Houve uma vez um casal com
tantos filhos que o remédio foi aliviar a família botando dois fora. Chamavam-se
João e Maria os escolhidos como vítimas. Certa manhã o pai mandou que se
aprontassem para irem com ele tirar mel na floresta.
Os meninos se aprontaram e
foram. Lá no meio da mata o pai disse: "Agora fiquem aqui bem quietinhos
enquanto eu me afasto. Assim que ouvirem um grito, dirijam-se do lado do
som", e afastou-se para um ponto em direção contrária à sua casa, onde
gritou — e depois deu uma volta e correu para casa. Ouvindo o grito, as duas
crianças encaminharam-se do lado do som. Não encontraram o pai e perderam-se.
Veio a noite e os dois
coitadinhos dormiram num oco de pau. No dia seguinte João subiu ao alto duma
árvore para ver se enxergava alguma coisa. Viu muito longe uma fumacinha.
Mandou que Maria ficasse esperando e dirigiu-se para lá.
Era a casa duma velha catacega
que estava assando bolos ao forno. João, meio morto de fome, não resistiu ao
cheiro daqueles bolos. Quebrou uma varinha de gancho na ponta e por um buraco
da parede furtou dois bolinhos. A velha viu aquilo mal-e-mal e pensou que fosse
o gato. "Chispa, gato, não me furtes meus bolinhos.
No dia seguinte veio João com
o gancho furtar mais bolinhos e a velha novamente tocou o gato. No terceiro dia
voltou, mas dessa vez Maria insistiu em vir com ele — e veio. Quando João
pescou o primeiro bolinho e a velha ralhou com o gato, Maria não conteve uma
gargalhada. A velha apareceu à janela e disse.
— Oh, são vocês, meus
netinhos! Entrem. Venham morar comigo. Os dois meninos entraram, e a velha, nhoc! agarrou-os e trancou-os numa arca,
para engordá-los e comê-los assados. E para que engordassem depressa, dava-lhes
muitos bolos todos os dias. De vez em quando dizia:
"Bote para fora o dedinho
para eu ver se já estão no ponto."
João não punha o dedo — punha
um rabinho de lagartixa que encontrara na arca, e a velha rosnava: "Ainda
estão bem magros", e aumentava a ração de bolos.
Assim por muitos dias, até que
João perdeu o rabinho da lagartixa e teve de pôr o dedo. "Oh, disse a
velha, agora sim estão no ponto," e abriu a arca. "Saiam e juntem
bastante lenha. Vamos fazer uma fogueira para dançar em redor." Mas a ideia
da coruja não era essa, e sim lançá-los no tacho de água que ia pôr em cima da
fogueira.
Os meninos saíram para a
floresta. Estavam amarrando os feixinhos quando Nossa Senhora lhes apareceu e
disse: "A velha é uma feiticeira que devora crianças. Por isso façam o que
eu vou dizer. Depois de acesa a fogueira, assim que ela mandar que vocês
dancem, digam-lhe: "Avozinha, dance primeiro para vermos como é" — e
assim que ela começar a dançar, empurrem-na para a fogueira e corram — e subam
naquela árvore grande que há perto da casa e fiquem lá até ouvirem um estrondo:
é a cabeça da velha arrebentando no fogo. Dessa cabeça vão sair três cães
ferozes, mas vocês levarão no bolso três bolos. Quando aparecer o primeiro cão,
gritem: Turco! e lancem-lhe um dos
bolos. A mesma coisa com o segundo, que se chamará Leão e a mesma coisa com o terceiro, que se chamará Facão. Façam isso que os três cães
ferozes se transformarão em três guardas fiéis."
Os meninos assim fizeram.
Levaram a lenha e armaram a fogueira. Quando a velha mandou-os dançar,
pediram-lhe que começasse para verem como era — e a velha pôs-se a dançar e
eles a empurraram para a fogueira. Em seguida treparam à árvore e ficaram à
espera do estouro. Bum! — lá rebentou
a cabeça da velha. Imediatamente os três enormes cães surgiram. Os meninos
disseram-lhes os nomes e lançaram-lhes os bolinhos. Os cães viraram guardas
fiéis, tudo exato como Nossa Senhora dissera.
Desceram então da árvore e
ficaram morando na casa da feiticeira, onde viveram vários anos em companhia
dos bons cães.
Maria, que estava mocinha, foi
gostada por um rapaz das vizinhanças, que resolveu dar cabo de João. Mas os
cães defendiam-no tão bem que isso se tornou impossível. O moço armou um plano.
Aconselhou Maria a pedir a João que fosse à floresta e deixasse os cachorros na
casa e João assim fez. O moço veio e entupiu os ouvidos dos cachorros com cera
— e lá se foi com uma espingarda em procura de João. Se ele gritasse, os cães
não ouviriam e não viriam em seu socorro.
Encontrou-o e disse:
"Reza, amigo, pois vais morrer" — e apontou a espingarda. João pediu
tempo para dar três gritos. O malvado respondeu, rindo, que podia dar até cem.
João trepou a uma árvore e gritou de cima: "Turco! Leão! Facão!"
Os cães estavam de ouvidos
tapados, mas mesmo assim ouviram alguma coisa e sacudiram violentamente as
cabeças. João repetiu os gritos, duas, três vezes. A cera escapou dos ouvidos
dos cães e eles vieram, velozes como relâmpagos, e agarraram o malvado e o
estraçalharam.
João voltou para casa e disse
a Maria: "Tu me atraiçoaste, irmã. Fica-te pois aqui que eu vou correr
mundo", e lá se foi com os três cães fiéis.
Tocou para um reino onde havia
um monstro de sete cabeças, comedor de gente. Todos os dias tinham de levar-lhe
uma vítima. Ao chegar lá João viu uma linda princesa amarrada a uma pedra.
"Que fazes aqui, princesa?" — perguntou. E ela respondeu: "Cá
estou para ser devorada pelo monstro de sete cabeças. Ele não tarda. Foge
depressa, senão serás devorado também."
Contou ainda que o rei a tinha
prometido como esposa a quem matasse o monstro, mas que nunca apareceu no reino
homem nenhum capaz de semelhante façanha.
João declarou que não fugiria
dali, ao contrário, ficaria à espera do monstro para lutar com ele e vencê-lo —
e como estivesse cansado, deitou a cabeça no colo da princesa, para dormir.
Momentos depois o monstro
surgiu ao longe, e a princesa, na maior aflição, pôs--se a chorar. Uma lágrima
caiu no rosto de João, despertando-o. "Foge! Foge, senão serás devorado
também" — disse-lhe a princesa. Mas João não mostrou o menor medo. Ficou —
e atiçou contra o monstro o cão Turco. Travou-se uma luta medonha, e quando o
Turco já não podia mais, João atiçou o Leão. E quando o Leão já não podia mais
atiçou o Facão. O monstro não aguentou: foi vencido e estraçalhado.
João Cortou a ponta das sete
línguas do monstro e foi com a princesa ao palácio do rei. Mas um negro, que ia
passando a cavalo, deu com o bicho morto e teve uma ideia. Cortou sete tocos
das línguas do monstro e foi de galope ao palácio do rei, ao qual declarou que
tinha matado o monstro.
Quando João chegou era tarde.
O rei já tinha resolvido o casamento da princesa com o negro mentiroso, por
mais que ela contasse a história dum modo diferente. Ninguém acreditou era suas
palavras, julgando ser invenção para não casar-se com o negro.
No dia do casamento houve um
grande banquete, mas no momento em que os criados serviram o negro, Turco
entrou e arrebatou o que lhe haviam posto no prato. Ao ver aquilo, a princesa
ficou alegríssima e contou ao pai que era um dos cães que haviam lutado contra
o bicho de sete cabeças.
Os criados serviram o negro
novamente, e desta vez foi Leão que entrou e levou-lhe o prato. A princesa
explicou que era aquele o segundo cão que lutara contra o monstro. Por fim
entrou Facão e arrebatou ò terceiro prato servido ao negro. O rei, muito
impressionado, mandou que seguissem aquele cachorro para ver a quem pertencia.
Os guardas foram e voltaram
com o herói verdadeiro.
— Eis aí quem me salvou e
matou o monstro! — gritou a princesa, e João confirmou suas palavras, abrindo
um lenço e mostrando as sete pontas de língua.
O rei compreendeu tudo. Mandou
amarrar o negro num burro bem bravo e casou João com a princesa.
***
— Eu já li essa história em
Andersen — disse Emília — e agora estou vendo bem claro como o nosso povo faz
nela os seus arranjos. Foi Andersen quem a inventou.
— Não — disse dona Benta. —
Andersen nada mais fez do que colhê-la da boca do povo e arranjá-la a seu modo,
com as modificações que quis. Essas histórias são todas velhíssimas, e correm
todos os países, em cada terra contada de um jeito. Os escritores o que fazem é
fixar as suas versões, isto é, o modo como eles entendem que as histórias devem
ser contadas.
— Na versão de Andersen —
disse Narizinho — não há negro nenhum, nem nada de três cães. O povo aqui no
Brasil misturou a velha história de Joãozinho e Maria com outra qualquer,
formando uma coisa diferente. A versão de Andersen é muito mais delicada e
chama-se Hansel e Gretel.
— O tal negro entrou aí —
disse Pedrinho — porque no Brasil as histórias são contadas pelas negras, que
gostam de enxertar personagens pretos como elas. Lá na Dinamarca Andersen nunca
se lembraria de enxertar um preto porque não há pretos. Tudo gente loura.
— Onde o tal Sílvio Romero
pegaria essa história? — perguntou Emília.
— No Rio de Janeiro e no
Sergipe — respondeu dona Benta. — Ele fez um trabalho muito interessante, que
publicou com o nome de Contos Populares do Brasil. Ouvia as histórias das
negras velhas e copiava-as direitinho, com todos os erros de língua e os
truncamentos. É assim que os folcloristas caçam a obra popular.
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Notas:
Extraído da obra: Histórias de Tia Nastácia.
Transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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