Uma vez o príncipe D. João
saiu a caçar com alguns amigos, internando-se na floresta. O príncipe, que ia
na frente, acabou por distanciar-se dos companheiros, perdendo-se no mato. Quis
sair da floresta e não pôde. Andava de cá para lá às tontas, sem conseguir
orientação. De repente avistou um muro alto que nem uma montanha, e para lá se
dirigiu.
Soube que estava num reino
pertencente a uma família de gigantes. O dono da casa era tão alto que dava com
a cabeça nas nuvens. Era casado com uma mulher também gigantesca e tinha uma
filha também giganta, de nome Guimara.
Quando o gigante viu o
príncipe, ficou muito espantado. "Que andas a fazer por aqui,
homenzinho?"
O príncipe contou-lhe sua
história e o gigante disse: "Pois bem. Posso admiti-lo como meu
criado", e o príncipe, que não tinha outro remédio, ficou morando lá.
A filha do gigante achou-o tão
engraçadinho que por ele se apaixonou. O pai percebeu a coisa. Chamou o
príncipe e disse-lhe:
— É verdade, pequenote, que
andas dizendo que és capaz de derrubar numa noite o muro do meu castelo e de
construir um palácio?
— Não, senhor meu amo —
respondeu o príncipe. — Eu nunca falei semelhante coisa; mas se meu amo manda,
farei isso.
— Pois quero ver — disse o
rei.
D. João saiu dali muito
triste, indo ter com a sua amada Guimara, à qual contou a conversa.
— Não se incomode — respondeu
Guimara. — Eu arrumarei tudo. E assim foi. Graças às suas artes mágicas,
Guimara derrubou o muro durante a noite e ergueu um palácio maravilhoso. Quando
na manhã do dia seguinte o gigante viu aquilo, assombrou-se.
— Olá, homem pequeno, foste tu
mesmo que fizeste isso ou foi minha filha Guimara?
— Fui eu, senhor — mentiu o
príncipe.
Passaram-se uns dias. O
gigante, cada vez mais desconfiado levantou outro aleive contra o príncipe.
— Escuta cá, homenzinho, andam
dizendo por aí que te gabas de seres capaz de fazer daquele monte selvagem um
lindo jardim de flores. É certo?
— Eu nada disse, mas se meu
amo me manda fazer isso, farei.
— Pois faze, que do contrário
te cortarei essa cabecinha.
O príncipe foi ter com
Guimara, que o sossegou dizendo: "Não se aflija, meu amor, eu arrumarei
tudo."
E assim foi. À noite ela fugiu
do seu quarto e junto com o príncipe trabalhou no morro, de modo a transformar
tudo aquilo no mais belo dos jardins.
Quando pela manhã o gigante
viu a obra, ficou furioso, e resolveu lá consigo que o melhor era dar cabo do
homenzinho e de Guimara, pois o tal jardim só podia ser obra dela.
Mas Guimara leu o pensamento
do gigante e convidou o príncipe a fugir antes que anoitecesse. E fugiram, cada
qual num cavalo que avançava cem léguas de cada passada. O pai saiu em sua
perseguição, montado num cavalo que avançava cento e vinte léguas de cada
passada.
Vendo que seriam alcançados,
Guimara se transformou num riacho; virou o príncipe num negro velho; as selas,
num canteiro de cebolas; uma espingarda que levavam, em beija-flor; e os
cavalos, em árvores. O gigante, ao ver aquele negro velho tomando banho no
riacho, parou para pedir informações.
— Meu negro velho — disse ele
— não viu por acaso, de passagem por aqui, dois cavaleiros, um moço e uma
princesa?
O negro olhou para o canteiro
de cebolas e respondeu: "Plantei estas cebolas mas não sei se darão
boas." E repetia sempre essas mesmas palavras, por mais que o gigante
insistisse em saber do moço e da moça.
Aborrecido com o negro, o
gigante fez a mesma pergunta ao beija-flor — mas a resposta foi uma bicada que
quase lhe furou os olhos. Desesperado da vida, o gigante voltou para casa.
Quando sua mulher soube de
tudo, gritou logo:
— Que grande idiota és tu!
Pois não percebeste que o riacho era a Guimara, o negro o homenzinho, o
beija-flor a espingarda, o canteiro de cebolas eram as selas, e as árvores os
cavalos?
O gigante voltou para lá com a
maior rapidez, mas não encontrou mais nada daquilo. Guimara e o príncipe haviam
desencantado e avançado caminho, para de novo se transformarem, muito adiante,
ela numa igreja, ele num padre, a espingarda num missal, e mudarem as selas num
altar e os cavalos em dois sinos. O gigante varou pela igreja adentro,
perguntando:
— "Senhor padre, não viu
passarem por aqui dois cavaleiros, um moço e uma princesa?"
O padre, que fingia dizer
missa, respondeu com um versinho:
Não ouço o que me diz, não...
Sou um padre ermitão,
Devoto da Conceição,
Não ouço o que me diz não...
Dominus vobiscum
Por mais que o gigante
repetisse a pergunta, o padre respondia sempre do mesmo modo. Por fim,
desesperado, o gigante voltou para casa e contou tudo à mulher.
— Que tolo que és! Volta para
lá no galope. A igreja é Guimara, o padre é o homenzinho, o altar são as selas,
o missal é a espingarda e os sinos são os cavalos.
O gigante voltou no galope,
mas nada mais viu. Os fugitivos já estavam longe. O gigante, porém, breve os
avistou, e então Guimara soltou no ar um punhado de cinzas, que se transformou
no mais espesso nevoeiro. O gigante, não podendo enxergar mais nada, voltou
para o seu castelo danadíssimo da vida.
Os dois fugitivos, finalmente,
chegaram ao palácio do príncipe. E então Guimara lhe pediu que ao chegar não
beijasse a mão de sua tia. O príncipe prometeu, mas ao entrar no palácio a
primeira pessoa que viu foi sua tia — e sem lembrar-se da promessa beijou-lhe a
mão. Assim que fez isso, esqueceu completamente Guimara e tudo quanto se tinha
passado.
O encantamento de Guimara
havia desaparecido desde o instante em que ela pisou naquele reinado estranho.
Ficou do tamanho de todas as moças e muito triste, porque o seu adorado
príncipe já não tinha a menor ideia dela, nem do que ela fizera para lhe salvar
a vida. E acabou-se a história.
***
— Nesta história há uma
novidade — disse Emília — mas o fim está muito atrapalhado e sem pé nem cabeça.
Eu gosto de fantasia, mas de fantasia com pé e cabeça. Tudo que não tem pé nem
cabeça, me parece errado.
— Essa sua teima de exigir nas
histórias pé e cabeça, Emília, tem sua razão de ser — disse dona Benta. — As
coisas sem pé nem cabeça dão-nos a impressão de monstruosidades, de coisas
contra a natureza. Uma história pode ser a mais fantástica possível, mas há de
ter pé e cabeça. Você tem razão nessa exigência.
— Eu também acho a história
descabeçada demais — disse Narizinho. — Pois se o tal gigante era tamanho que
dava com a cabeça nas nuvens, então nem enxergar o príncipe poderia. Feita a
proporção, seria o mesmo que eu lidar com um micróbio. E para matar esse
micróbio o idiotíssimo gigante inventava aleives, etc. Para matar um micróbio
eu assento um pé em cima, e pronto.
— Outra coisa que não me
agrada — disse Pedrinho — é o tal canteiro de cebolas. Bem se vê que é história
contada por negras velhas, cozinheiras. Só faltou transformarem a moça num
saquinho de sal, a espingarda em uma cabeça de alho e os cavalos num frango
assado.
— Tudo passa — concluiu
Emília. — Só não passa o fim da história. A coitada da Guimara devia ter uma
recompensa. Fez tudo pelo príncipe e afinal saiu lograda. E por quê? Porque ele
beijou a mão da tia. Bolas! Então beijar a mão de tia traz esquecimento? Essa
burrice eu não perdoo. Dou grau cinco para a primeira metade da história, mas
dou zero para o final.
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Notas:
Notas:
Extraído da obra: Histórias de Tia Nastácia.
Transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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