— Leram o conto de Alberto de
Oliveira?
— O imortal?
— Sim.
— Perdemos alguma coisa?
— Não perderam coisa nenhuma, que
aquilo é maçador. Confesso que bocejei de enfado e, consoante velho costume, passei-o
à minha cozinheira, velha mulata sabidíssima, parenta da cozinheira de Molière.
“— Josefa, lê-me isto e bota opinião.
“A excelente criatura lavou as munhecas,
diminuiu o gás ao fogão, acavalou no nariz os óculos através de cujos vidros costuma
coar-se-lhe para o cérebro todo o rodapé dos jornais e albertizou-se durante meia
hora. Ao cabo, veio ter comigo.
“— Pronto, sinhozinho, está lido.
“— E que tal?
“Josefa tem um maravilhoso paladar
quituteiro. Seus tutus com torresmo, o picadinho que ela faz, as moquecas!... São
puríssimas obras de arte capazes de rematar de inveja ao próprio Vatel, se Vatel
acaso ressuscitasse. Pois bem: o mesmo gênio que a Zefa demonstra na confeição de
uma obra-prima culinária, revela-o no julgamento das coisas de literatura. Tem o
faro que não falha do rato, o qual entre cem queijos escolhe sempre o melhor. Por
essa razão, quando me sinto em dúvidas apelo para o seu juízo instintivo e acato-lhe
a sentença como emanada da própria Minerva.
“— Então, Zefa? — insisti.
“Ela refranziu os lábios num muxoxo.
“— Não fede, nem cheira — disse —;
é virado de feijão velho mexido com farinha mal torrada. Falta sal, tem gordura
demais — parece comida feita por menina da Escola Normal — concluiu, com sorriso
de veterano ao ouvir falar em proezas de recruta.
“— Mas, Zefa, que diz o homem, afinal
de contas?
“— Não diz nada; engrola, engrola,
vai pra lá, vem pra cá e a gente fica na mesma. É dos tais perobinhas da miúda que
outro dia mecê chamou... como é mesmo?... pici... pici.
“—... cólogos, psicólogos. Os homens
dos estados d’alma. Penso como você, Josefa. Quero conto que conte coisas; conto
donde eu saia podendo contar a um amigo o que aconteceu, como o fulano morreu, se
a menina casou, se o mau foi enforcado ou não. Contos, em suma, como os de Maupassant
ou Kipling...
“— Ou de seu Cornélio Pires...
“— Perfeitamente, do Cornélio, do
Artur Azevedo, contos onde haja drama, comédia ou pelo menos uma anedota original.
Mas estas pretensiosas águas panadas, este fantasiar por páginas e páginas sem lance
que arrepie os cabelos ou repuxe músculos faciais, esta gelatina insossa da Academia
de Letras de Itaoca...
“Josefa, quando lhe falam na Academia
de Itaoca, regala-se toda, e toda se expande em risos. Ficou assim desde que leu
a Condessa Hermínia e outras imortalices
quejandas.
“— E então este seu Alberto também
é imortal, dos tais que escrevem homem sem h?
“— É, Zefa, é imortal vitalício, com
patente e direito de podar os hh da língua
e comer o s de ciência, e — o que é pior — com privilégio de maçar a humanidade
com sornices pacóvias, que só não engolem criaturas como tu, sãs de paladar e sinceridade.”
E a conversa recaiu sobre contos.
Disse um da roda:
— Contos andam aí aos pontapés, a
questão é saber apanhá-los. Não há sujeito que não tenha na memória uma dúzia de
arcabouços magníficos, aos quais, para virarem obra de arte, só falta o vestuário
da forma, bem cortado, bem cosido, com pronomes bem colocadinhos. Querem vocês a
prova? Vou arrancar um conto ao primeiro conhecido que entrar.
E pusemo-nos de tocaia.
Não tardou muito, surge o Cerqueira
César.
— Viva! Fazia-te ainda no sertão,
homem — comecei eu.
— Pois estou cá. Cheguei ontem, refeito,
oxigenado, reverdecido de alma e corpo. Que delícia o sertão!
— Muita caçada?
— Dez queixadas, três onças... E,
por falar, já ouviram vocês a história do “Resto de Onça”?
— “Resto de Onça?!” — exclamamos,
aparvalhados.
César gozou o nosso espanto. Depois
narrou.
— Estávamos organizando uma batida
às onças. Quem tudo dirigia era lá o meu capataz, Quim da Peroba, o mais terrível
caçador das redondezas. Quando é ele quem dirige o serviço, a bicharia sofre destroço
pela certa, tão hábil se mostra na escolha dos companheiros, dos cães e das disposições
estratégicas.
— Vai — dizia o Quim contando nos
dedos —, vai o Nico, vai o Peva, vai o “Resto de Onça”...
— “Resto de Onça”? — exclamei eu,
tão aparvalhado como vocês inda agora. — Que diabo de bicho é esse?
“Quim sorriu e disse, depois de sacar
uma palha:
“— É um pedaço de homem; um homem
a quem a onça comeu uma parte e que continua a viver com o resto do corpo. Pois
assim mesmo ainda é um cuera que eu não troco por três sujeitos inteiros da cidade.
Mecê vai ver.
“De fato, vi. Tudo organizado, na
véspera da caçada, à tarde, o primeiro a apresentar-se foi ‘Resto de Onça’.
“— ‘Stardes’.
“Era um caboclo chupado, sem o braço
direito, sem um olho, sem um pedaço de cara. Horrível! Uma bochecha fora lanhada
e despegara com parte dos lábios e um dos olhos, de modo que aquilo por ali era
uma só pavorosa cicatriz, repuxada em várias direções. Entreabriu a camisa: no peito,
a mama esquerda, arrancada a unhaço, era outra horrível cicatriz de arrepiar.
“Pedi-lhe que contasse a sua história.
‘Resto’ não se fez de rogado.
“— Não vê que — foi dizendo — lá na
fazenda do coronel Eusébio, na beira do sertão, havia onça que era um castigo. Foi
preciso bater nelas, de cachorrada e chumbo, um ano inteiro para livrar o gado.
O coronel tanto lidou que venceu. As que não caíram mortas afundaram para longe.
Mas ficou uma. Era uma bela onça-pintada, matreira como cachorro-do-mato. Tinha
manhas de negro fujão. Nem mundéu, nem cachorro mestre, nem o Leopoldino Onceiro,
que é um cabra-macho para desiludir uma bicha mesquinha, nunca puderam atinar com
ela de jeito a barrear a volta do apá com um lote de paula-sousa. Escapava sempre
e de birra vinha pegar os porcos no chiqueiro.
“Um dia — o coronel estava na mesa
almoçando — rebentou uma tormenta no chiqueirão, detrás da casa. Corremos todos:
estava a onça ferrada na mais bonita porca da fazenda, já moída com um munhecaço.
Corre que corre, grita, atira — ela escapuliu.
“O coronel virou bicho e jurou que
seria a última vez.
“— Ela volta — disse eu —, ela não
desiste da porca. O melhor é ficar um bom atirador de plantão, dia e noite.
“— Pois fica você.
“Fiquei na tocaia, escondido de jeito
que a onça não pudesse desconfiar. “Varei a noite de olho aceso: nada. Rompeu a
manhã: nada. Eu disse comigo:
“— Agora dou um pulo lá dentro, bebo
café e volto.
“Fui, engoli um cafezinho com mistura,
depressa, depressa; mas quando voltei... quedele a porca? A onça tinha me logrado!...
“Quando soube da coisa, o coronel
bufou que nem queixada em mundéu. “— Quim — disse ele —, vá juntar gente e cachorrada.
Bote um exército aqui pra domingo, e vamos picar de bala essa malvada. Quero ver
o couro dela aqui no chão, com seiscentos milhões de diabos!
“Eu saí, corri a vizinhança e apalavrei
para domingo tudo quanto era espingarda, foice e cachorro de cinco léguas de roda.
“Chegado o momento, começou uma batida
em regra.
“Tudo corria bem, senão quando, de
repente, au! au! o meu Brinquinho — conheci
a voz! — acuou primeiro de todos. E logo a cachorrada inteira, uns cinquenta — au! au! au! —, música de arrepiar a gente.
Ah, moço, que festa foi esse dia! A bicha de cada tapa esmigalhava um cão... Ia
parando na carreira, de tocaia atrás dos troncos e mal o cachorro dianteiro fronteava,
ela baf! tripas de fora! Um castigo...
“Já levara um tiro, mas nem conta
fez; e, assim, fugindo, ia arrasando os cachorros onceiros. Eu corria na frente,
seco por ganhar a glória da caçada, e por via disso me distanciei dos companheiros.
De repente, sem ver nada, paf! um manotaço
de unha na cara me pinchou de costas no chão; um corpo caiu sentado em cima de mim.
Ah, mundo! Que luta aquela! Eu com os braços só defendia a cara, que se a onça me
aboca era o fim; e, como a espingarda me ficasse debaixo do corpo, minha porfia
era passar a unha nela.
“O que me salvou foi a coragem do
Brinquinho. Como os caçadores e os outros cães ainda não tivessem chegado, só ele
me ajudava, latindo com desespero e ferrando o dente nos traseiros da fera. A cada
dentada a onça se voltava para estapear o cachorro, que fugia — que fugia para atacar
de novo logo que a onça virava pra mim.
“Tudo isto que levo agora um tempão
contando se passou num corisco de minuto. Lá em certo momento pude alcançar a faca
— faquinha à toa de matar porco. Saquei a faca e casquei no pescoço da bicha. Quem
disse enterrar? Vergou, a porqueira, como se fosse de lata, sem calar nem a pontinha!
Me vi perdido. ‘Ferra, Brinquinho!’ Aquela pessoa de quatro pés, com uma coragem
louca, zás! outra dentada. A onça me folgou,
e eu vi romper do mato o primeiro caçador. Era justamente meu sogro.
“— Atira, Nhô Vado! — gritei.
“Que atirar nada! O raio do maleiteiro
ficou tão estuporado de me ver na goela da onça, que estarreceu no lugar.
“— Atira, Nhô Vado!
“Que nada! Nisto houve jeito de eu
desentalar a espingarda e entrouxar o cano na boca da onça. Estrondei o tiro; a
bicha moleou de banda.
“Eu estava em pedaços, mas não sentia
dor nenhuma. Só me lembro que, ainda no chão, puxei a espingarda de dentro da boca
da onça, virei o cano pro lado do meu sogro e sapequei nele o segundo tiro, junto
com um nome ofensivo à defunta avó da minha mulher, Deus que me perdoe! De reiva...
Depois veio a dor e perdi os sentidos.
“‘Resto de Onça’ tomou fôlego.
“— E fiquei assim. O braço direito,
sem carne, sem osso inteiro, foi preciso o médico cortar com a serra; a cara e o
peito foram sarando e fiquei assim, resto de onça, caco de gente, mas homem ainda
pra escorar o diabo!”
— Então, que lhes dizia eu? — comentou,
voltando-se para os companheiros, o que prometera extrair um conto ao primeiro conhecido
que passasse.
— Sim — retrucou o ranzinza do grupo
—, mas não é bem um conto, não passa dum caso, duma anedota de caçador.
— Está enganado. Tem todas as qualidades
do conto e tem a principal: poder ser contado adiante, de modo a interessar por
um momento o auditório.
Dê ao fato forma literária, umas pitadas
de descritivo, pronomes por ali, uns enfeites pimpões e pronto! — vira conto dos
autênticos, dos que não secam a paciência da humanidade com a arquimaçadora psicologia
do senhor Alberto de Oliveira...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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