10/24/2018

O fígado indiscreto (Conto), de Monteiro Lobato




O fígado indiscreto

Que há um Deus para o namoro e outro para os bêbados está provado — a contrario sensu. Sem eles como explicar tanto passo falso sem tombo, tanto tombo sem nariz partido, tanta beijoca lambiscada a medo sem maiores consequências afora uns sobressaltos desagradáveis, quando passos intempestivos põem fim a dois de sofá em sala momentaneamente deserta?

Acontece, todavia, que esses deuses, ao jeito de Homero, também cochilam: e parte o borracho o nariz de encontro ao lampião, ou a futura sogra lá pilha Romeu e Julieta em flagrante contato de epidermes, petrificando-os com o clássico: “Que pouca vergonha!...”

Outras vezes acontece aos protegidos decaírem da graça divina.

Foi o que sucedeu a Inácio, o calouro e por via disso perdeu ele de cansar com a Sinharinha Lemos, boa menina a quem cinquenta contos de dote faziam ótima.

Inácio era o rei dos acanhadões. Pelas coisas mínimas avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo idiotizado.

O progresso do seu namoro foi, como é natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, concertadas tacitamente em conspirar contra o celibato do futuro bacharel. Uma das traças conspirativas foi o convite que ele recebeu para jantar nos Lemos em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.

Inácio barbeou-se, laçou a mais formosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violeta e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma àquela hora. Levou consigo, entretanto, para mal seu, o acanhamento. E daí proveio a catástrofe...

Havia mais moças na sala, fora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade merecida por um possível futuro parente.

Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo um tanto desmontado com o papel de gala à força que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha requintada de malícia, muito “saída” e “semostradeira”, interpelou-o sobre coisas de coração, ideias relativas ao casamento e também sobre a “noivinha”, tudo com meias palavras intencionais; sublinhadas de piscadelas para a direita e para a esquerda.

Inácio avermelhou tartamudeando palavras desconchavadas, enquanto o diabrete da menina maliciosamente insistia:

— Quando os doces, seu Inácio?

Respostas mascadas, gaguejadas, ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.

Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. O pobre rapaz por dá cá aquela palha mudava-se de si para fora, sofrendo todos os horrores consequentes. A culpada aqui foi a dona da casa. Serviu-lhe D. Luísa um bife de fígado, sem consulta prévia. Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes. Esquisitice do Inácio: nascera com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em fígado. Seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse Inácio em contrariá-los: amotinavam-se, repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.

Nesse dia, mal o serviu D. Luísa, Inácio avermelhou de novo e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras e o estômago, encrespado de cólera, a exigir, com império, respeito às suas antipatias. Parlamentou com o órgão digestivo, mostrou-lhe que mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalmá-lo a goles de clarete, jurando eterna abstenção para o futuro. Pobre Inácio! A porejar suor gelado na asa do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois, três e glug! engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio, de olhos arregalados, imóvel, esperou a revolução intestina.

Em redor, a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o suplício daquele mártir posto a tormentos de uma nova espécie.

— “Você já reparou, Miloca, na “ganja” da Sinharinha? disse uma sirigaita de “beleza” na testa. Está como quem viu o passarinho verde... E olhou de soslaio para Inácio.

O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava na auscultação das vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída: tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento. Era mister atacá-lo e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e — um, dois, três: glug! — lá rodou esôfago abaixo o resto da miserável glândula.

Maravilha! O estômago, por inexplicável milagre de polidez, não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar lorpa dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo os rumores do mundo, seu cérebro entrava a funcionar normalmente e seus olhos volveram outra vez às visões habituais.

Estava nessa beatitude, quando:

— Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado, disse D. Luísa, vendo-lhe o prato vazio. Repita a dose!

O instinto de conservação de Inácio pulou em guarda. E, fora de si outra vez, o pobre moço exclamou, tomado de pânico:

— Não! Não! Muito obrigado...

— Ora deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos?! Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aí está o Lemos, que se pela por uma isca.


— Iscas são comigo, confirmou o velho. Lá isso não nego. Com elas ou sem elas, nunca as enjeitei. Tens bom gosto, rapaz! Serve-lhe, serve-lhe mais, Luísa.

E não houve salvação! Veio para o prato de Inácio um novo naco, e este formidável, dose dupla.

Não se descreve o drama criado no seu organismo. Nem Shakespeare, nem Maeterlinck — ninguém dirá nunca os lances trágicos da estomacal tragédia sem palavras. Nem eu, portanto. Direi somente que à memória de Inácio acudiu o caso da Nora de Ibsen e ele aguardou disfarçadamente o milagre.

E o milagre veio desta vez. Um criado estouvado tropeçou no tapete soltando o peru no colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Inácio, num lampejo de gênio agarra o fígado e mete-o no bolso.

Salvo! Nem D. Luísa, nem os vizinhos perceberam o truque; — e o jantar chegou à goiabada sem maior incidente.

Antes da dançata lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.

— A festa é sua, Dr. Inácio. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que o doutor recita admiravelmente! Vamos, um sonetinho de Bilac. Não sabe? Olha o luxinho! Vamos, vamos! Repare quem está no piano: é ela quem o vai acompanhar... Nem assim? Mauzinho! Quer decerto que a Sinharinha inste?... Ora, até que enfim! A “Doída de Albano”? Conheço sim, é linda, embora um pouco fora da moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano, assim...

Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para pé do piano onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a “Doida de Albano”.

Pelo meio dessa hecatombe em verso, aí pela quarta ou quinta desgraça, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando como importuna mosca. Inácio lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço vem o fígado, que faz plaff no chão. Uma tossida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras do instinto, salvam a situação.

Mas desde esse momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora deixar o piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lho pedisse. É que o acorrentava àquele posto, novo Prometeu, o implacável fígado...

Inácio recitava. Recitou o “Navio negreiro”, “As duas ilhas”, “Vozes da África”, “O Tejo era sereno”.

Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou o “Corvo” de Edgar Poe, traduzido pelo sr. João Kopke; recitou o “Quisera amar-te”, o “Acorda donzela”: borbotou poemetos, modinhas e quadras.

Sinharinha num canto da sala, estava chora não chora. Todos se entreolhavam aparvalhados: teria enlouquecido o moço?

Inácio, firme. Completamente fora de si (era a quarta vez que isso lhe acontecia naquela festa) e falto já de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas. Declamou “As armas e os barões”, “Estavas linda, Inês”, “Do reino a rédea leve”, o “Adamastor” — tudo!...

E, esgotado Camões, ia-lhe saindo um “ponto” de Filosofia do Direito — “A escola de Bentham” — a coisa última que lhe restava de cor na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, patenteando aos olhos arregalados da sala a infamíssima víscera de má sorte...

O resto não vale a pena contar. Basta que saibam que o amor da Sinharinha morreu nesse dia; que a conspiração matrimonial falhou, e que Inácio mudou de terra. Mudou de terra porque o desalmado major Lemos deu de espalhar pela cidade inteira que Inácio era, sem dúvida, um bom rapaz, mas com um grave defeito: quando gostava de um prato, não se contentava de comer dele e repetir — ainda levava escondido no bolso o que podia...


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Imagem: Jornal A Noite, 9/12/1954.

Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

Um comentário:

  1. Izaldil Tavares de Castro10 de dezembro de 2020 às 10:59

    Grande Lobato! Brigão contra os
    "desmandos", "mistficações", ou "paranoias" do Modernismo; mas, grande!

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