a
instante, provava a água, sacudindo a cabeça com desespero.
Quando, afinal, a água
tonou-se boa, Hooker não teve tempo para pronunciar uma palavra. Apenas avisou
ao amigo com um gesto e começou a beber com ânsia.
Depois, renovados de ânimo,
procuraram um lugar onde desembarcassem mais próximos do grupo de palmeiras a
fim de alcançar a linha ideal, que devia conduzi-los ao tesouro.
Saltaram. Levavam, para abrir
caminho no mato, apenas um remo — largo e pesado — e um machado nativo, em
forma de L, com uma pedra polida na
extremidade.
Começaram a rasgar uma vereda
através de um emaranhado de cipós e bambus. Os primeiros passos foram penosos,
mas em pouco entraram numa região de árvores mais espaçadas e maiores. Tiveram
sombra, encontraram frutas...
Mas, de súbito, tiveram uma
surpresa alarmante, encontrando-se diante de outro caminho aberto no mato,
certamente um atalho, que evidentemente era obra humana e não tinha muito
tempo.
Seguiram por ela com
precauções, de olhos abertos e mãos crispadas sobre as improvisadas armas.
Mais alguns passos e viram
entre os troncos um largo filete d’água brilhante ao Sol nascente. Era o rio.
— Devemos estar perto — disse
Hooker com voz fraca.
E o coração batia-lhe no peito
com força. De um lado, havia um charco imenso e traiçoeiro, em que Evans chegou
a enterrar-se até os joelhos, contendo as pragas pela preocupação de que podia
ser ouvido; do outro, a vegetação muito espessa desafiava os esforços de dois
homens. Diante deles, abria-se misterioso e sombrio o atalho, que não podia ser
o caminho de Chang-Li, porque ele estivara ali cinco anos antes. A uberdade
prodigiosa daquele solo não deixaria aberto um caminho há tanto tempo no meio
da floresta. Alguém passara por ali meses antes. Dias antes, talvez.
Observando atentamente o rio,
os dois aventureiros notaram que, à esquerda, uma pequena cachoeira assinalava
a curva, a curva junto à qual deveria estar o tesouro.
— Quer-me parecer que nos
desviamos um pouco da linha reta.
— Não — afirmou Evans.
Mas não teve coragem de
acrescentar que se julgava no bom caminho, porque aquele era o caminho que o
outro seguira, o outro antes deles.
Caminharam mais um pouco. O
atalho terminava em uma clareira. O rio estava a dois passos.
Devia ser ali. Olharam em
torno. O terreno estendia-se pantanoso e acidentado.
— Onde estará? — perguntou
Hooker, volteando devagar.
Chang-Li falara em pequenos
montes de pedras.
Fitaram-se profundamente, com
olhar cheio de recordações sangrentas, e voltaram a observar o solo.
— O que será aquilo? — Evans
exclamou, de súbito, estendendo o braço.
Hooker olhou naquela direção e
viu alguma coisa azul.
Subiram a um montículo a fim
de observar melhor e distinguiram um braço, que saía do solo, com a mão
crispada... Adiantaram-se rapidamente. A manga que cobria esse braço era de lã
azul. O morto era um chinês: estava hirto, horrivelmente contorcido, meio
enterrado em uma escavação apenas começada.
Os dois aventureiros
curvaram-se em silêncio, observando aquele cadáver de mau agouro, que tinha ao
lado uma enxada de formato chinês e várias pedras espalhadas.
— Maldição! — resmungou
Hooker. — Então não era apenas Chang-Li quem conhecia o segredo.
Evans empalideceu e começou a
desfiar todo o medonho repertório de pragas que aprendera na África e na
Austrália.
Seu companheiro, mais calmo,
ajoelhou-se atento e notou que o morto tinha o pescoço, os pulsos e os
tornozelos muito inflamados. Depois, examinando a escavação, deu um grito de
alegria.
— Eh, Evans! Não foi nada.
Tudo vai bem. O ouro ainda está aqui. Esse idiota não chegou a levar coisa
alguma.
Evans curvou-se também e, na
meia-luz da clareira, distinguiu umas barras amarelas, que apareciam ainda
envoltas em terra.
Então, atirou-se numa ânsia
febril, afastando a terra com as mãos. Um espinho feriu-o no dedo. Ele o
arrancou com as unhas e continuou extraindo barras de metal do chão.
À primeira que que conseguiu
levantar, exclamou com expressão triunfante:
— Apenas o ouro e o chumbo
podem pesar assim!
Entretanto, Hooker parecia
intrigado com o aspecto do chinês morto e murmurava:
— Este canalha veio apenas com
um dia de avanço sobre nós. Não há decerto nem vinte e quatro horas que está
morto. Mas de que teria ele morrido? Quer me parecer que foi picado por alguma
serpente excepcionalmente venenosa. Em todo caso, resta saber como diabos ele
conhecia o lugar do tesouro.
Porém, Evans nem o ouvia. Que
importa um chinês morto, quando se tem à mão uma barra de ouro?
— Mas que trabalheira! —
exclamou ele, com um riso nervoso e irresistível. — Se cada uma das barras pesa
tanto como esta, vamos ter que carregá-las uma a uma. E mesmo não poderemos
conduzir todas numa só viagem com uma canoa tão pequena.
Tirou casaco, abriu-o no chão
e depôs dentro dele a primeira barra de ouro. Quando ia apanhar a segunda, um
novo espinho feriu-o na mão. Não se importou com isso e atirou uma terceira
barra de ouro dentro da roupa.
— Pronto! — exclamou. Isto é o
máximo que podemos carregar numa viagem. Toca a andar.
E, vendo que Hooker continuava
imóvel diante do chinês morto, teve um movimento de mau-humor.
— Ó, homem! Você está
magnetizando esse defunto? Vamos com isso!
Hooker voltou-se tão pálido
que também parecia morto.
—É muito esquisito — disse
ele. — Muito esquisito. De que teria morrido esse homem, santo Deus?
— Ora, adeus! Morreu e
acabou-se — disse Evans brutalmente. — Também nós haveremos de morrer um dia.
— Mas eu acho esses sintomas
esquisitos...
— Ora, não me aborreça! Deu
agora para estudar medicina?
— Cale-se! — murmurou o outro.
— Em tudo isto, há indícios que me assustam.
— Pois sim; porém nós viemos
aqui para carregar ouro e estamos perdendo um tempo precioso. Vamos levar estas
barras até o barco. Se andarmos ligeiro, podemos fazer quatro viagens antes da
noite.
Hooker não se moveu. Parecia
refletir e o seu olhar inquieto observava as árvores dos arredores. Voltou a
olhar o rosto disforme do chinês morto e estremeceu violentamente.
Evans impacientava-se.
— Vens ou não vens?
Hooker agarrou duas pontas do
casaco, Evans levantou as outras duas e puseram-se a caminho.
Mas, ao fim de alguns passos,
Evans cambaleou e detendo-se, disse:
— Não sei o que é isto. Estou
sentindo uma aflição!... Uma dor leve nos braços... uma espécie de cansaço
torturante...
Hooker fitava-o com os olhos
dilatados por um pavor intenso.
— O que é que você está sentindo?
— perguntou ele com a voz estrangulada.
— Não sei — murmurou Evans.
Deixou cair o casaco e,
encostando-se a um tronco de árvore, passou a mão pela testa, gemendo:
— Que aflição!
Tentou segurar-se ao tronco,
mas suas mãos pareciam entorpecidas e ele resvalou, caiu e ficou estendido no
solo com o corpo horrendamente estorcido, arquejando...
Então Hooker viu que o pescoço
e os pulsos do companheiro começavam a ficar avermelhados.
Essa constatação causou-lhe
tamanho choque que ele sentiu as pernas sumirem sob o corpo e caiu de joelhos,
apoiando as mãos sobre as barras de ouro.
Mas logo ergueu-se num salto.
Sentira um espinho, oculto na terra agarrada às barras de ouro, picar-lhe a
ponta de um dedo. Com um rugido abafado e trêmulo, olhou para o ferimento e
ficou gelado de horror.
— Deus!
Foi essa a única palavra. O
espinho longo e muito fino ele bem conhecia. Era um daqueles que os nativos
dakays usavam em suas sarabatanas e cujo veneno não perdoa.
O olhar de Hooker vagueou em
torno. Evans continuava imóvel, contorcido, e sua boca muito aberta parecia
sorver inutilmente o ar. A pequena distância a mancha azul assinalava a mão do
chinês, que parecia chamá-lo.
Hooker compreendia agora por
que razão Chang-Li insistia em afirmar que o tesouro estava em segurança, que
só ele poderia buscá-lo sem perigo. Compreendia agora o ricto zombeteiro de sua
boca quando Evans lhe esmagava a cabeça a pauladas.
— Evans!
Seu grito foi inútil. Agora, o
companheiro manifestava vida apenas pelo pequenino tremor que lhe movia os pés.
Em torno, era silêncio
completo.
Hooker levou o dedo à boca e
começou a chupar o ferimento com a ânsia que lhe cavava o peito. Mas já sentia
uma dormência em todo o braço e tinha dificuldade de dobrar os dedos.
Então compreendeu que a sucção
era inútil e, num desânimo completo, deixou-se cair, sentado ali mesmo, entre
Evans já semimorto e o ouro, que já não lhe merecia a atenção. Encostou os
ombros ao tronco da mesma árvore a que o seu companheiro se agarrara e
ajeitou-se bem para morrer assim.
A careta macabra e triunfante
de Chang-Li não lhe saía da memória. A dor surda ia-se estendendo dos braços
aos ombros e ao pescoço, tomava-lhe a garganta com a intensidade que aumentava
a cada instante.
Felizmente, uma sonolência
invencível também vinha pouco a pouco, e o desgraçado teve a esperança de
ficar insensível antes de morrer.
Em cima, o vento começou a
zunir com força, desfolhando grandes flores azuis, que ele não conhecia, e que
caíam esvoaçando como flocos de neve.
---
Notas:
Tradutor desconhecido.
Notas:
Tradutor desconhecido.
Conto publicado originalmente
na revista “Eu Sei Tudo - Magazine Mensal Illustrado”, edição nº 5, de outubro de 1917.
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