Itaoca é uma grande família com presunção
de cidade, espremida entre montanhas, lá nos confins do Judas, precisamente no ponto
onde o demo perdeu as botas. Tão isolada vive do resto do mundo que escapam à compreensão
dos forasteiros muitas palavras e locuções de uso local, puros itaoquismos. Entre
eles este, que seriamente impressionou um gramático em trânsito por ali: Maria,
dá cá o pito!
Usado em sentido pejorativo para expressar
decepção ou pouco-caso, e aplicado ao próprio gramático, mal descobriram que ele
era apenas isso e não “influência política”, como o supunham, descreve-se aqui o
fato que lhe deu origem. E pede-se perdão aos gramaticões de má morte pelo crime
de introduzir a anedota na tão sisuda quão circunspecta ciência de torturar crianças
e ensandecer adultos.
O reverendo tomou do estojo os velhos
óculos de ouro, encavalgou-os no batatão nasal e leu pausadamente a carta do compadre,
que dava notícias, pedia-as, e comunicava a próxima ida para ali do doutor Emerêncio
do Val, “nosso ministro em Viena d’Áustria, homem de muito saber e distinção de
maneiras, um desses diplomatas à antiga, como já os não há nesta república que etc.
etc.”, em viagem de recreio pelo interior, a matar saudades do país.
O reverendo coçou o toitiço com dedos
sornas e releu a carta demorando o pensamento nos trechos que pintavam o alto figurão
itinerante, em via de honrar-lhe a casa com a sua nobilíssima presença.
Verdade é que dispensava tal honraria,
boa seca à pacatez do seu viver abacial, repartido entre missinhas de cinco mil-réis
(mais um frango), cachimbadas de muito bom fumo de corda e os pitéus (senão ainda
a ternura, como propalavam as más-línguas) da ótima caseira e afilhada, a Maria
Prequeté. Culpa toda sua, aliás. Quem lhe mandara a ele possuir a melhor casa de
Itaoca e ser, modéstia à parte, um homem de luzes notórias, autor de vários acrósticos
em latim?
Já doutra feita hospedara um eloquente
inspetor agrícola e, logo depois, o tal sábio que colecionava pedrinhas — grande
falta de serviço! Um diplomata agora... Ahn! A coisa variava...
Que viesse, respondeu ao compadre,
mas não esperasse encontrar na roça desses “confortos e excelências de vida que
é de hábito nas grandes terras”.
Escrita a resposta, foi o reverendo
à cozinha conferenciar com a caseira sobre a hospedagem e longamente confabularam
sobre o pato a sacrificar-se (se o patão de peito branco ou aquele mais novo com
que a viúva do João das Bichas lhe pagara a missa, a gatuna); sobre a toalha de
mesa e a roupa de cama; sobre o tratamento a dispensar — Vossa Excelência, Vossa
Senhoria ou Vossa Diplomacia.
Após longo bate-boca, salpicado de
injúrias em calão e algum latim, assentaram no pato da missa, na toalha de renda
e no Vossa Excelência.
Combinadas essas minúcias, uma nuvem
de nostalgia ensombrou a nédia cara do reverendo. Os olhos penduraram-se-lhe no
vago, saudosos, e de lá só desciam para envolver, com ternura viciosa, o velho pito
de barro que lhe fedia na mão.
Notou a Prequeté aquelas sombras e:
— Acorda, boi sonso! Amode que está
ervado?...
O reverendo abriu-se. Era o pito.
Eram já saudades do velho pito... Pois não ia privar-se desse amigo de tantos anos
durante a estada do “empata”? Tinha educação. Não desejava impressionar mal a um
homem de raro primor de maneiras. E o pito, se é bom, é também plebeu e, mais que
plebeu, chulo.
Reconhecia-o, reconhecia-o...
Entretanto, três, quatro dias — sabia
lá a quantos iria a seca? — de abstenção forçada, sem que a boca sentisse o bendito
contato do saboroso canudo amarelo de sarro?... Doloroso...
E o reverendo sorveu com delícia uma
baforada maciça. Tragou-a. Depois, recostada a cabeça ao espaldar, semicerrados
os olhos, semiaberta a boca, deixou-se fumegar gostosamente, como piúca de queimada.
Coisas boas da vida!...
Mas que remédio? O homem fora diplomata
e em Viena d’Áustria! Confabulara com arquiduques e cardeais. Homem de requintes,
portanto. Era forçoso transigir com o pito, o rico pito, o amor do pito. Sim, porque
a dignidade do clero antes de tudo! Lá isso...
Uma semana depois nova carta anunciava
que “o tal das Europas” em tal data repontaria por ali.
Grande alvoroço de saia e batina.
A Prequeté arregaçou as mangas — braços a Machado de Assis tinha a morena! — e pôs
de pernas para o ar a casa.
Varreu, esfregou, escovou tudo, demoliu
teias de aranha, limpou o vidro do lampião, matou o pato e desfez com decoada os
muitos pingos de gema de ovo que constelavam a batina do padrinho.
— Arre, que até parece uma gemada!
— reguingou ela, entre repreensiva e caçoísta. Depois, relanceando-lhe o olhar pelo
alto da cabeça:
— Chi!... A coroa está que é uma tapera!
— exclamou.
E, expedita, zás! zás! deu nela uma
alimpa de tesoura.
— E o breviário? — inquiriu de súbito
o padre.
Andava de muito tempo sumido, o raio
do livro; procura que procura, descobrem-no afinal no quarto dos badulaques, feito
calço duma cômoda capenga. A Prequeté — maravilhosa caseira! — com uma dedada de
banha pô-lo escorreito e envernizado, a fingir com tanta perfeição uso diário que
nem Deus desconfiaria da marosca.
— Que mais? — disse ela depois, plantando-se
a distância para uma vista de conjunto no seu restaurado padrinho. E como de alto
a baixo tudo estivesse a contento: “Está mesmo pshut!”, concluiu, brejeira, borrifando-lhe
por cima um chuvilho de Água Florida, para disfarçar o ranço.
Ficou o padre um amor de reverendo,
liso e bem amanhado como cônego de oleografia. Ele próprio o reconheceu ao espelho
e, nadando nas delícias daquele carinho sem par — e muito agradável a Deus, pois
não! —, sorriu-se babosamente, acariciando-a no queixo:
— Esta marota!
Conclusa a arrumação, da coroa do
padre à cozinha, postou-se a Prequeté de vigia à janela, indagando os extremos da
rua, enquanto o reverendo, lindo como no dia da sua primeira missa, passeava pela
saleta a chupar as derradeiras cachimbadas.
Súbito:
— “Evem” vindo o reis! — exclamou
a atalaia.
O reverendo meteu o pito na gaveta,
passou a mão no breviário e assumindo cara de circunstância rumou para a porta da
rua. Instantes depois defrontava-o um cavaleiro. O padre correu a segurar-lhe a
rédea e o estribo.
— Queira apear-se vossa excelência,
que esta choupana é de vossa excelência. Sou o padre vigário de Itaoca, humilde
servo de vossa excelência.
O diplomata, como que ressabiado com
tão respeitosa acolhida, deixou-se descavalgar. Mas sem garbo, esquerdão e reles,
como aí um pulha qualquer.
Entrou.
Trocaram-se rapapés, palacianos da
parte do reverendo, mal achavascados (quem o diria?) da parte do cortesão que conversara
arquiduques e cardeais. Houve etiquetas revividas, sempre claudicantes do lado diplomático.
Houve cerimônia.
Mas o doutor não era positivamente
o que se esperava. Já no físico desiludia.
Em vez duma fina figura de mundano,
saíra-lhes um magrela de barba recrescida, roupa surrada, chambão e alvar. Enfim,
pensou lá consigo o reverendo, o hábito não faz o monge. Quem sabe, sob aquelas
aparências vulgares e talvez rebuscadas, não luzia o espírito de um Talley rand
ou as manhas dum Metternich?
Foram para a mesa e no decurso do
jantar acentuou-se a desilusão. O homem comia com a faca, baforava no copo, chupava
os dentes. Um puro pai da vida.
Observando-o por cima dos óculos,
o reverendo piscava para a caseira, que, da cozinha, pela fresta da porta, torcia
o nariz à pífia excelência excursionista. Ao trincar o pato, desastre. O doutor
deixou cair no chão um osso, que logo apanhou, muito encalistrado. Depois, às voltas
com a asa do palmípede, falseou-se-lhe a faca, resultando espirrar-lhe à cara um
chuvisco de arroz. A Prequeté por sua vez espirrou lá dentro uma risadinha de mofa,
acompanhada dum mortificante ché!...
O reverendo entrou-se de dúvidas.
Era lá possível que o doutor Emerêncio do Val fosse um estupor daqueles?
a sobremesa caiu a conversa sobre
a política, e o doutor desmanchou-se em bobagens graúdas. Enquanto asneava, o padre
ia matutando lá consigo:
“E eu com cerimônias, e eu com bobices,
e eu querendo até privar-me do pito por amor a um cretino destes! Fumo-lhe nas ventas
e já!”
Nisto veio o café. Enquanto o ingeriam,
o doutor entrou a falar de remédios, farmácias e projetos de estabelecimento.
O reverendo, decifrando o mistério,
deteve a xícara no ar.
— Mas... mas então o senhor...
— Sou farmacêutico, e vim estudar
a localidade a ver se é possível montar aqui uma botica. Portei em sua casa porque...
O padre mudou de cara.
— Então não é o doutor Emerêncio,
o diplomata?
— Não tenho diploma, não senhor, sou
farmacêutico prático...
O padre sorveu dum trago o café e
refloriu a cara de todos os sorrisos da beatitude; desabotoou a batina, atirou com
os pés para cima da mesa, expeliu um suculento arroto de bem-aventurança e berrou
para a cozinha:
— Maria, dá cá o pito!
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Será que a expressão "me dá o pito" é a origem da atual expressão "passar um pito"?
ResponderExcluirnão entendi porra nenhuma e reli esse conto umas 10 vezes e até agora nao sei o que diabos é um pito
ResponderExcluirKkkk eu acho que o Pito é o cigarro ou caximbo.
ResponderExcluirSem dúvida. Gosto muito desse conto.
ResponderExcluirEsse conto está inteiro?
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