Herdeiro
de si mesmo
O povo de
Dois Rios não cessava de comentar a inconcebível “sorte” do Coronel Lupércio
Moura, o grande milionário local. Um homem que saíra do nada. Que começara
modesto menino de escritório dos que mal ganham para os sapatos, mas cuja vida,
dura até aos 36 anos, fora daí por diante a mais espantosa subida pela escada
do Dinheiro, a ponto de aos 60 ver-se montado numa hipopotâmica fortuna de 60
mil contos de réis.
Não houve
o que Lupércio não conseguisse da Sorte — até o posto de Coronel, apesar de já
extinta a pitoresca instituição dos coronéis. A nossa velha Guarda Nacional era
uma milícia meramente decorativa, com os galões de capitão, major e coronel
reservados para coroamento das vidas felizes em negócios. Em todas as cidades
havia sempre um coronel: o homem de mais posses. Quando Lupércio chegou aos 20
mil contos, a gente de Dois Rios sentiu-se acanhada de tratá-lo apenas de
"senhor Lupércio”. Era pouquíssimo. Era absurdo que um detentor de tanto
dinheiro ainda se conservasse "soldado raso” — e por consenso unânime
promoveram-no, com muita justiça, a coronel, o posto mais alto da extinta
milícia.
Criaturas
há que nascem com misteriosa aptidão para monopolizar dinheiro. Lembram ímãs
humanos. Atraem a moeda com a mesma inexplicável força com que o ímã atrai a
limalha. Lupércio tomara-se ímã. O dinheiro procurava-o de todos os lados, e
uma vez aderido não o largava mais. Toda gente faz negócios em que ora ganha,
ora perde. Ficam ricos os que ganham mais do que perdem e empobrecem os que
perdem mais do que ganham. Mas caso de homens de mil negócios sem uma só falha
existia no mundo apenas um — o do Coronel Lupércio.
Até aos
56 anos ganhou dinheiro de modo normal, e conservou-o à força da mais acirrada
economia. Juntou um pecúlio de 45 contos e 500 mil-réis como o juntam todos os
forretas. Foi por essas alturas que sua vida mudou. A Sorte “encostou-se” nele,
dizia o povo. Houve aquela tacada inicial de Santos e a partir daí todos os
seus negócios foram tacadas prodigiosas. Evidentemente, uma Força Misteriosa
passara a protegê-lo.
Que
tacada inicial fora essa? Vale a pena recordá-la.
Certo
dia, inopinadamente, Lupércio apareceu com a ideia, absurda para o seu caráter,
de uma estação de veraneio em Santos. Todo mundo se espantou. Pensar em
veraneio, em flanar, botar dinheiro fora, aquela criatura que nem sequer fumava
para economia dos níqueis que custam os maços de cigarros? E quando o
interpelaram, deu uma resposta esquisita:
— Não
sei. Uma coisa me empurra para lá...
Lupércio
foi para Santos. Arrastado, sim, mas foi. E lá se hospedou no hotelzinho mais
barato, sempre atento a uma só coisa: o saldo que lhe ficaria dos quinhentos
mil-réis que destinara à “maluquice”. Nem banhos de mar tomou, apesar da grande
vontade, para economia dos vinte mil-réis da roupa de banho. Contentava-se com
ver o mar.
Que
enlevo de alma lhe vinha da imensidão líquida, eternamente a afiar em ondas e a
refletir os tons do céu! Lupércio extasiava-se diante de tamanha beleza.
“Quanto
sal! Quantos milhões de milhões de toneladas de sal!", dizia lá consigo —
e seus olhos em êxtase ficavam a ver pilhas imensas de sacas de sal amontoadas
por toda a extensão das praias.
Também
gostava de assistir à puxada das redes dos pescadores, enlevando-se no cálculo
do valor da massa de peixes recolhida. Seu cérebro era a mais perfeita máquina
de calcular que o mundo ainda produzira.
Num
desses passeios afastou-se mais que de costume e foi ter à Praia Grande. Um
enorme trambolho ferrugento semienterrado na areia chamou-lhe a atenção.
— Que é
aquilo? — indagou dum passante.
Soube
tratar-se dum cargueiro inglês que vinte anos antes dera à costa naquele ponto.
Uma tempestade arremessara-o à praia onde encalhara e ficara a afundar-se
lentissimamente. No começo o grande casco aparecia quase todo de fora — “mas
ainda acaba engolido pela areia”, concluiu o informante.
Certas
criaturas nunca sabem o que fazem nem o que são, nem o que as leva a isto e não
aquilo. Lupércio era assim. Ou andava assim agora, depois do “encostamento"
da Força. Essa Força o puxava às vezes como o cabreiro puxa para a feira um
cabrito — arrastando-o. Lupércio veio para Santos arrastado. Chegara até aquele
casco arrastado — e era a contragosto que permanecia diante dele, porque o sol
estava terrível e Lupércio detestava o calor. Travava-se dentro dele uma luta.
A Força obrigava-o a atentar no casco, a calcular o volume daquela massa de
ferro, o número de quilos, o valor do metal, o custo do desmantelamento — mas
Lupércio resistia. Queria sombra, queria escapar ao calor terrível. Por fim
venceu. Não calculou coisa nenhuma — e fez-se de volta para o hotelzinho com
cara de quem brigou com a namorada — evidentemente amuado.
Nessa
noite todos os seus sonhos giraram em torno do casco velho, A Força insistia para
que ele calculasse a ferralha, mas mesmo em sonhos Lupércio resistia, alegava o
calor reinante — e os pernilongos. Oh, como havia pernilongos em Santos! Como
calcular qualquer coisa com o termômetro perto de quarenta graus e aquela
infernal música anofélica? Lupércio amanheceu de mau humor, amuado. Amuado com
a Força.
Foi
quando ocorreu o caso mais inexplicável de sua vida: o casual encontro de um
corretor de negócios que o seduziu de maneira estranha. Começaram a conversar
bobagens e gostaram-se. Almoçaram juntos. Encontraram-se de novo à tarde para o
jantar. Jantaram juntos e depois... a farrinha!
A
princípio a ideia de farra tinha assustado Lupércio. Significava desperdício de
dinheiro — um absurdo. Mas como o homem lhe pagara o almoço e o jantar, era bem
possível que também custeasse a farrinha. Essa hipótese fez que Lupércio não
repelisse de pronto o convite, e o corretor, como se lhe adivinhasse o
pensamento, acudiu logo;
— Não pense em despesas. Estou cheio de
“massa”. Com o negocião que fiz ontem, posso torrar um conto sem que meu bolso
dê por isso.
A farra
acabou diante de uma garrafa de whisky, bebida cara que só naquele momento
Lupércio veio a conhecer. Uma, duas, três doses. Qualquer coisa levitante
começou a desabrochar dentro dele. Riu-se à larga. Contou casos cômicos.
Referiu cem fatos de sua vida e depois, oh, oh, oh, falou em dinheiro e
confessou quantos contos possuía no banco!
— Pois é!
Quarenta e cinco contos — ali na batata!
O
corretor passou o lenço pela testa suada. Uf! Até que enfim descobrira o peso
metálico daquele homem. A confissão dos 45 contos era algo absolutamente
aberrante na psicologia de Lupércio. Artes do whisky, porque em estado “normal”
ninguém nunca lhe arrancaria semelhante confissão. Um dos seus princípios
instintivos era não deixar que ninguém lhe conhecesse “ao certo” o valor
monetário. Habilmente despistava os curiosos, dando a uns a impressão de
possuir mais, e a outros a de possuir menos, ao que realmente possuía. Mas “in
whisky ventas”, diz o latim — e ele estava com quatro boas doses no sangue.
O que se
passou dali até a madrugada Lupércio nunca o soube com clareza. Vagamente se
lembrava de um estranhíssimo negócio em que entravam o velho casco do cargueiro
inglês e uma companhia de seguros marítimos.
Ao
despertar no dia seguinte, ao meio-dia, numa ressaca horrorosa, tentou
reconstruir o embrulho da véspera. A princípio, nada; tudo confusão. De
repente, empalideceu. Sua memória começava a abrir-se.
— “Será
possível?”
Fora
possível, sim. O corretor havia "roubado" os seus 45 contos! Como?
Vendendo-lhe o ferro-velho. Esse corretor era agente da companhia que pagara o
seguro do cargueiro naufragado e ficara dona do casco. Havia muitos anos que
recebera a incumbência de apurar qualquer coisa daquilo — mas nunca obtivera
nada, nem cinco, nem três, nem dois contos — e agora o vendera àquele imbecil
por 45!
A entrada
triunfal do corretor no escritório da companhia, vibrando no ar o cheque! Os
abraços, os parabéns dos companheiros tomados de inveja...
O diretor
da sucursal fê-lo vir ao escritório.
— Quero
que receba o meu abraço — disse-lhe. — A sua façanha vem pô-lo no primeiro
lugar entre os nossos agentes. O senhor acaba de tornar-se a grande estrela da
companhia.
Enquanto
isso, lá no hotelzinho, Lupércio amarfanhava o travesseiro desesperadamente.
Pensou na polícia. Pensou em contratar o melhor advogado de Santos. Pensou em
dar tiro — um tiro na barriga do
infame ladrão; na barriga, sim, por causa da peritonite. Mas nada pôde fazer. A
Força lá dentro o inibia. Impedia-o de agir neste ou naquele sentido. Forçava-o
a esperar.
—
"Mas esperar que coisa?”
Ele não
sabia, não compreendia, mas senha aquela impulsação tremenda que o forçava a
esperar. Por fim, exausto da luta, ficou de corpo largado — vencido. Sim,
esperaria. Não faria nada — nem polícia, nem advogado, nem peritonite, apesar
de ser um caso de escroqueria pura, desses que a lei pune.
E como
não tivesse ânimo de regressar a Dois Rios, deixou-se ficar em Santos num
empreguinho dos mais modestos — esperando, esperando... não sabia o quê.
Não
esperou muito. Dois meses depois rebentava a Grande Guerra, e a tremenda alta
dos metais não demorou a sobrevir. No ano seguinte Lupércio revendeu o casco do
Sparrow por 320 contos de réis. A notícia encheu Santos — e o corretor-estrela
foi tocado da companhia de seguros quase a pontapés. O mesmo diretor que o
promovera ao "estrelato" despediu-o com palavras ferozes:
—
Imbecil! Esteve anos e anos com o Sparrow e vai vendê-lo por uma ninharia
justamente nas vésperas da valorização. Rua! Faça-me o favor de nunca mais me
pôr os pés aqui, seu coisa!
Lupércio
voltou para Dois Rios com os 320 contos no bolso e perfeitamente reconciliado
com a Força. Daí por diante nunca mais houve amuos, nem hiatos na sua ascensão
ao milionarismo. Lupércio dava ideia do demônio. Enxergava no mais escuro de
todos os negócios. Adivinhava. Recusava muitos que todos consideravam da China,
para realizar outros que todos refugavam — e o que inevitavelmente sucedia era
o fracasso desses negócios da China e a vitória dos de todos refugados.
No jogo
dos marcos alemães o mundo inteiro perdeu — menos Lupércio. Um belo dia
deliberou “embarcar nos marcos”, contra o conselho de todos os prudentes
locais. A moeda alemã estava a cinquenta réis. Lupércio comprou milhões e mais
milhões, empatou nela todas as suas disponibilidades. E com espanto geral o
marco principiou a subir. Foi a sessenta, a setenta, a cem réis. O entusiasmo
pelo negócio tomou-se imenso. Iria a duzentos, a trezentos réis, diziam todos —
e não houve quem não se atirasse à compra daquilo.
Quando a
cotação chegou a 110 réis, Lupércio foi à capital consultar um banqueiro das
suas relações, verdadeiro oráculo em finanças internacionais — o “infalível”,
como diziam nas rodas bancárias.
— Não
venda — foi o conselho do homem. — A moeda alemã está firmíssima, vai a
duzentos, pode chegar mesmo a oitocentos — e só então será o momento de vender.
As razões
que o banqueiro deu para demonstrar matematicamente o asserto eram de perfeita
solidez; eram a própria evidência materializada em raciocínio.
Lupércio
ficou absolutamente convencido daquela matemática — mas arrastado pela Força
encaminhou-se para o banco onde tinha os seus marcos — arrastado como o
cabritinho que o cabreiro conduz à feira — e lá, em voz sumida, submisso,
envergonhado, deu ordens para a venda imediata dos seus milhões.
— Mas,
coronel — objetou o empregado a quem se dirigiu —, não acha que é erro vender
agora que a alta está numa vertigem? Todos os prognósticos são unânimes em
garantir que teremos o marco a duzentos, a trezentos, e isso antes de um mês...
— Acho,
sim, que é isso mesmo — respondeu Lupércio, como que agarrado pela garganta. —
Mas quero, sou “forçado” a vender. Venda já, já, hoje mesmo.
— Olhe,
olhe... — disse ainda o empregado. — Não se precipite. Deixe essa resolução
para amanhã. Durma sobre o caso.
A Força
quase estrangulou Lupércio, que com os últimos restos de voz apenas pôde dizer:
— E
verdade, tem razão — mas venda, e hoje mesmo...
No dia
seguinte começou a degringolada finai dos marcos alemães, na descida
vertiginosa que os levou ao zero absoluto.
Lupércio,
comprador a cinquenta réis, vendera-os pelo máximo da cotação alcançada — e
justamente na véspera de débâcle! O seu lucro foi de milhares de contos.
Os contos
de Lupércio foram vindos aos milhares, mas também lhe vieram vindo os anos, até
que um dia se convenceu de estar velho e inevitavelmente próximo do fim. Dores
aqui e ali — doencinhas insistentes, crônicas. Seu organismo evidentemente
decaía à proporção que a fortuna aumentava. Ao completar os 60 anos Lupércio
tomou-se de uma sensação nova, de pavor — o pavor de ter de largar a
maravilhosa fortuna reunida. Tão integrado estava no dinheiro, que a ideia de
separar-se dos milhões lhe parecia uma aberração da natureza. Morrer! Teria
então de morrer, ele que era diferente dos outros homens? Ele que viera ao
mundo com a missão de chamar a si quanto dinheiro houvesse? Ele que era o ímã
atrator da limalha?
O que foi
a sua luta com a ideia da inevitabilidade da morte não cabe em descrição
nenhuma. Exigiria volumes. Sua vida ensombreceu. Os dias iam se passando e o
problema se tornava cada vez mais angustioso. A morte é um fato universal. Até
aquela data não lhe constava que ninguém houvesse deixado de morrer. Ele,
portanto, morreria também — era o inevitável. O mais que poderia fazer era
prolongar a vida até os 70, até 80. Poderia mesmo chegar a quase 100, como o
Rockefeller — mas ao cabo teria de ir-se, e então? Quem ficaria com os duzentos
ou trezentos mil contos que deveria ter por essa época?
Aquela
história de herdeiros era o absurdo dos absurdos para um celibatário de sua
marca. Se a fortuna era dele, só dele, como deixá-la a quem quer que fosse?
Não. Tinha de descobrir um jeito de não morrer, ou...
Lupércio
interrompeu-se no meio do raciocínio, tomado de súbita ideia. Uma ideia
tremenda, que por minutos o deixou de cérebro paralisado. Depois sorriu.
— “Sim,
sim... Quem sabe?” — e seu rosto iluminou-se de uma luz nova. As grandes ideias
emitem luz...
Desde
esse momento Lupércio revelou-se outro, com preocupações que nunca tivera
antes. Não houve em Dois Rios quem o não notasse.
— “O
homem mudou completamente” — diziam. — “Está se espiritualizando. Compreendeu
que a morte vem mesmo e começa a arrepender-se da sua feroz materialidade.”
Lupércio
fez-se espiritualista. Comprou livros, leu-os, meditou-os. Passou a frequentar
o Centro Espírita local e a ouvir com a maior atenção as vozes do Além,
transmitidas pelo Chico Vira, o famoso médium da zona.
— “Quem
havia de dizer!” — era o comentário geral. — “Esse usurário, que passou a vida
inteira só pensando em dinheiro e nunca foi capaz de dar um tostão de esmola,
está virando santo. E vão ver que faz como o Rockefeller: deixa toda a fortuna
para o Asilo de Mendigos...”
Lupércio,
que nunca lera coisa nenhuma, estava agora se tornando um sábio, a avaliar pelo
número de livros que adquiria. Entrou a estudar a fundo. Sua casa fez-se centro
de reuniões de quanto médium aparecia por lá — e muitos de fora vieram a Dois
Rios a convite seu. Generosamente hospedava-os, pagava-lhes a conta do hotel —
coisa inteiramente aberrante dos seus princípios financeiros. O assombro da
população não tinha limites.
Mas o
doutor Dunga, diretor do Centro Espírita, começou a estranhar uma coisa: o
interesse do Coronel Lupércio pela metapsíquica centrava-se num só ponto — a
reencarnação. Só isso o preocupava realmente. Pelo resto passava como gato por
brasas.
— Escute,
irmão — disse ele um dia ao doutor Dunga. — Há na teoria da reencarnação um
ponto para mim obscuro e que no entanto me apaixona. Por mais autores que eu
leia, não consigo firmar as ideias.
— Que
ponto é esse? — indagou o doutor Dunga.
— Vou
dizer. Já não tenho dúvidas sobre a reencarnação. Estou plenamente convencido
de que a alma, depois da morte do corpo, volta — reencarna-se em outro ser. Mas
em quem?
— Como em
quem?
— Em quem,
sim. Meu ponto é saber se a alma do desencarnado pode escolher o corpo em que
vai novamente encarnar-se.
— Está
claro que escolhe.
— Até aí
vou eu. Sei que escolhe. Mas “quando” escolhe?
O doutor
Dunga não percebia o alcance da pergunta.
— Escolhe
quando chega o momento de escolher — respondeu.
A
resposta não contentou o Coronel. O momento de escolher! Bolas! Mas que momento
é esse?
— Meu
ponto é o seguinte: saber se a alma de um vivo pode antecipadamente escolher a
criatura em que vai futuramente encarnar-se.
O doutor
Dunga estava tonto. Fez cara de não entender nada.
— Sim —
continuou Lupércio. — Quero saber, por exemplo, se a alma de um vivo pode antes
de morrer marcar a mulher que vai ter um filho em quem essa alma se encarne,
A perplexidade
do doutor Dunga recrescia.
— Meu
caro — disse por fim Lupércio estou disposto a pagar até cem contos por uma
informação segura — seguríssima. Quero saber se a alma de um vivo pode antes de
desencarnar-se escolher o corpo da sua futura reencarnação.
— Antes
de morrer?
— Sim...
— Em vida
ainda?
— Está
claro...
O doutor
Dunga quedou-se pensativo. Estava ali uma hipótese em que jamais refletira e
sobre que nada lera.
— Não
sei, Coronel. Só vendo, só consultando os autores — e as autoridades. Nós aqui
somos bem pouco neste assunto, mas há mestres na Europa e nos Estados Unidos.
Podemos consultá-los.
— Pois
faça-me o favor. Não olhe as despesas. Darei cem contos, e até mais, em troca
de uma informação segura.
— Sei.
Quer saber se ainda em vida do corpo podemos escolher a criatura em que vamos
reencamar-nos...
—
Exatamente.
— E por
que isso?
—
Maluquices de velho. Como ando a estudar as teorias da reencarnação, lógico que
me interesso pelos pontos obscuros. Os pontos claros esses já os conheço. Não
acha natural a minha atitude?
O doutor
Dunga teve de achar naturalíssima aquela atitude.
Enquanto
as cartas de consulta cruzavam o oceano, endereçadas às mais famosas sociedades
psíquicas do mundo, o estado de saúde do Coronel Lupércio agravou-se — e
concomitantemente se agravou a sua pressa pela solução do problema. Chegou a
autorizar pedido de resposta pelo telégrafo — custasse o que custasse.
Certo dia
o doutor Dunga, tomado de vaga desconfiança, foi procurá-lo em casa.
Encontrou-o mal, respirando com esforço.
— Nada
ainda, Coronel. Mas a minha visita tem outro fim. Quero que o amigo fale claro,
abra esse coração. Quero que me explique a verdadeira causa do seu interesse
pela consulta. Francamente, não acho natural isso. Sinto, percebo, que o
Coronel tem uma ideia secreta na cabeça...
Lupércio
olhou-o de revés, desconfiado. Mas resistiu. Alegou que era apenas curiosidade.
Como nos seus estudos sobre a reencarnação nada vira sobre aquele ponto,
viera-lhe a lembrança de esclarecê-lo. Só isso...
O doutor
Dunga não se satisfez. Insistiu:
— Não,
Coronel, não é isso, não. Eu sinto, eu vejo, que o senhor tem uma ideia oculta
na cabeça. Seja franco. Bem sabe que sou seu amigo.
Lupércio
resistiu ainda por algum tempo. Por fim confessou, com relutância.
— É que
estou no fim, meu caro — e tenho de fazer o testamento...
Não disse
mais, nem foi preciso. Um clarão iluminou o espírito do doutor Dunga. O Coronel
Lupércio, a mais pura encarnação humana do dinheiro, não admitia a ideia de
morrer e deixar a fortuna aos parentes. Não se conformando com a hipótese de
separar-se dos sessenta mil contos, pensava em fazer-se o herdeiro de si mesmo
em outra reencarnação... Seria isso?
Dunga
olhou-o firmemente, sem dizer palavra. Lupércio leu-lhe o pensamento nos olhos
inquisidores. Corou — pela primeira vez na vida. E, baixando a cabeça, abriu o
coração.
— Sim,
Dunga, é isso. Quero que vocês me descubram a mulher em que vou nascer de novo
— para fazê-la em meu testamento a depositária da minha fortuna...
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)
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