Era uma vez um boiadeiro lá do
sertão, que tinha cara de bobo e fumaças de esperto. Um dia veio ao Rio de
Janeiro gastar os cobres duma boiada. Logo que desceu do trem e ia se
encaminhando para um hotelzinho próximo, foi abordado por um homem de cara
ainda mais boba que a sua.
— Boa noite, meu senhor! —
saudou o homem humildemente.
O boiadeiro respondeu com um
"boa noite" desconfiado, e foram andando juntos. O homem começou a
contar uma história muito comprida. Disse que era da roça e estava
completamente zonzo naquela capital. Não conhecia ninguém, não sabia tomar
bondes, atrapalhava-se com qualquer coisinha — e o pior de tudo era o medão de
ser roubado.
— Isto aqui — disse ele — é
gatuno de todos os lados. Ninguém pode confiar em ninguém. Os piratas não
dormem. Se a gente está com dinheiro no bolso, eles conhecem pelo cheiro — e
tanto fazem que deixam uma pessoa limpa.
— Se o senhor tem tanto medo,
é sinal de que está empatacado — disse o boiadeiro.
O homem correu os olhos, com
desconfiança, dum lado e doutro; depois respondeu quase num cochicho:
— O senhor adivinhou. Todo o
meu medo vem de trazer no bolso um pacote de notas no valor de dez mil
cruzeiros, que lá na minha terra me encarregaram de entregar à Santa Casa. Mas
não sei onde é a Santa Casa. Se pergunto, ensinam-me errado — ou então
desconfiam de que estou com dinheiro...
E deu um suspiro. Depois
continuou:
— Aquela gente lá da roça não
imagina o que é isto aqui. Nem eu imaginava coisa nenhuma. Se soubesse, não vê
que não me encarregava deste maldito dinheiro. Dez mil cruzeiros! Se perco o
pacote, ou se algum pirata me passa a perna, vão dizer por lá que roubei — e
fico desacreditado.
— E que pretende fazer? —
indagou o boiadeiro.
— Minha ideia é descobrir um
homem de bem que queira encarregar-se da entrega do dinheiro. Mas não acho esse
homem. As caras desta terra não me inspiram a menor confiança. Só a sua. Assim
que vi o senhor, tive um pressentimento no coração: "Aquele, sim, aquele tem
cara de homem de bem." Por isso me aproximei.
O boiadeiro ficou muito
lisonjeado com a boa ideia que o homem fazia dele.
— Lá isso, sou. Graças a Deus
tenho um nome limpo. Quem quiser tratar com pessoa séria, me procure.
O homem do pacote suspirou.
— Deus seja louvado! Custou,
mas achei. Meu coração não nega. Quando o vi descendo esta rua; palpitei cá
comigo: "Meu salvador vai ser aquele homem..."
— Mas de que maneira acha que
eu possa servi-lo? — perguntou o boiadeiro.
— Dum modo muito simples. Eu
lhe dou o pacote dos dez mil cruzeiros e o senhor faz a entrega à Santa Casa.
Os olhos do boiadeiro
brilharam.
— Pois estou às suas ordens —
disse ele. — Neste mundo um tem de servir o outro. Já que lhe inspiro tanta
confiança, disponha dos meus préstimos.
— Ora graças! — suspirou o
homem, tirando o pacote do bolso. Era um pacote de notas graúdas, muito bem
amarrado, com uma de cem cruzeiros em cima.
— Pois aqui está o pacote, meu
senhor. E eu fico imensamente agradecido da sua bondade, Ah, nem imagina o peso
que me tira do coração! Uf! Esse dinheiro estava me deixando doido...
O boiadeiro pegou no pacote e
foi abrindo a mala para guardá-lo.
— Espere — disse o homem. — Eu
tenho no senhor a mais absoluta confiança, mas sempre é bom que me dê uma
garantiazinha — aí um dinheirinho qualquer, porque afinal de contas eu acabo de
lhe entregar dez mil cruzeiros. Dez mil cruzeiros é uma fortuninha...
O primeiro ímpeto do boiadeiro
foi restituir o pacote. Depois mudou e disse, pondo a mão no bolso:
— Serve uma garantia de mil e
quinhentos cruzeiros? É todo o dinheiro que tenho no bolso.
O homem cocou a cabeça
vacilante. Afinal resolveu:
— Serve. É pouco, mas serve...
O boiadeiro puxou os cobres e
deu a de mil e quinhentos cruzeiros.
Despediram-se cada qual
seguindo numa direção.
— Dez mil cruzeiros! — foi
murmurando o boiadeiro. — Dez mil cruzeiros! Para que precisa a Santa Casa de
tanto dinheiro? Muito melhor eu distribuir isto lá pelos pobres da minha terra
— pelo menos metade. É justo que a outra metade fique comigo, em pagamento do
trabalho...
No hotel pediu um quarto, onde
se fechou para contar o dinheiro. Só encontrou aquela nota de cem cruzeiros. O
resto era papel de jornal...
***
— Isso é o célebre
conto-do-vigário, vovó! — gritou Pedrinho. — Todos os dias leio nos jornais
coisas assim — e só me admiro de ainda haver gente que vá na onda. Como há
bobos no mundo!...
— Como há patifes, isso sim —
emendou dona Benta. — O segredo do conto-do-vigário é que um quer passar a
perna no outro. Trata-se dum duelo entre dois tipos de ladrões — o ladrão
esperto e o ladrão bronco. O bronco apanha o pacote — o esperto apanha a
garantia. Eu, se fosse a polícia, punha os dois na cadeia.
— Mas isso não é história do
folclore — disse Narizinho.
— Como não? Se é um produto do
povo, é folclore do legítimo. Note que o principal elemento de todas as
histórias é o logro. Seja príncipe ou jabuti, um logra o outro. A variedade
está só nos jeitinhos do logro. O conto-do-vigário é um desses mil jeitos do esperto
apanhar o dinheiro do bronco — num caso em que o bronco também é ladrão.
— Ah! — exclamou Emília. — Eu
é que queria que alguém viesse para cima de mim com um pacote da Santa Casa...
— Que fazia?
— A coisa mais simples do
mundo. "Quer garantia, meu caro senhor? Pois então abra o pacote e tire
quanto quiser." Bastava isso.
— Bom, essa é a resposta
natural duma pessoa honesta — mas quem cai no conto não é honesto. Assim que vê
o pacote já fica assanhado para pegar o dinheiro, e portanto fará tudo, menos
abrir o pacote.
— E agora? — perguntou
Pedrinho.
— Agora chega — disse dona
Benta. — Vocês já devem estar empanturrados de histórias.
— Eu confesso que estou —
disse Emília. — Estou cheinha de reis e príncipes e princesas encantadas e
velhas corocas e jabutis e veados e onças. Sinto até um gostinho de jardim
zoológico na boca.
— Também eu estou farta —
disse Narizinho. — Histórias do povo não quero mais. De hoje em diante, só as
assinadas pelos grandes escritores. Essas é que são as artísticas.
— Bem — concluiu dona Benta. —
Da próxima vez contarei só histórias literárias, isto é, as escritas pelos tais
grandes escritores. Agora cama! Narizinho já bocejou três vezes...
E a criançada foi dormir.
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Notas:
Extraído da obra: Histórias de Tia Nastácia.
Transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2018)
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