10/23/2018

O bicho Manjaléu (Conto infantil), de Monteiro Lobato




O bicho Manjaléu

Era uma vez um velho que tinha três filhas muito bonitas, mas um velho muito pobre, que vivia de fazer gamelas. Uma vez passou pela sua casa um lindo moço a cavalo; parou e declarou que queria comprar uma das moças. O velho se ofendeu; disse que por ser pobre não era nenhum malvado que andasse vendendo as filhas; mas diante das ameaças do moço teve que aceitar o negócio.

Lá se foi a sua primeira filha na garupa do cavaleiro, e o velho ficou olhando para o ouro recebido.

No dia seguinte apareceu outro moço, ainda mais lindo, montado num cavalo ainda mais bonito e propôs-se a comprar a filha do meio. O velho, bastante aborrecido, contou o que se tinha passado com a primeira, e não quis aceitar o negócio. O moço ameaçou matá-lo, e também lá se foi com a segunda moça na garupa, deixando com o velho dois sacos de dinheiro.

No dia imediato apareceu terceiro moço e depois da mesma discussão lá se foi com a derradeira moça na garupa, deixando em troca três sacos de dinheiro.

O velho ficou muito rico, mas sem as filhas, e começou a criar com grandes mimos um filhinho que havia nascido fora de tempo. Quando já estava na escola esse menino teve uma briga com um companheiro, o qual lhe disse: "Você está prosa por ter pai rico, mas saiba que ele já foi um pobre diabo que vivia de fazer gamelas. Está rico porque vendeu as filhas."

O menino voltou pensativo para casa, mas nada disse. Só quando ficou moço é que pediu ao pai que lhe contasse a história das três irmãs vendidas. O pai contou tudo e ele resolveu sair pelo mundo em procura das irmãs.

No meio do caminho encontrou três marmanjos brigando por causa duma bota, duma carapuça e duma chave. Indagando do valor daquilo, soube que eram uma bota, uma carapuça e uma chave mágicas. Quando alguém dizia à bota: "Bota, bote-me em tal parte!" a bota botava. E se diziam à carapuça: "Carapuça, encarapuce-me!" a carapuça encarapuçava, isto é, escondia a pessoa. E se diziam à chave: "Chave, abre!" a chave abria qualquer porta.

O moço ofereceu pelos três objetos o dinheiro que trazia e lá se foi com eles.

Logo adiante parou e disse: "Bota, bote-me em casa de minha primeira irmã." Mal acabou de pronunciar tais palavras, já se achou na porta de um palácio maravilhoso. Falou com o porteiro. Pediu para entrar, dizendo que a dona do palácio era sua irmã. A irmã soube da sua chegada, acreditou em suas palavras e o recebeu muito bem.

— Mas como conseguiu chegar até aqui, meu irmão?

— Por meio da bota mágica — respondeu ele.

E contou toda a história da sua partida e do encontro dos três objetos mágicos.

Tudo correu bem, mas assim que começou a entardecer a irmã pôs-se a chorar.

— Por que chora, minha irmã?

— Ah — respondeu ela — choro porque sou casada com o rei dos Peixes, um príncipe muito bravo que não quer que eu receba ninguém neste palácio. Ele não tarda a chegar, e mata você, se enxergar você aqui...

O moço deu uma risadinha, dizendo:

— Não tenha medo de nada. Com a carapuça mágica saberei esconder-me.

O rei chegou e logo levantou o nariz para o ar, farejando: — "Sinto cheiro de gente de fora!" mas a rainha mostrou que não havia por ali ninguém e ele sossegou. Tomou um banho e se desencantou num lindo moço.

Durante o jantar a rainha fez esta pergunta:

— Se aparecesse por cá um irmão meu, que faria Vossa Majestade?

— Recebia-o muito bem — disse o rei — porque o irmão da rainha, cunhado do rei é. E se ele está por aqui, que apareça.

O irmão encarapuçado apresentou-se, sendo muito bem recebido. Contou toda a sua história, mas não aceitou o convite de ficar morando ali por ter de continuar pelo mundo em procura das outras irmãs. O rei olhou com inveja para as botas mágicas, dizendo: "Se eu as pilhasse, iria ver a rainha de Castela."

Na hora da partida o rei deu-lhe uma escama. "Quando estiver em apuros, pegue nesta escama e diga: Valha-me, rei dos Peixes!"

O moço agradeceu o presente e lá se foi depois de dizer à bota: "Bota, bote-me na casa de minha segunda irmã", e imediatamente se achou defronte de outro palácio, onde foi recebido pela segunda irmã, que era a esposa do rei dos Carneiros. "Meu marido logo chega por aí, a dar marradas a torto e a direito, e você não escapa."

— Com a minha carapuça escapo — respondeu o rapaz, rindo-se. E contou a virtude da carapuça encantada. E de fato foi assim, correndo tudo direitinho como lá no palácio do rei dos Peixes. Na hora da partida o rei dos Carneiros disse: "Tome este fio de lã. Quando estiver em apuros, basta que pegue nele e diga: Valha-me, rei dos Carneiros." Em seguida olhou com inveja para as botas mágicas. "Se as pilhasse, iria ver a rainha de Castela."

Logo que o moço se viu na estrada, parou e disse à bota. "Bota, bote-me em casa da minha terceira irmã", e a bota botou-o no portão dum terceiro palácio ainda mais belo que os outros. Era ali o reino do rei dos Pombos, onde tudo aconteceu como no reino do rei dos Peixes e no reino do rei dos Carneiros. Foi muito bem recebido e festejado, até que na hora da partida o rei dos Pombos suspirou olhando para as botas, e disse: "Se eu pilhasse essas botas, iria ver a rainha de Castela." Em seguida deu ao moço uma pena, dizendo:

"Quando estiver em apuros, pegue nesta pena e diga: Valha-me, rei dos Pombos."

Logo que o moço se viu na estrada, pôs-se a pensar na tal rainha de Castela que os três príncipes queriam visitar, e disse à bota mágica: "Bota, bote-me no reino da rainha de Castela!" E num instante a bota o botou lá.

Soube que era uma princesa solteira, tão linda que ninguém passava pela frente do seu palácio sem erguer os olhos, na esperança de vê-la à janela — mas a princesa tinha jurado só se casar com quem passasse pelo palácio sem erguer os olhos.

O moço então passou pela frente do palácio sem erguer os olhos e a princesa imediatamente casou com ele. Depois do casamento a princesa quis saber para que serviam aqueles objetos que ele sempre trazia consigo — e o que mais a interessou foi a chave de abrir todas as portas.

A razão disso era haver no palácio uma sala sempre fechada, onde o rei não permitia que ninguém entrasse. Nela morava o Manjaléu — um bicho feroz, que por mais que o matassem revivia sempre. A princesa andava ardendo de curiosidade de ver o bicho Manjaléu, e certa vez, em que o rei e o marido foram à caça, pegou a chave e abriu a porta da sala do mistério. Mas o bicho feroz pulou e agarrou-a, dizendo: "Era você mesma que eu queria!" E lá se foi para a floresta com a pobre moça ao ombro.

Quando o rei e o marido da princesa voltaram da caça e souberam do acontecido, ficaram desesperados. Mas o dono das botas mágicas prometeu consertar tudo. Agarrou-as e disse: "Bota, bote-me onde está minha esposa". E a bota botou-o.

O moço encontrou a princesa sozinha, pois que o Manjaléu andava pelo mato caçando.

— Minha querida esposa — disse ele — precisamos dar cabo desse monstro feroz, mas para isso é necessário que eu saiba onde é que ele tem a vida. A vida do Manjaléu está tão bem oculta que todas as tentativas para matá-lo têm falhado. Trate de saber onde ele tem a vida.

A princesa prometeu que assim faria, e quando o Manjaléu voltou deu jeito da conversa recair naquele ponto.

Manjaléu desconfiou.

— Ahn! Quer saber onde eu tenho a vida para me matar, não é? Não conto, não.

Mas a princesa, teimosa, tanto insistiu durante dias e dias que o bicho Manjaléu resolveu contar tudo. Antes disso ele amolou, bem amolado, um alfanje, dizendo: "Vou contar onde está minha vida mas se perceber que alguém quer dar cabo de mim, corto sua cabeça com este alfanje, está ouvindo?"

A princesa aceitou a proposta. Ele que contasse tudo que ela ficaria com o pescoço às ordens do alfanje, no caso de alguém atentar contra vida do monstro. E o bicho Manjaléu então contou: "Minha vida está no mar. Lá no fundo há um caixão; nesse caixão há uma pedra; dentro da pedra há uma pomba; dentro da pomba há um ovo; dentro do ovo há uma velinha, que é a minha vida. Quando essa vela apagar-se, eu morrerei".

No dia seguinte, quando o bicho Manjaléu saiu novamente a caçar, o marido da princesa, que estivera escondido pela carapuça, apresentou-se. "E então?" — perguntou. A princesa contou-lhe direitinho tudo que ouvira ao monstro.

O moço dirigiu-se à praia do mar e pegou na escama, dizendo: "Valha-me, rei dos Peixes!" E imediatamente o mar se coalhou de peixes que indagavam do que ele queria.

— Quero saber em que ponto do fundo do mar há um caixão assim e assim.

— Eu sei — respondeu um enorme baiacu. — Ainda há pouquinho esbarrei nele. Esse caixão está em tal e tal parte.

— Pois quero que me tragam aqui esse caixão.

Os peixes saíram na volada; logo depois apareceram empurrando um caixão para a praia. O príncipe abriu-o e encontrou a pedra. Como quebrá-la? Lembrou--se do fio de lã. Pegou no fio de lã e disse: "Valha-me, rei dos Carneiros!" Imediatamente apareceram inúmeros carneiros, que deram tantas marradas na pedra que a partiram.

Enquanto isso, lá longe, o Manjaléu, com a cabeça no colo da princesa e o alfanje na mão, ia sentindo coisas esquisitas.

— Minha princesa — disse ele — estou me sentindo doente. Alguém está mexendo na minha vida.

E sua mão apertou o cabo do alfanje

A princesa engambelou-o como pôde, para ganhar tempo. Ela sabia que seu marido estava em procura da vida do monstro.

Assim que os carneiros quebraram a pedra, uma pombinha voou de dentro e lá se foi pelos ares. O moço lembrou-se da pena, pegou-a e disse: "Valha-me, rei dos Pombos!" Imediatamente o ar se encheu de pombos, que o moço mandou voarem em perseguição da pombinha. Os pombos foram atrás dela e a pegaram. O moço tomou-a, espremeu-a e fez sair um ovo.

Lá longe o Manjaléu se sentia cada vez pior. Começava a desfalecer; e como não tivesse dúvidas sobre o que era aquilo, foi levantando o alfanje para degolar a princesa. Mas não teve tempo. O moço havia quebrado o ovo e assoprado a velinha. A mão do Manjaléu moleou — e seus olhos fecharam-se para sempre.

Estava o reino de Castela livre daquele horrendo monstro. O moço levou a princesa para o palácio, onde o rei a recebeu com lágrimas nos olhos. E para comemorar o grande acontecimento decretou uma semana inteira de festas. E acabou-se a história.

***

Emília torceu o nariz.

— Essas histórias folclóricas são bastante bobas — disse ela. — Por isso é que não sou "democrática !” Acho o povo muito idiota...

— Nossa Senhora! — exclamou dona Benta. — Vejam só como anda importante a nossa Emilinha. Fala que nem um doutor.

— A culpa é sua — disse Emília. — A culpa é de quem nos anda ensinando tantas ciências e artes. Eu, por exemplo, me sinto adiantada demais para a minha idade. Sou uma isca por fora, mas lá dentro já estou filósofa. Meu gosto era encontrar um Sócrates, para uma conversa...

— Eu também acho muito ingênua essa história de rei e princesa e botas encantadas — disse Narizinho. — Depois que li o Peter Pan, fiquei exigente. Estou de acordo com Emília.

— Pois eu gostei da história — disse Pedrinho — porque me dá ideia da mentalidade do nosso povo. A gente deve conhecer essas histórias como um estudo da mentalidade do povo.

Dona Benta voltou-se para tia Nastácia.

— Vê, Nastácia, como está ficando este meu povinho? Falam como se fossem gente grande, das sabidas. Democracia para cá, folclórico para lá, mentalidade... Neste andar meu sítio acaba virando Universidade do Picapau Amarelo.

— Emília já disse que a culpa é sua, sinhá. A senhora vive ensinando tantas coisas dos livros que eles acabam sabidões demais. Eu até fico tonta de lidar com essa criançada. Às vezes nem entendo o que me dizem. Ontem o Visconde veio para cima de mim com uma história de "rocha sedimentaria", ou coisa assim, que até eu tive de tocar ele lá da cozinha com o cabo da vassoura. Já não percebo nem uma isca do que o Visconde diz...

Mas as histórias continuaram. Naquele mesmo serão tia Nastácia teve de contar mais uma. E contou a história de O Sargento Verde.


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Notas:
Extraído da obra: Histórias de Tia Nastácia.
Transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)

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