10/23/2018

O comprador de fazendas (Conto), de Monteiro Lobato



O comprador de fazendas

Pior fazenda que a “Espiga”, nenhuma. Já arruinara três donos, o que fazia dizer aos praguentos: Espiga é o que aquilo é!
O detentor último, um David Moreira de Souza, arrematara-a em praça, convicto de negócio da China. Mas já lá andava, também ele, escalavrado de dívidas, coçando a cabeça, num desânimo.
Os cafezais em vara, batidos de pedra ou esturrados de geada ano sim ano não, nunca deram de si colheita de entupir tulha. Os pastos ensapezados, enguanxumados, ensamambaiados nos topes, eram acampamentos de cupins com entremeios de macegas mortiças, formigantes de carrapatos. Boi entrado ali punha-se logo de costelas à mostra, encaroçado de bernes, triste e dolorido de meter dó.
As capoeiras substitutas das matas nativas revelavam, pela indiscrição das tabocas, a mais safada das terras secas. Em tal solo a mandioca bracejava a medo varetinhas nodosas; a cana caiana assumia aspecto de caninha, e esta virava uma taquariça magrela, das que passam incólumes por entre os cilindros moedores.
Piolhavam os cavalos. Os porcos escapos à peste encruavam na magrém faraônica das vacas egípcias.
Por todos os cantos imperava soberano o ferrão das saúvas, dia e noite entregues à tosa dos capins, para que em outubro se toldasse o céu de nuvens de içás, em saracoteios amorosos com enamorados savitus.
Caminhos por fazer, cercas no chão, casas de agregados engoteiradas, combalidas de cumieira, prenunciando feias taperas.
Até na moradia senhorial insinuava-se a broca, aluindo panos de reboco, carcomendo assoalhos. Vidraças sem vidro, mobília capengante, paredes lagarteadas... Intacto, que é que havia lá?
Dentro dessa esborcinada moldura, o fazendeiro, avelhuscado por força de sucessivas decepções e, a mais, roído pelo cancro dos juros, sem esperança e sem concerto, coçava cem vezes ao dia a coroa da cabeça grisalha.
Sua mulher, a pobre dona Isaura, perdido o viço do outono, agrumava no rosto quanta sarda e pé-de-galinha inventam os anos, de mãos dadas à trabalhosa vida.
Zico, o filho mais velho, saíra-se um pulha, amigo de erguer-se às dez, ensebar a gaforinha até às onze e consumir o resto do dia em namoricos mal-azarados.
Afora este malandro, tinham a Zilda, então nos dezessete, menina galante, porém sentimental mais do que manda a razão e pede o sossego dos pais. Era um ler Escrich, a rapariga, e um cismar amores de Espanha...
Em tal situação só havia uma aberta: vender a fazenda maldita para respirar a salvo de credores. Coisa difícil, entretanto, em quadra de café a cinco mil réis, pôr unhas num tolo das dimensões requeridas. Iludidos por núncios manhosos, alguns pretendentes já haviam abicado à Espiga, mas franziam o nariz, indo-se arrenegar da pernada, sem abrir oferta.
— De graça é caro! — cochichavam de si para consigo.
O redemoinho capilar do Moreira, ao cabo de coçadelas, sugeriu-lhe um engenhoso plano mistificatório: entreverar de caetés, cambarás, unhas-de-vaca e outros padrões de terra boa, transplantados das vizinhanças, a fímbria das capoeiras e uma ou outra entrada acessível aos visitantes. Fê-lo, o maluco, e mais: meteu em certa grota um pau d’alho trazido da terra roxa, e adubou os cafeeiros margeantes ao caminho, no suficiente para encobrir a mazela do resto. Onde um raio de sol denunciava com mais viveza um vício da terra, ali o alucinado velho botava a peneirinha...
Um dia recebeu carta de seu agente de negócios, anunciando novo pretendente: “Você tempere o homem — aconselhava o pirata — e saiba manobrar os padrões, que este cai. Chama-se Pedro Trancoso, é muito rico, muito moço, muito prosa, e quer fazenda de recreio. Depende tudo de você espigá-lo com arte de barganhista ladino”.
Preparou-se o Moreira para a empresa. Advertiu primeiro aos agregados para que estivessem a postos, afiadíssimos de língua. Industriados pelo patrão, estes homens respondiam com manha consumada às perguntas dos visitantes, de jeito a transmutar em maravilhas as ruindades locais. Como lhes é suspeita a informação dos proprietários, costumam os pretendentes interrogar à socapa os encontradiços. Ali, se isso acontecia — e acontecia sempre, porque era o Moreira em pessoa o maquinista do acaso — havia diálogos desta ordem:
— Tem geada por aqui?
— Coisinha, e isso mesmo só em ano brabo.
— O feijão dá bem?
— Nossa Senhora! Inda este ano plantei cinco quartas e malhei cinquenta alqueires. E que feijão!
— Berneia o gado?
— Qual o quê! Lá um ou outro carocinho, de vez em quando. Para criar, não existe terra melhor. Nem erva nem feijão bravo. O patrão é porque não tem força. Tivesse ele os meios, e isto virava um fazendão.
Avisados os espoletas, debateram-se à noite os preparativos da hospedagem, alegres todos com o reviçar das esperanças emurchecidas.
— Estou com palpite que desta feita a coisa vai! — disse o filho maroto. E declarou necessitar, à sua parte, de três contos de réis para estabelecer-se.
— Estabelecer-se em quê? — perguntou admirado o pai.
— Com armazém de secos e molhados na Volta Redonda.
— Na Volta Redonda?.. Já me estava espantando de uma ideia boa nessa cabeça de vento. Para vender fiado à gente da Tudinha, não é?
O rapaz, se não corou, calou-se. Tinha razões para isso. Já a mulher queria casa na cidade. De há muito trazia d’olho uma de porta e janela, em certa rua humilde, casa baratinha, de arranjados. Zilda queria um piano, mais caixões e caixões de Escrich.
Dormiram felizes essa noite, e no dia seguinte mandaram cedo à vila em busca de gulodices de hospedagem — manteiga, um queijo, biscoitos. Na manteiga houve debate:
— Não vale a pena — reguingou a mulher. — Sempre são seis mil réis. Antes se comprasse com esse dinheiro a peça de algodãozinho que tanta falta me faz.
— É preciso, filha! Às vezes uma coisa de nada engambela um homem e facilita um negócio. Manteiga é graxa, e a graxa engraxa!
Venceu a manteiga.
Enquanto não vinham os ingredientes, meteu dona Isaura unhas à casa, varrendo, espanando e arrumando o quarto dos hóspedes; matou o menos magro dos frangos e uma leitoa manquitola; temperou a massa do pastel de palmito; estava a folheá-la quando:
— Lá vem ele! — gritou Moreira da janela, onde se postara desde cedo, muito nervoso, a devassar a estrada por um velho binóculo; e sem deixar o posto de observação, foi transmitindo à ocupadíssima esposa os pormenores divisados. — É moço... Bem trajado... Chapéu panamá... Parece o Chico Canhambora...
Chegou afinal o homem. Apeou-se. Deu cartão: Pedro Trancoso de Carvalhais Fagundes. Bem apessoado. Ares de muito dinheiro. Mocetão e bem falante, mais que quantos até ali aparecidos. Contou logo mil coisas, com o desembaraço de quem no mundo está de pijama em sua casa — a viagem, os incidentes, um mico que vira pendurado num galho de imbaúba.
Entrados que foram para a saleta de espera, Zico, incontinenti, grudou-se de ouvido ao buraco da fechadura, a cochichar para as mulheres ocupadas na arrumação da mesa o que ia pilhando à conversa. Súbito, esganiçou para a irmã, numa careta sugestiva:
— É solteiro, Zilda!
A menina largou disfarçadamente os talheres e sumiu-se. Meia hora depois voltava, trazendo o melhor vestido, e no rosto duas redondinhas rosas de carmim. Quem entrasse a essa hora no oratório da fazenda notaria, nas vermelhas rosas de papel de seda que enfeitavam o Santo Antônio, a ausência de várias pétalas, e aos pés da imagem uma velinha acesa, pois na roça o “rouge” e o casamento saem do mesmo oratório.
Trancoso dissertava sobre variados temas agrícolas:
— O canastrão? Pff! Raça tardia, meu caro senhor, muito agreste. Eu sou pelo Poland Chine. Também não é mau o Large Black. Mas o Poland! Que preciosidade! Que raça!
Moreira, xucro na matéria, só conhecedor das pelhanças famintas, sem nome nem raça, que lhe grunhiam nos pastos, abria insensivelmente a boca pasmada.

— Como em matéria de pecuária bovina — continuava Trancoso
— tenho para mim que, de Barreto a Prado, andam todos erradíssimos. Pois não! E-rra-dí-ssi-mos! Nem seleção, nem cruzamento. Quero a adoção i-me-di-a-ta das mais finas raças, o Polled Angus, o Red Lincoln. Não temos pasto? Façamo-lo. Plantemos alfafa. Fenemos. Ensilemos. O Assis Brasil confessou-me uma vez...
O Assis Brasil! Aquele homem confessava os mais altos paredros da agricultura! Era íntimo de todos eles — o Antônio Prado, o Luís Pereira Barreto, o Eduardo Cotrim, homens de muita autoridade em assuntos de pecuária. E de ministros!
— Eu já aleguei isso ao José Bezerra...
Nunca se honrara a fazenda com a presença de cavalheiro mais distinto, assim bem relacionado e tão viajado. Falava da Argentina e de Chicago como quem veio ontem de lá. Maravilhoso!
A boca do Moreira abria, abria, e acusava o grau máximo da abertura permitida a ângulos maxilares, quando uma voz feminina anunciou o almoço.
Apresentações.
Mereceu Zilda louvores nunca sonhados, que a puseram de coração aos pinotes. Também os tiveram a galinha ensopada, o tutu com torresmos, o pastel e até a água do pote.
— Na cidade, senhor Moreira, uma água assim, pura, cristalina, absolutamente potável, vale o melhor dos vinhos. Felizes os que podem bebê-la!
A família entreolhou-se; nunca imaginaram possuir em casa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmente sorveu o seu golezinho, como se naquele instante travassem conhecimento com o precioso néctar. Zico chegou a estalar a língua...
Quem não cabia em si de gozo era dona Isaura. Os elogios à culinária puseram-na rendida. Por metade daquilo já se daria por bem paga da trabalheira.
— Aprenda, Zico — cochichava ao filho — o que é educação fina!
Após o café brindado com um “delicioso!”, convidou Moreira o hóspede para um giro a cavalo.
— Impossível, meu caro, não monto em seguida às refeições; dá-me cefalalgia — Zilda corou. Zilda corava sempre que não entendia uma palavra. — À tarde sairemos, não tenho pressa. Prefiro agora um passeiozinho pedestre pelo pomar, a bem do quilo.
Enquanto os dois homens se dirigiram para lá em pausados passos, Zilda e Zico correram ao dicionário.
— Não é com S — disse o rapaz.
— Veja com C — alvitrou a menina.
Com algum trabalho encontraram a palavra.
— “Dor de cabeça!” Ora! Uma coisa tão simples...

À tarde, no giro a cavalo, Trancoso admirou e louvou tudo quanto ia vendo, com grande espanto do fazendeiro que, pela primeira vez, ouvia gabos às coisas suas. Os pretendentes em geral malsinam de tudo, com olhos abertos só para defeitos; diante de uma barroca, abrem-se em exclamações quanto ao perigo das terras frouxas; acham más e poucas as águas; se enxergam um boi, não despegam a vista dos bernes.
Trancoso, não: gabava! E quando Moreira, nos trechos mistificados, com dedo trêmulo assinalou os padrões, o moço abriu a boca:
— Caquera? Mas isto é fantástico!
Em face do pau d’alho, culminou-lhe o assombro.
— É maravilhoso o que vejo! Nunca supus encontrar nesta zona vestígios de semelhante árvore! — disse, metendo na carteira uma folha como lembrança.
Em casa, abriu-se com a velha:
— Pois, minha senhora, a qualidade destas terras excedeu de muito à minha expectativa. Até pau d’alho! Isto é positivamente famoso!...
Dona Isaura baixou os olhos.
A cena passava-se na varanda. Era noite. Noite trilada de grilos, coaxada de sapos, com muitas estrelas no céu e muita paz na terra. Refestelado numa cadeira preguiçosa, o hóspede transfez o sopor da digestão em quebreira poética.
— Este cricri de grilos, como é encantador! Eu adoro as noites estreladas, o bucólico viver campesino, tão sadio e feliz...
— Mas é muito triste!... — aventurou Zilda.
— Acha? Gosta mais do canto estridente da cigarra, modulando cavatinas em plena luz? — disse ele, amelaçando a voz. — É que no seu coraçãozinho há qualquer nuvem a sombreá-lo...
Vendo Moreira assim atiçado o sentimentalismo, e desta feita passível de consequências matrimoniais, houve por bem dar uma pancada na testa e berrar:
— Oh, diabo! Não é que eu ia me esquecendo do... — Não disse do quê, nem era preciso. Saiu precipitadamente, deixando-os sós.
Continuou o diálogo, mais mel e rosas.
— O senhor é um poeta! — exclamou Zilda a um regorjeio dos mais sucados.
— Quem o não é, debaixo das estrelas do céu, ao lado de uma estrela da terra?
— Pobre de mim! — suspirou a menina, palpitante.
Também do peito de Trancoso subiu um suspiro. Seus olhos alçaram-se a uma nuvem que fazia no céu as vezes da Via Láctea, e sua boca murmurou em solilóquio um rabo d’arraia, desses que derrubam meninas:
— O amor!... A Via Láctea da vida!... O aroma das rosas, a gaze da aurora! Amar, ouvir estrelas... Amai, pois só quem ama entende o que elas dizem.
Era zurrapa de contrabando; não obstante, ao paladar inexperto da menina, soube a fino moscatel. Zilda sentiu subir à cabeça um vapor. Quis retribuir. Deu busca aos ramalhetes retóricos da memória, em procura da flor mais bela. Só achou um bogari humílimo:
— Lindo pensamento para um cartão postal!
Ficaram no bogari. O café com bolinhos de frigideira veio interromper o idílio nascente.

Que noite aquela! Dir-se-ia que o anjo da bonança distendera suas asas de ouro por sobre a casa triste. Via Zilda realizar-se todo o Escrich deglutido. Dona Isaura gozava da possibilidade de casá-la rica. Moreira sonhava quitações de dívidas, com sobras fartas a tilintar-lhe no bolso. Imaginariamente transfeito em comerciante, Zico ficou a noite inteira em sonhos com a gente da Tudinha, que, cativa de tanta gentileza, lhe concedia afinal a ambicionada mão da pequena.
Só Trancoso dormiu o sono das pedras, sem sonhos nem pesadelos. Que bom é ser rico!
No dia imediato visitou o resto da fazenda, cafezais e pastos, examinou criação e benfeitorias. E como o gentil mancebo continuasse no enlevo, Moreira, deliberado na véspera a pedir quarenta contos pela Espiga, julgou de bom aviso elevar o preço. Após a cena do pau d’alho, suspendeu-o mentalmente para quarenta e cinco; findo o exame do gado, já estava em sessenta. E quando foi abordada a magna questão, o velho declarou corajosamente, na voz firme de um alea jacta est:
— Sessenta e cinco — e esperou de pé atrás a ventania.
Trancoso, porém, achou razoável o preço.
— Pois não é caro — disse. Está um preço bem mais razoável do que imaginei.
O velho mordeu os lábios e tentou emendar a mão:
— Sessenta e cinco, mas... o gado fora!
— É justo — respondeu Trancoso.
— E... e fora também os porcos!...
— Perfeitamente.
— ...e a mobília!
— É natural.
O fazendeiro engasgou. Não tinha mais o que excluir, e confessou-se de si para consigo que era uma cavalgadura. Por que não pedira logo oitenta?
Informada do caso, a mulher chamou-o de “pax-vobis”.
— Mas, criatura, por quarenta já era um negocião! — justificou-se o velho.
— Por oitenta seria o dobro. Melhor. Não se defenda. Eu nunca vi Moreira que não fosse palerma e sarambé. É do sangue. Você não tem culpa.
Amuaram um bocado. Mas a ânsia de arquitetar castelos com a imprevista dinheirama varreu para longe a nuvem. Zico aproveitou a aura para insistir nos três contos do estabelecimento, e obteve-os. Dona Isaura desistiu da tal casinha. Lembrava agora outra maior, em rua de procissão — a casa do Eusébio Leite.
— Mas essa é de doze contos — advertiu o marido.
— Mas é outra coisa que não aquele casebre! Muito mais bem repartida. Só não gosto da alcova pegada à copa. Escura...
— Abre-se uma claraboia.
— Também o quintal precisa de reforma em vez do cercado das galinhas...
Até noite alta, enquanto não vinha o sono, foram remendando a casa, pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda da cidade. Estava o casal nos últimos retoques, dorme-não-dorme, quando Zico bateu à porta.
— Três contos não bastam, papai. São precisos cinco. Há a armação, de que não me lembrei, e os direitos, e o aluguel da casa, e mais coisinhas...
Entre dois bocejos o pai concedeu-lhe generosamente seis.
E Zilda? Essa vogava em alto mar de um romance de fadas. Deixemo-la vogar.
Chegou enfim o momento da partida. Trancoso despediu-se. Sentia muito não poder prolongar a deliciosa visita, mas interesses de monta o chamavam. A vida do capitalista não é tão livre como parece... Quanto ao negócio, considerava-o quase feito; daria a palavra definitiva dentro de semana.
Partiu Trancoso, levando um pacote de ovos. Gostara muito da raça de galinhas criadas ali. Também um saco de carás, petisco de que era mui guloso. Levou ainda uma bonita lembrança, o Rosilho do Moreira, o melhor cavalo da fazenda. Tanto gabara o animal durante os passeios, que o fazendeiro se viu na obrigação de recusar uma barganha proposta, e dar-lho de presente.
— Vejam vocês! — disse Moreira, resumindo a opinião geral. — Moço, riquíssimo, direitão, instruído como um doutor, e no entanto amável, gentil, incapaz de torcer o focinho, como os pulhas que cá têm vindo. O que é ser gente!
À velha agradara sobretudo a sem-cerimônia do jovem capitalista. Levar ovos e carás! Que mimo! Todos concordaram, louvando-o cada um a seu modo. E assim, mesmo ausente, o gentil ricaço encheu a casa durante a semana inteira.
Mas a semana transcorreu sem que viesse a ambicionada resposta. E mais outra. E mais outra ainda.
Escreveu-lhe Moreira, já apreensivo, e nada. Lembrou-se de um parente morador na mesma cidade, e endereçou-lhe carta pedindo que obtivesse do capitalista a solução definitiva. Quanto ao preço, abatia alguma coisa. Dava a fazenda por cinquenta, e até por quarenta, com criação e mobília.
O amigo respondeu sem demora. Ao rasgar o envelope, os quatro corações da Espiga pulsaram violentamente: aquele papel encerrava o destino dos quatro.
Dizia a carta: “Moreira, ou muito me engano ou estás iludido. Não há por aqui nenhum Trancoso Carvalhais, capitalista. Há o Trancosinho, filho da Nha Veva, vulgo Sacatrapo. É um espertalhão que vive de barganhas e sabe iludir aos que o não conhecem. Ultimamente tem corrido o Estado de Minas, de fazenda em fazenda, sob vários pretextos. Finge-se às vezes de comprador, passa uma semana em casa do fazendeiro, a caceteá-lo com passeios pelas roças e exames de divisas; come e bebe do bom, namora as criadas, ou a filha, ou o que encontra — é um vassoura de marca! — e no melhor da festa some-se. Tem feito isto um cento de vezes, mudando sempre de zona. Gosta de variar de tempero, o patife. Como aqui Trancoso só há este, deixo de apresentar ao pulha a tua proposta. Ora, o Sacatrapo a comprar fazenda! Tinha graça”.
O velho caiu numa cadeira, aparvalhado, com a missiva sobre os joelhos. Depois o sangue lhe avermelhou as faces e seus olhos chisparam.
— Cachorro!
As quatro esperanças da casa ruíram com fragor, entre lágrimas da menina, raiva da velha e cólera dos homens. Zico propôs-se a partir incontinenti na pegada do biltre, a fim de quebrar-lhe a cara.
— Deixa, menino! O mundo dá voltas. Um dia cruzo-me com o ladrão e ajusto contas.
Pobres castelos! Nada há mais triste que estes repentinos desmoronamentos de ilusões. Os formosos palácios d’Espanha, erigidos durante um mês à custa da mirífica dinheirama, fizeram-se taperas sombrias. Dona Isaura chorou até os bolinhos, a manteiga e os frangos.
Quanto a Zilda, o desastre operou como um pé-de-vento através da paineira florida. Caiu de cama, febricitante. Encovaram-se-lhe as faces. Todas as passagens trágicas dos romances lidos desfilaram-lhe na memória; reviu-se na vítima de todos eles. E dias a fio pensou no suicídio. Por fim, habituou-se a essa ideia e continuou a viver. Teve azo de verificar que isso de morrer de amores, só em Escrich.
Acaba-se aqui a história. Para a plateia, apenas. Para as torrinhas, segue ainda por meio palmo. As plateias costumam impor umas tantas finuras de bom gosto e tom, muito de rir; entram no teatro depois de começada a peça, e saem mal a ameaça o epílogo.
Já as galerias querem a coisa pelo comprido, a jeito de aproveitar o rico dinheirinho até ao derradeiro vintém. Nos romances e contos, pedem esmiuçamento completo do enredo; e se o autor, levado por fórmulas de escola, lhes arruma para cima, no melhor da festa, com a caudinha reticenciada a que chama “nota impressionista”, franzem o nariz. Querem saber — e fazem muito bem — se Fulano morreu, se a menina casou e foi feliz, se o homem afinal vendeu a fazenda, a quem e por quanto.
Sã, humana e respeitabilíssima curiosidade!
Vendeu a fazenda o pobre Moreira? Pesa-me confessá-lo: não! E não a vendeu por artes do mais inconcebível quiproquó de quantos tem armado neste mundo o diabo. Sim, porque afora o diabo, quem é capaz de intrincar os fios da meada, com laços e nós cegos, justamente quando vai a feliz remate o crochê?
O acaso deu a Trancoso uma sorte de cinquenta contos na loteria. Não se riam. Por que motivo não havia Trancoso de ser o escolhido, se a sorte é cega e ele tinha no bolso um bilhete? Ganhou os cinquenta contos, dinheiro que para um pé-atrás daquela marca era significativo de grande riqueza.
De posse da maquia, após semanas de tonteira, deliberou afazendar-se. Queria tapar a boca ao mundo realizando uma coisa jamais passada pela sua cabeça: comprar fazenda. Correu em revista quantas visitara durante os anos de malandragem, propendendo, afinal, para a Espiga. Ia nisso, sobretudo, a lembrança da menina, dos bolinhos da velha e a ideia de meter na administração o sogro, de jeito a folgar-se uma vida vadia de regalos, embalada pelo amor da Zilda e os requintes culinários da sogra. Escreveu, pois, ao Moreira anunciando-lhe a volta, a fim de fechar-se o negócio.
Ai, ai, ai! Quando tal carta penetrou na Espiga, houve rugidos de cólera, entremeio a bufos de vingança.
— É agora! — berrou o velho. — O ladrão gostou da pândega, e quer repetir a dose. Mas desta feita curo-lhe a balda, ora se curo! — concluiu, esfregando as mãos no antegosto da vingança.
No murcho coração da pálida Zilda, entretanto, bateu um raio de esperança. A noite de sua alma alvorejou ao luar de um “quem sabe?”. Não se atreveu, todavia, a arrostar a cólera do pai e do irmão, concertados ambos num tremendo ajuste de contas. Confiou no milagre. Acendeu outra velinha a Santo Antônio...
O grande dia chegou. Trancoso rompeu à tarde pela fazenda, caracolando o Rosilho. Desceu Moreira a esperá-lo embaixo da escada, de mãos às costas.
Antes de sofrear as rédeas, já o amável patife abria-se em exclamações:
— Ora viva, caro Moreira! Chegou enfim o grande dia. Desta vez, compro-lhe a fazenda.
Moreira tremia. Esperou que o biltre apeasse, e mal Trancoso, lançando as rédeas, dirigiu-se-lhe de braços abertos, todo risos, o velho saca de sob o paletó um rabo de tatu e rompe-lhe para cima ímpeto de queixada.
— Queres fazenda, grandessíssimo tranca? Toma, toma fazenda, ladrão! — E lépt, lépt, finca-lhe rijas rabadas coléricas.
O pobre rapaz, tonteado pelo imprevisto da agressão, corre ao cavalo e monta às cegas, de passo que Zico lhe sacode no lombo nova série de lambadas de agravadíssimo ex-quase-cunhado.
Dona Isaura atiça-lhe cães:
— Pega, Brinquinho! Ferra, Joli!
O mal-azarado comprador de fazendas, acuado como raposa em terreiro, dá de esporas e foge a toda, sob uma chuva de insultos e pedras. Ao cruzar a porteira, inda teve ouvidos para distinguir na grita os desaforos esganiçados da velha:
— Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! Toma! Em outra não hás de cair, ladrão de ovo e cará!
E Zilda?
Atrás da vidraça, com os olhos pisados do muito chorar, a triste menina viu desaparecer para sempre, envolto em nuvens de pó, o cavaleiro gentil dos seus dourados sonhos.
Moreira, o caipora, perdia assim naquele dia o único negócio bom que durante a vida inteira lhe deparara a fortuna: o duplo descarte — da filha e da Espiga...

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
Imagem: Por Jeronymo, Revista Vamos Ler, 10/11/1938.

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