O casarão da fazenda era ao
jeito das velhas moradias: – frente com varanda, uma ala e pátio interno. Neste
ficava o jardim, também à moda antiga, cheio de plantas antigas cujas flores
punham no ar um saudoso perfume d’antanho. Quarenta anos havia que lhe zelava
dos canteiros o bom Timóteo, um preto branco por dentro. Timóteo o plantou
quando a fazenda se abria e a casa inda cheirava a reboco fresco e tintas
d’óleo recentes, e desd’aí – lá se iam quarenta anos – ninguém mais teve
licença de pôr a mão em “seu jardim”.
Verdadeiro poeta, o bom
Timóteo.
Não desses que fazem versos,
mas desses que sentem a poesia sutil das coisas. Compusera, sem o saber, um
maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso que só ele conhecia, verso
vivo, risonho ao reflorir anual da primavera, desmedrado e sofredor quando
junho sibilava no ar os látegos do frio.
O jardim tornara-se a memória
viva da casa. Tudo nele correspondia a uma significação familiar de suave
encanto, e assim foi desde o começo, ao riscarem-se os canteiros na terra virgem
ainda recendente à escavação. O canteiro central consagrava-o Timóteo ao
“Sinhô-velho”, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria
muito antes da Lei Áurea. Nasceu faceiro e bonito, cercado de tijolos novos
vindos do forno para ali ainda quentes, e embutidos no chão como rude cíngulo
de coral; hoje, semidesfeitos pela usura do tempo e tão tenros que a unha os
penetra, esses tijolos esverdecem nos musgos da velhice.
Veludo de muro velho, é como
chama Timóteo a essa muscínea invasora, filha da sombra e da umidade. E é bem
isso, porque o musgo foge sempre aos muros secos, vidrentos, esfogueados de
sol, para estender devagarinho o seu veludo prenunciador de tapera sobre os muros
alquebrados, de emboço já carcomido e todo aberto em fendas.
Bem no centro erguia-se um
nodoso pé de jasmim-do-cabo, de galhos negros e copa dominante, ao qual o
zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobrexcedesse em altura.
Simbolizava o homem que o havia comprado por dois contos de réis, dum
importador de escravos de Angola.
– Tenha paciência, minha
negra! – conversa ele com as roseiras de setembro, teimosas em espichar para o
céu brotos audazes. Tenha paciência, que aqui ninguém olha de cima para o
Sinhô-velho.
E sua tesoura afiada punha
abaixo, sem dó, todos os rebentos temerários.
Cercando o jasmineiro havia
uma coroa de periquitos, e outra menor cravinas.
Mais nada.
– Ele era um homem simples,
pouco amigo de complicações. Que fique ali sozinho com o periquito e as
irmãzinhas do cravo.
Dos outros canteiros dois eram
em forma de coração.
– Este é o de Sinhazinha; e
como ela um dia há de casar, fica a par dele o canteiro do “Sinhô-moço”.
O canteiro de Sinhazinha era
de todos o mais alegre, dando bem a imagem de um coração de mulher rico de
todos as flores do sentimento. Sempre risonho, tinha a propriedade de prender
os olhos de quantos penetravam no jardim. Tal qual a moça, que desde menina se
habituara a monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos,
chegando esta a ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter ânimo de
afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de
Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?
Assim ela na família, assim o
seu canteiro entre os demais. Livro aberto, símbolo vivo, crônica vegetal,
dizia pela boca das flores toda a sua vidinha de moça. O pé de flor-de-noiva,
primeira “planta séria” ali brotada, marcou o dia em que foi pedida em
casamento. Até então só vicejavam neles flores alegres de criança: –
esporinhas, bocas-de-leão, “borboletas”, ou flores amáveis da adolescência –
amores-perfeitos, damas-entre-verdes, beijos-de-frade, escovinhas, miosótis.
Quando lhe nasceu, entre
dores, o primeiro filho, plantou Timóteo os primeiros tufos de violeta.
– Começa a sofrer…
E no dia em que lhe morreu
esse malogrado botãozinho de carne rósea, o jardineiro, em lágrimas, fincou na
terra os primeiros goivos e as primeiras saudades. E fez ainda outras
substituições: as alegres damas-entre-verdes cederam o lugar aos suspiros
roxos, e a sempre-viva foi para o canto onde viçavam as ridentes bocas-de-leão.
Já o canteiro de Sinhô-moço
revelava intenções simbólicas de energia. Cravos vermelhos em quantidade,
roseiras fortes, ouriçadas de espinhos; palmas de Santa Rita, de folhas
laminadas; junquilhos nervosos.
E tudo mais assim.
Timóteo compunha os anais
vivos da família, anotando nos canteiros, um por um, todos os fatos dalgumas
significações. Depois, exagerando, fez do jardim um canhenho de notas, o
verdadeiro diário da fazenda. Registrava tudo. Incidentes corriqueiros,
pequenas rusgas de cozinha, um lembrete azedo dos patrões, um namoro de mucama,
um hóspede, uma geada mais forte, um cavalo de estimações que morria – tudo
memorava ele, com hieróglifos vegetais, em seu jardim maravilhoso.
A hospedagem de certa família
do Rio – pai, mãe e três sapequíssimas filhas – lá ficou assinalada por cinco
pés de ora-pro-nóbis. E a venda do
pampa calçudo, o melhor cavalo das redondezas, teve a mudança de dono marcada
pela poda de um galho do jasmineiro.
Além desta comemoração
anedótica, o jardim consagrava uma planta a subalterno ou animal doméstico.
Havia a roseira-chá da mucama de Sinhazinha; o sangue-de-adão do Tibúrcio; a
rosa-maxixe da mulatinha Cesária, sirigaita enredeira, de cara fuxicada como
essa flor. O Vinagre, o Meteoro, a Manjerona, a Teteia, todos os cães que na
fazenda nasceram e morreram, ali estavam lembrados pelo seu pezinho de flor, um
resedá, um tufo de violetas, uma touça de perpétuas. O cão mais inteligente da
casa, Otelo, morto hidrófobo, teve as honras duma sempre-viva rajada.
– Quem há de esquecer um bico
daqueles, que até parecia gente?
Também os gatos tinham
memória. Lá estava a cinerária da gata branca morta nos dentes do Vinagre, e o
pé de alecrim relembrativo do velho gato Romão.
Ninguém, a não ser Timóteo,
colhia flores naquele jardim. Sinhazinha o tolerava desde o dia em que ele
explicou:
– Não sabem, Sinhazinha! Vão lá
e atrapalham tudo. Ninguém sabe apanhar flor…
Era verdade. Só Timóteo sabia
escolhê-las com intenção e sempre de acordo com o destino. Se as queriam para
florir a mesa em dia de anos da moça, Timóteo combinava os buquês como estrofes
vivas. Colhia-as resmungando:
– Perpétua? Não. Você não vai
pra mesa hoje. É festa alegra. Nem você, dona violetinha!… Rosa-maxixe? Ah! Ah!
Tinha graça a Cesária em festa de branco!…
E sua tesoura ia cortando os
caules com ciência de mestre. Às vezes parava, a filosofar:
– Ninguém se lembra hoje do
anjinho… Pra que, então, goivo nos vasos? Quieto fique aqui o senhor goivo, que
não é flor de vida, é flor de cemitério…
E sua linguagem de flores?
Suas ironias, nunca percebidas de ninguém? Seus louvores, de ninguém
suspeitados? Quantas vezes não depôs na mesa, sobre um prato, um aviso a um
hóspede, um lembrete à patroa, uma censura ao senhor, composto sob forma dum
ramalhete? Ignorantes da língua do jardim, riam-se eles da maluquice do
Timóteo, incapazes de lhe alcançar o fino das intenções.
Timóteo era feliz. Raras criaturas
realizam na vida mais formoso delírio de poeta. Sem família, criara uma família
de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.
Era feliz, sim. Trabalhava por
amor, conversando com a terra e as plantas – embora a copa e a cozinha
implicassem com aquilo.
– Que tanto resmunga o
Timóteo! Fica ali mamparreando horas, a cochichar, a rir, como se estivesse no
meio duma criançada!…
É que na sua imaginação as
flores se transfiguravam em seres vivos. Tinham cara, olhos, ouvidos… O
jasmim-do-cabo, pois não é que lhe dava a benção todas as manhãs? Mal Timóteo
aparecia, murmurando “A benção, Sinhô”, e já o velho, encarnado na planta,
respondia com voz alegre: “Deus te abençoe, Timóteo”.
Contar isso aos outros? Nunca!
“Está louco”, haviam de dizer. Mas bem que as plantinhas falavam…
– E como não hão de falar, se
tudo é criatura de Deus, hom’essa!…
Também dialogava com elas.
– Contentinha, hein? Boa chuva
a de ontem, não?
– …
– Sim, lá isso é verdade. As
chuvas miúdas são mais criadeiras, mas você bem sabe que não é tempo. E o
grilo? Voltou? Voltou, sim, o ladrão… E aqui roeu mais esta folhinha… Mas deixe
estar, que eu curo ele!
E punha-se a procurar o grilo.
Achava-o.
– Seu malfeitor!… Quero ver se
continua agora a judiar das minhas flores.
Matava-o, enterrava-o. “Vira
esterco, diabinho!”
Pelo tempo da seca era um
regalo ver Timóteo a chuviscar amorosamente sobre as flores com o seu velho
regador.– O sol seca a terra? Bobice!… Como se o Timóteo não estivesse aqui de
chovedor na mão.
– Chega também, ué! Então quer
sozinho um regador inteiro? Boa moda! Não vê que as esporinhas estão com a
língua de fora?
– E esta boca-de-leão, ah! ah!
está mesmo com uma boca de cachorro que correu veado! Tome lá, beba, beba!
– E você também, seu rosedá,
tome lá seu banho pra depois, namorar aquela dona hortênsia, moça bonita do
“zóio” azul…
E lá ia…
Plantas novas que abrolhavam o
primeiro botão punham alvoroço de noivo no peito do poeta, que falava do
acontecimento na copa provocando as risadinhas impertinentes da Cesária.
– Diabo do negro velho, cada
vez caducando mais! Conversa com flor como se fosse gente.
Só a moça, com seu fino
instinto de mulher, lhe compreendia as delicadezas do coração.
– Está aqui Sinhá, a primeira
rainha margarida deste ano!
Ela fingia-se extasiada e
punha a flor no corpete.
– Que beleza!
E Timóteo ria-se, feliz,
feliz…
Certa vez falou-se na reforma
do jardim.
– Precisamos mudar isto –
lembrou-se o moço, de volta dum passeio a São Paulo. – Há tantas flores
modernas, linda, enormes, e nós toda a vida com estas cinerárias, estas
esporinhas, estas flores caipiras… Vi lá crisandálias magníficas, crisântemos
deste tamanho e uma rosa nova, branca, tão grande que até parece flor
artificial.
Quando soube da conversa,
Timóteo sentiu gelo no coração. Foi agarrar-se com a moça. Ele também conhecia
essas flores de fora, vira crisântemos na casa do Coronel Barroso, e as tais
dálias mestiças no peito duma faceira, no leilão do Espírito Santo.
– Mas aquilo nem é flor,
Sinhá! Coisas da estranja que o Canhoto inventa para perder as criaturas de
Deus. Eles lá que plantem. Nós aqui devemos zelar das plantas de família.
Aquela dália rajada, está vendo? É singela, não tem o crespo das dobradas; mas
quem troca uma menina de sainha de chita cor-de-rosa por uma semostradeira da
cidade, de muita seda no corpo, mas sem fé no coração? De manhã “fica assim” de
abelhas e cuitelos em volta delas!… E eles sabem, eles não ignoram quem merece.
Se as das cidades fossem mais de estimação, por que é que esses bichinhos de
Deus ficam aqui e não vão pra lá? Não, Sinhá! É preciso tirar essa ideia da
cabeça de Sinhô-moço. Ele é criança ainda, não sabe a vida. É preciso respeitar
as coisas de dantes…
E o jardim ficou.
Mas um dia… Ah! Bem sentira-se
Timóteo tomado de aversão pela família dos ora-pro-nóbis! Pressentimento puro… O ora-pro-nóbis
pai voltou e esteve ali uma semana em conciliábulo com o moço. Ao fim deste
tempo, explodiu como bomba a grande notícia: estava negociada a fazenda,
devendo a escritura passar-se dentro de poucos dias.
Timóteo recebeu a nova como
quem recebe uma sentença de morte. Na sua idade, tal mudança lhe equivalia a um
fim de tudo. Correu a agarrar-se à moça, mas desta vez nada puderam contra as
armas do dinheiro os seus pobres argumentos de poeta.
Vendeu-se a fazenda. E certa
manhã viu Timóteo arrumarem-se no trole os antigos patrões, as mucamas, tudo o
que constituía a alma do velho patrimônio.
– Adeus, Timóteo! – disseram
alegremente os senhores-moços, acomodando-se no veículo.
– Adeus! Adeus!…
E lá partiu o trole, a galope…
Dobrou a curva da estrada… Sumiu-se para sempre…
Pela primeira vez na vida
Timóteo esqueceu de regar o jardim. Quedou-se plantando a um canto, a esmoer o
dia inteiro o mesmo pensamento doloroso:
– Branco não tem coração…
Os novos proprietários eram
gente da moda, amigos do luxo e das novidades. Entraram na casa com
franzimentos de nariz para tudo.
– Velharias, velharias…
E tudo reformaram. Em vez da
austera mobília de cabiúna, adotaram móveis pechisbeques, com veludinhos e friso.
Determinaram o empapelamento das salas, a abertura de um hal l, mil coisas
esquisitas…
Diante do jardim, abriram-se
em gargalhadas. – É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé de Sousa, em
pleno século das crisandálias!
E correram-no todo, a rir,
como perfeitos malucos.
– Olhe, Ivete, as esporinhas!
É inconcebível que inda haja esporinhas no mundo!
– E periquito, Odete!
Pe-ri-qui-to!… – disse uma das moças, torcendo-se em gargalhadas.
Timóteo ouvia aquilo com mil
mortes n’alma. Não restava dúvida, era o fim de tudo, como pressentira: aqueles
bugres da cidade arrasariam a casa, o jardim e o mais que lembrasse o tempo
antigo. Queriam só o moderno.
E o jardim foi condenado.
Mandariam vir o Ambrogi para traçar um plano novo, de acordo com a arte moderníssima
dos jardins ingleses. Reformariam as flores todas, plantando as últimas
criações da floricultura alemã. Ficou decidido assim.
– E para não perder tempo,
enquanto o Ambrogi não chega ponho aquele macaco e me arrasar isto – disse o
homem apontando para Timóteo.
– Ó tição, vem cá!
Timóteo aproximou-se com ar
apatetado.
– Olha, ficas encarregado de
limpar de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo
jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?
Timóteo, trêmulo, mal pôde
engrolar uma palavra:
– Eu?
– Sim, tu! Por que não?
O velho jardineiro, atarantado
e fora de si, repetiu a pergunta:
– Eu? Eu, arrasar o jardim?
O fazendeiro encarou-o,
espantado da sua audácia, sem nada compreender daquela resistência.
– Eu? Pois me acha com cara de
criminoso?
E, não podendo mais conter-se,
explodiu num assomo estupendo de cólera – o primeiro e o único de sua vida.
– Eu vou mas é embora daqui,
morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Mas, olhe, moço, que hei de rogar
tanta praga que isto há de virar um tapera de lacraias! A geada há de torrar o
café. A peste há de levar até as vacas de leite! Não há de ficar aqui nenhuma
galinha, nem um pé de vassoura! E a família amaldiçoada, coberta de lepra, há
de comer na gamela com os cachorros lazarentos!… Deixa estar, gente
amaldiçoada! Não se assassina assim uma coisa que dinheiro nenhum paga. Não se
mata assim um pobre negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na
cidade ninguém sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar,
caninana! Deixa estar!…
E fazendo com a mão espalmada
o gesto fatídico, saiu às arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça:
– Deixa estar! Deixa estar!
E longe, na porteira, ainda
espalmava a mão para a fazenda, num gesto mudo:
– Deixa estar!
Anoitecia. Os curiangos
andavam a espacejar silenciosamente voos de sombra pelas estradas desertas. O
céu era todo um recamo fulgurante de estrelas. Os sapos coaxavam nos brejos e
vaga-lumes silenciosos piscavam piques de luz no sombrio das capoeiras.
Tudo adormecera na terra, em
breve pausa de vida para o ressurgir do dia seguinte.
Só não ressurgirá Timóteo. Lá
agoniza ao pé da porteira. Lá morre.
E lá encontrará a manhã
enrijecido pelo relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para
a fazenda num derradeiro gesto de ameaça:
– Deixa estar!…
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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